Ninguém gosta de discussões, desavenças, brigas! Por vezes sabe bem fechar os olhos e imaginar o mundo com todas as pessoas a viverem em paz ao som de John Lenon. Talvez fosse bom podermos fugir para o território utópico de “the imagine”! Um lugar de harmonia, conforto e pertença.
As relações românticas são por vezes esse território idealizado, um lugar de total paz e concordância no qual nos refugiamos do mundo. Curiosamente no espaço de psicoterapia, em consulta de casal, testemunhamos como o sonho e a utopia ao encontrarem a imaginação e o desejo do outro, por vezes colidem e ganham dimensão de realidade discordante, fazendo quebrar o lugar utópico.
Diana e João numa das primeiras sessões de terapia da casal, pedem-nos ajuda para os momentos de conflito. - Ajude-nos a discutir. - Inicia a Diana. - Nós damo-nos muito bem, estamos muito bem os dois, mas no momento em que surgem alguns temas, não conseguimos comunicar. - O João acrescenta. - Eu sinto que quando começamos a falar sobre filhos, hobbies e família alargada, começamos numa escalada de discussão difícil de parar.
Nenhuma relação de casal começa do zero. Cada indivíduo traz um sistema de crenças, de sonhos, um imaginário em relação ao casamento. Um lugar construído a partir de experiências com a família de origem, das relações já vividas, de amores amados e amores perdidos, e da cada cultura. Cada elemento do casal chega à relação carregado com o seu imaginário.
No início nos primeiros momentos de paixão, o outro é o sonho, é o imaginário em forma de real. É tudo! O tempo, marcado pelo relógio que não pára, irá progressivamente revelar que o sonho é muito mais. O sonho é sempre maior do que o outro. O outro já não é tudo! A relação começa a ser uma partilha de sonhos, de imaginários, de crenças.
É através desta partilha que cada casal… vai construindo o seu modelo, o seu contrato relacional numa conciliação entre os sonhos individuais e os sonhos de casal. Contudo, podem existir sonhos que não terão lugar na relação de casal, ou seja, existem ideias, valores, que podem não ser absorvidas pela relação de casal.
Podemos então pensar que uma relação feliz pressupõe um processo ativo de redefinição de papéis, de posições, de regras de colaboração, e não uma guerra ou um combate entre sonhos.
Diana e João: o imaginário de cada um coloca o casal em posições opostas
Diana tem como um dos objetivos de vida a abertura de um novo escritório de advogados, para isso, trabalha afincadamente durante muitas horas. Desde muito nova afirma que a sua identidade e o seu bem estar, passa por se sentir realizada enquanto profissional.
O João sente que precisa de andar de bicicleta para se sentir calmo, o desporto é fonte de equilíbrio e de bem estar. O tempo individual do João sempre foi um problema, a Diana sente que a ausência do João coloca em causa o tempo de casal, o tempo a dois, ameaçando o amor que os une. O imaginário de cada um, e a forma como discutem os seus pontos de vista, coloca a Diana e o João em posições diametralmente opostas, geradoras de muita tensão e sofrimento.
Clara e Ricardo casados há 22 anos, chegam-nos ao consultório, desiludidos, muito zangados, com uma tensão espelhada no rosto e na forma como se olham. Têm dois filhos adolescentes, carreiras profissionais exigentes, partilham que os ciclos negativos de conflito em que entram nos momentos de discussão invadem todo o casamento. Discutem, segundo eles, de uma forma agressiva que os deixa cheios de dúvidas se vale a pena continuarem a relação.
A forma de comunicar é determinante para a qualidade da relação
Quando refletimos sobre estes casais lembramo-nos da teoria de Jhon Gottman, acerca da forma como os casais comunicam nos momentos de discussão, e como a forma de comunicar é determinante para a qualidade da relação.
Um primeiro sinal a que devemos estar atentos é a forma como a comunicação na discussão se inicia. Casais que no desacordo iniciam a comunicação de uma forma abrupta, repentina e negativa, têm menos probabilidades de terminar de uma forma calma a discussão. Ex: - Tu não pensas em mim nem na nossa família, só queres saber do desporto; - A casa está um caos, não fazes absolutamente nada. Quando a comunicação se inicia repentinamente sem transição gradual, diz-se que teve um início abrupto.
Ao iniciar desta forma, iniciam-se também as críticas. A crítica, segundo este autor, introduz culpa e ataque ao carácter do outro. Nos casais que se percepcionam como satisfeitos e com maior facilidade em comunicar divergências de temas podem utilizar a queixa. Ex: - Fiquei muito zangada por não me teres ajudado de manhã com as miúdas. - mas não colocam em causa a identidade do outro, contrariamente a uma crítica que seria - Não queres saber de nós.
Muitos dos casais não ficam só pelas pelas críticas. Há casais que evoluem rapidamente, entram no sarcasmo, no gozo, no desprezo. Quando a Diana propõe ao João que façam uma lista de tarefas, o João responde - Mas tu, em algum momento vais ser capaz de seguir listas, por favor?. - Quando se transmite alguma informação em tom sarcástico, hostil, torna-se muito difícil solucionar qualquer questão.
O desprezo leva, os casais, de uma forma muito rápida para o lado oposto ao da reconciliação
A Diana tenta diminuir a tensão e pergunta - Podemos tentar ?. - O João poderia agarrar esta oportunidade e diminuir a escalada de conflito. São estes momentos, que muitos casais usam para baixar a tensão e tentar uma reaproximação. No entanto, o João diz - Já te expliquei que acho que elas são umas mimadas, que não fazem nada e que a culpa é tua, permites tudo.
A Diana e o João continuam a subir cada um a sua escada de agressividade. É nesta subida que surge a comunicação defensiva, um empurrar o outro para baixo, vês vou chegar ao topo mais depressa. A forma defensiva de comunicar produz uma dinâmica no conflito muito difícil de parar. A crítica, o desprezo e a postura defensiva, nem sempre aparecem por esta ordem, mas umas dão lugares a outras e tornam o conflito muito violento e difícil de parar.
Para casais como os que servem de exemplo para este texto, onde as discussões arrancam abruptamente, onde a crítica e o desprezo conduzem a mais desprezo e maior crítica, muito provavelmente um dos parceiros acaba por perder a sintonia emocional.
Normalmente, o silêncio tem como função a proteção da relação
É neste momento que surge o silêncio. Normalmente, o silêncio tem como função a proteção da relação. Uma vez que a crítica, o desprezo se tornaram dominantes e muito difíceis de gerir. No entanto, o silêncio de um dos elementos pode aumentar o espaço do outro para criticar e desvalorizar. O silêncio torna-se perigoso.
Por fim, uma fase muito importante do ciclo de conflito é a fase de reparação. A fase da reparação é o momento em que os casais tentam a aproximação com o objetivo de reduzir a tensão que ocorreu durante a escalada de agressividade.
O Ricardo muitas vezes utiliza a frase - Vamos fazer uma pausa. - Ou -Tenho que me acalmar primeiro. - Neste momento, o Ricardo tenta travar a escalada e colocar limites na discussão procurando espaço para auto-regular o seu estado emocional. O sucesso, de como os casais gerem a fase de reparação pode ser um bom indicador na alteração do padrão de comunicar os conflitos.
Gottman, nos seus estudos sobre a forma como os casais comunicam ajuda-nos a pensar na forma estrutural da discussões. O exemplo que partilhámos anteriormente exemplificou a forma. Contudo, gostaríamos de mergulhar nas profundezas das discussões e pensar nas emoções que poderão estar por debaixo do arranque abrupto, da crítica, da defensiva e do silêncio, usando a lente da Terapia focada nas emoções para casais de Sue Johnson.
O Ricardo e Clara refletiram acerca do porquê deste ciclo negativo e como as emoções da raiva e zanga e o silêncio poderiam ganhar outros significados. A zanga, a raiva as exigências, são, na realidade gritos dos elementos do casal, são formas de tentar recuperar a ligação e restabelecer uma relação segura.
Perder a conexão emocional com a pessoa que se ama põe em perigo a sensação de segurança. No momento de discussão os casais por vezes não pensam, agem. Contudo, todos vivemos e sentimos medos quando discutimos com os nossos companheiros, no entanto, para aqueles que se sentem seguros o medo é transitório.
O medo rapidamente se neutraliza. Para aqueles que têm relações mais inseguras, frágeis, o medo pode pode ser avassalador. Nos momentos em que o medo surge, os pedidos de conexão, para quem tem este último tipo de relações, provavelmente irão carregados de raiva e frustração.
O ciclo negativo tem como objetivo receber uma resposta que permita confirmar o amor. Neste ciclo, existem emoções secundárias, as que são lidas e interpretadas pelos elementos do casal muitas vezes de forma distorcida e que leva à manutenção do ciclo.
A pessoa que procura de uma forma agressiva o amor, muitas vezes sente, como emoção primária, o medo primitivo do abandono. A outra pessoa muitas vezes sente ansiedade por não corresponder, e muitas vezes sente que não é suficiente bom, que não consegue estar à altura para satisfazer as necessidades do outro.
Este medo fica de tal forma forte que o afastamento pode ser perpetuado e muitas vezes mantido pelos passos que o outro elemento dá.
Clara percebeu que os seus gritos podem ter implícitas as questões: - Posso contar contigo, apoiar-me em ti?; Podes me responder quando precisar de ti?; Sou importante para ti?; Valorizas-me e aceitas-me?; Precisas de mim, confias em mim? – bem como o silêncio do Ricardo pode não significar afastamento mas sim proteção da relação.
Muitas vezes, encontramos dificuldade nos momentos da auto-regulação. Para alguns elementos, o momento da regulação só pode acontecer com o outro, só se regulam na relação com o outro.
Este movimento torna o ciclo mais intenso e com grandes possibilidade de continuar a escalar, pois o outro normalmente não tem capacidade de se manter na escalada de discussão, pois para o outro elemento do casal, a regulação só pode acontecer quando estiver sozinho, o que poderá ser interpretado como afastamento e corte da relação.
Assim, torna-se bastante importante perceber a estrutura do ciclo negativo, mas mais importante ainda é perceber as necessidades de apego e de relação que poderão estar no interior desta dança.
Na prática, quando conseguimos, com os casais, experenciar estas emoções, necessidades e desejos, começamos a sentir a tensão contida na relação a baixar, a reconectarem-se, começam a discutir sem ferir e mostram-se disponíveis para contar novas histórias.
Os casais apresentados são recriações inspiradas na prática clinica.
Texto de: Teresa Carvalho, Psicóloga Clínica
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