A arquiteta paisagista Cristina Castel-Branco visitou 54 jardins em Quioto, no Japão, no âmbito de um curso sobre jardins japoneses ministrado por professores da universidade de artes daquela cidade nipónica. As linhas que se seguem constituem as suas impressões sobre os espaços visitados, num relato feito na primeira pessoa. "Marcaram-me, no primeiro contacto, as pedras", recordaria anos mais tarde à Jardins.
"Os muros de pedra assente de forma tão diferente da nossa, os pavimentos onde cada pedra foi encaixada na outra como um puzzle sem intervalos, mas como que deixando as formas soltas. Imaginei horas e horas de trabalho a tentar acertar o contorno das pedras, o seu encaixe em conjunto para criar cada um daqueles tapetes ladeados de musgo que nos fazem chegar à entrada dos templos e dos jardins", refere.
"Mais tarde, vim a saber que nada é ao acaso. A disposição das pedras é pré-definida de acordo com o shin gyo so, de formal, semi-formal a irregular. Como tudo na vida!", sublinha Cristina Castel-Branco. "No jardim, tudo é sossego e veneração, como se neste espaço misterioso viéssemos encontrar o próprio mestre do chá, o grande padre do templo ou até mesmo o Shogun [o antigo ditador militar]", prossegue.
"Só destoam os bilhetes, caros, que é preciso comprar, mas mesmo o tirar dos sapatos e a passagem descalça para os tapetes de palha tatami que revestem completamente o chão, é mais um ritual para nos aproximarmos dos antigos que no século XIII ou do século XVII , ali viveram, ali contemplaram as mesmas rochas que agora se nos revelam enigmáticas, quase com vida, em contraste negro com o quartzo penteado", diz.
A(s) história(s) que os jardins japoneses escondem
O passar do tempo sente-se em cada detalhe. "Tudo aqui é antigo, tudo tem história, nada tem menos de séculos ou milénios", refere Cristina Castel-Branco. "Sobre este assunto das pedras, há termos próprios porque há técnicas milenares para cada tipo de muro em pedra ishizumi e a quantidade de termos relacionados com pedras no glossário de termos japoneses indica a sua importância nos jardins japoneses", afirma.
Muitos livros se escreveram sobre a disposição das pedras, os seus significados, as suas formas. "Conhece-se toda a história da sua evolução como entes fundamentais do jardim zen", afirma. Foi no ano de 1191 que o monge budista Eisai trouxe da China as sementes de chá e dedicou a sua vida a espalhar pelo Japão os princípios da seita zen budista em simultâneo com o chá, afirmando que "zen e chá têm o mesmo gosto". Como se passa do chá ao jardim zen e, depois, às pedras sobre o quartzo é história mais complexa, que não é para já.
"Mantenho-me nas primeiras impressões que são as mais importantes. Depois das pedras, ao entrar nos jardins, admirei-me com o traçado dos caminhos que dão primazia à diagonal, ao traçado quebrado ou à irregular colocação das stepping stones para as quais não encontro tradução senão em japonês, tobi ishi, que foram inventadas por altura da entrada do jardim do chá e do zen na cultura japonesa", refere.
O jardim onde temos de descalçar os sapatos
A surpresa é uma constante. "O efeito deste ziguezague é ir descobrindo o ponto para onde avançamos através de diferentes ângulos, o que aumenta o mistério, o interesse e a importância da chegada", admite a arquiteta paisagista. "Se o jardim for só para meditação, então ainda temos mais uma emoção à nossa espera", assegura. "O jardim não se visita. Não se entra para dentro dele", adverte Cristina Castel-Branco.
Mas, então, como é que se faz? A resposta é quase imediata. "Olha-se a partir da varanda sobreposta ao jardim que limita todos os lados dos pavilhões de madeira", defende. "Ao entrar tiramos os sapatos, passamos a falar baixinho e seguimos novamente linhas quebradas, sentindo a madeira já rugosa por baixo dos pés e vamos visitando o jardim a partir de uma zona de penumbra, apreciando os ângulos devagar", conta.
Ao percorrer estes alpendres virados para o jardim, como também lhes chama, é impossível não os sentir. "As pedras parecem mover-se, os montículos de musgo parecem mudar de sítio, os bambus ao fundo deslizam como códigos de barras em movimento, a água aparece e desaparece conforme o ângulo do alpendre. O truque de quem desenhou este método de apreciação dos jardins é genial!", considera.
"É claro que, a partir de certa altura, paramos no ângulo que mais nos interessa, sobre a varanda ou já dentro do pavilhão, ajoelhados sobre o tatami e ficamos a olhar. A contemplação é obrigatória. A meditação pode vir a seguir conforme o trafico de visitantes e a nossa disposição mental. Os efeitos de luz através da vegetação parecem estudados e um jardim é sempre diferente de cada vez que se visita. Se chover, não há problema, estamos resguardados nestas plataformas de madeira sob o alpendre. As pedras ficam molhadas, o musgo agradece e as pingas de água vêm juntar-se à nostalgia que sentimos, de um passado muito longínquo", conta.
É impossível não a sentir em determinada altura da visita. "Como se o cenário não nos tivesse já feito passar para outro mundo, vimos chegar um tabuleiro trazido por uma senhora silenciosa, vestido de quimono de seda, igual à das gravuras, que se ajoelha também e entrega com gestos especiais e sempre iguais um líquido verde espumoso e quente a quem lhe pagou à entrada e conhece os hábitos da casa", refere.
A magia da estética em todos os detalhes
A cerimónia do chá é obrigatória nestas visitas. "O jardim passa para segundo plano e o tomar chá com tanto requinte torna-se imprescindível. Não se sabe como, mas a relação entre o gosto do chá com a meditação que se inicia quando o olhar passa sobre o musgo do jardim, vagueia nas ondas perfeitas que as pedras de quartzo definem ou para sobre as formas arredondadas dos pinheiros podados", afirma Cristina Castel-Branco.
"Confirma-se que a frase do monge Eizai faz todo o sentido", garante. "O zen e o chá são o mesmo, no paladar", anui. "A descoberta da total artificialidade da forma das plantas começou por me intrigar e, depois de perceber a razão das podas e o cuidado e arte com que são feitas, rendi-me ao resultado das formas pendentes das árvores, dos tufos de agulhas nos pinheiros que se conseguem com uma poda feita só com os dedos", diz.
As linhas de arbustos em forma de rolo são conseguidas ao longo de décadas, à boa maneira japonesa. "As cerejeiras quando florescem na primavera têm os ramos pendentes em forma de mão e criam leques fantásticos de flores", descreve Cristina Castel-Branco. "O trabalho que precede estes efeitos é permanente, paciente, sem atrasos nem pressas. E exige muito conhecimento", sublinha a portuguesa.
A quarta grande descoberta desta viagem
À medida que ia visitando os jardins, a(s) descoberta(s) era(m) uma constante. "No outono, o vermelho dos aceres não é descritível. Não há palavras. Recorro, por isso, ao termo japonês para exprimir a emoção criada pela beleza que vi hoje no jardim de Tenjuan. Awaré, que significa literalmente intensa emoção sentida como resposta à beleza, especialmente à beleza subtil e efémera", diz a arquiteta paisagista.
A quarta descoberta desta sua viagem foi líquida. "A água para tudo. Primeiro, o efeito de espelho para as árvores que se debruçam sobre a água. Há jardins que se visitam à noite e provavelmente foram desenhados para serem vividos à noite, com os caminhos e as árvores iluminados por lanternas de bambu. O efeito da água negra a servir de reflexo à cor da árvore já vermelha ou à silhueta dos pinheiros leva-nos para um mundo mágico. No meio dos lagos, eles constroem ilhas e, quando a água pára tudo o que está sobre a ilha, pedras, árvores e taludes de musgo repetem-se sobre a superfície de água", garante.
A sabedoria é mais uma vez magistral, como a caracteriza. "Há ainda as cascatas, as pontes, os atravessamentos sobre pedras, as carpas movendo-se lentamente sobre o fundo lodoso mas sem levantar poeira, também elas de um asseio imaculado, além dos lírios, das cerejeiras em flor e das glicínias que não vi florir mas imagino nos seus efeitos de cor quando chega a primavera", desabafa Cristina Castel-Branco.
O apego aos jardins, o orgulho na sua manutenção e na sua longevidade, a qualidade dos efeitos estéticos, o conhecimento da história dos jardins, tudo revela uma cultura forte, "com brio e estima própria", como a descreve a arquiteta paisagista. "A lição, para nós portugueses e para aquilo que fazemos dos nossos jardins, públicos e privados é eloquente. Será porque a nossa cultura é fraca, sem brio e sem autoestima?", questiona.
Conselhos de viajante para quem quer ir ver estes jardins in loco
Os bilhetes custam, em média, cerca de 650 yens, menos de 5,50 euros. Em média, o chá custa 500 yens, menos de quatro euros. "Para ter uma ideia, só em Quioto há 40 jardins que merecem inequivocamente ser visitados, o que aponta para uma visita de pelo menos uma semana se os quisermos ver todos", adverte Cristina Castel-Branco. E, ainda assim, não poderá permanecer muito tempo em cada um deles.
Se o fizer, correrá o risco de ter de eliminar posteriormente um ou outro da sua lista. "Para visitar os jardins imperiais, é preciso obter uma autorização especial no Imperial House Hold, que fica no jardim imperial no centro de Quioto e alguns dos templos só abrem os seus jardins a quem tiver pedido com antecedência por carta para os visitar", adverte ainda a arquiteta paisagista. Se for o caso, planifique atempadamente a viagem.
Texto: Cristina Castel-Branco (arquiteta paisagista e professora) e Luis Batista Gonçalves (edição digital)
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