Volvidos quatro anos sobre o lançamento e sabendo-se que a memória se dá ao esquecimento, há que recordar um livro de mão e inspiração do chefe de cozinha Pedro Mendes (Marmoris Hotel, em Vila Viçosa). Na trintena de receitas oferecidas ao prelo, é feito recordatório da utilidade para consumo humano do fruto de árvores da família do carvalho. Um fruto rico nutricionalmente, não mais de 5 centímetros de comprimento e com perto de 10 gramas de peso.
Muito justamente, Pedro Mendes deu de título à sua obra “O Renascer da Bolota”, vendo-lhe contributo para a mesa e afastando-a do velho adágio, “a bolota é para os porcos” (embora as vacas e as cabras também a comam). Também o é, como peça e benefício de um todo maior, o sistema de montado, modo de produção milenar, apanágio das regiões mediterrânicas.
Contudo, como bem o sublinha a história, o fruto do carvalho, da azinheira e do sobreiro, não é um estranho que bate agora à porta da alimentação humana. Sem delongas, deu-se-lhe uso em pães, misturando entre outros cereais com o trigo, também a água, o sal e o fermento. Isto, antes do Alentejo, solar maior da produção de bolota em Portugal, ter substituído este fruto, por cereais de crescimento rápido, como o trigo. Dos 450 mil hectares de azinhal existentes nos anos de 1960, restaram perto de 150 mil hectares depois das campanhas cerealíferas.
Dos 450 mil hectares de azinhal existentes nos anos de 1960, restaram perto de 150 mil hectares depois das campanhas cerealíferas.
Não é apenas Pedro Mendes quem, com perseverança, nos recorda que este fruto com uma produção superior a 400 mil toneladas por ano no nosso país, também nos conquista pelo palato. Não bastando como suficientemente tentador o argumento da mesa, que nos guiem as conclusões de um estudo desenvolvido em 2015 pela Escola Superior de Biotecnologia da Católica-Porto ao afirmar a bolota como “rica em fibra e proteína, sem glúten, perfil de lípidos semelhante ao azeite e uma riqueza em compostos antioxidantes”.
Argumento nutricional que valida, por exemplo, que a “revolução” sob as azinheiras e dentro do montado se faça de inúmeros contributos. Um deles, aquele que o Festival Terras sem Sombra, iniciativa que integra música, património e ações de salvaguarda da biodiversidade, incluiu na sua programação para 2020 (em 13 concelhos alentejanos, aos fins de semana, de janeiro a julho), oferecendo-nos a oportunidade de, numa propriedade com pouco mais de uma centena de hectares, perceber como a bolota faz prova de que a interioridade também pode ser uma oportunidade - conquistada com esforço, diga-se em abono da verdade.
No seu Moinho de Pisões, Teresa Rita Barrocas, dá uso à bolota que de novembro a janeiro, abandona o berçário que lhe deu vida, os ramos da azinheira, para povoar o solo.
No seu Moinho de Pisões, próximo a Aldeia da Serra, Teresa Rita Barrocas, dá uso à bolota que de novembro a janeiro, abandona o berçário que lhe deu vida, os ramos da azinheira, para povoar o solo. Teresa encontra, desde 2013, novos formatos de comercialização para o fruto da azinheira, fazendo-lhe um casamento com um outro fruto, nado nos calores da cintura tropical das américas, trazido para a Europa no século XVI, o Cacau.
Uma fantasia com um colorido tropical distante da paisagem com o verde campestre de março que emoldura a estrada coleante, calcorreada até à proximidade do Moinho de Pisões. Cumpridos os sete quilómetros de N307 desde Arraiolos, sede de concelho; adicionados mais meio quilómetro em caminho de terra batida (em bom estado) e pouco mais de cem metros a pé, eis que nos deparamos com o cenário que constrói o Éden alentejano de Teresa Barrocas. Nele, um moinho movido a força de água encostado à Ribeira de Divor, aqui um remanso de aconchego para a vegetação das margens. Sob a fronde de um freixo que anuncia prematuramente a primavera, o sorriso largo de Teresa. A vida na cidade ficou para trás, assim como o curso na área da comunicação e a vida profissional. Teresa é feliz no seu moinho do século passado, antes utilizado como forno para fazer pão e armazenamento de farinha.
Como casa tem, também, “170 hectares de azinhal e algum montado”. Para exploração da bolota, a empresária recorre a “25 hectares”. Não é só alegria bucólica. Há muito trabalho envolvido, mão-de-obra “difícil de encontrar. Quem aqui trabalha sazonalmente precisa de transporte. Levo e trago as pessoas que apanham a bolota desde as suas localidades”. Um trio de meses de muito afã à sombra do azinhal que obrigam a caminhadas prévias. “Há que perceber onde está a cair a bolota. Só apanho a que cai no chão. Quando vejo que caem muitas, é hora de chamar as pessoas para a apanha”. Teresa assinala todas as árvores. Conhece os caprichos de cada uma. Sabe que a bolota tem um carácter volúvel. Há as doces, outras amargas.
Isso mesmo nos confidencia Ana Fonseca, investigadora Instituto de Ciências Agrárias e ambientais mediterrânicas da Universidade de Évora, que se junta à visita ao Moinho de Pisões: “O mesmo azinhal pode ter bolota doce e amarga, esta última com mais taninos. As variedades aparecem misturadas de uma forma incrível. Se fossem todas doces, estariam mais expostas aos ataques dos insetos”.
Teresa sabe-o. Como também conhece, na sua nova história de vida iniciada em 2013, o ciclo que antecede a apresentação comercial dos seus bombons de bolota (“para os fazer, junte-se água quente, açúcar amarelo, chocolate negro – do bom -, farinha de bolota”). “Há depois da apanha da bolota que fazer a secagem natural durante alguns meses, descascá-la e moê-la para obter a farinha”.
Uma tonelada de bolota é quanto Teresa tira anualmente da sua propriedade. Uma migalha no contexto da produção anual e que se estende do norte do país (com a bolota de carvalho), ao sul, particularmente o Alentejo (com o azinho e montado) e que, como nos recorda Miguel Sottomayor no seu trabalho “Potencial Económico da Bolota em Portugal” (symposium A Bolota, Herdade de Freixo do meio, 2015) se destina preponderantemente, à engorda de suínos de raça Alentejana em montanheira (mais de 83 mil toneladas), outras espécies pecuárias e apanha para processamento em farinhas (1%). Na época, 55% das bolotas produzidas em Portugal eram desperdiçadas.
Farinha de bolota, base para muitos “petiscos”
À farinha, que também comercializa, Teresa junta-lhe um elenco de “petiscos” que nos dá a provar aqui no Moinho de Pisões e com os quais percorre feiras e mercados fazendo mostra do seu labor. Três exemplos: biscoitos de farinha de bolota, mousse com a mesma (receita na caixa) e um apetitoso pão. “A farinha também poder utilizada para bolos, engrossar cremes e em doces conventuais”, acrescenta a empresária.
Uma arte de encontrar caminhos à mesa para a bolota que tem maternidade antiga. Já no século XIX, Soror Maria Leocádia Tavares de Sousa que professou no Convento da Conceição de Beja, deixava em registo a sua receita de Queijinhos de Bolota: “Ponha 500 g de açúcar em ponto de cabelo e deite 500 g de bolota, pelada e ralada. Junte uma clara de ovo e um pouco de canela. Retire do lume depois de ferver e deixe arrefecer. Com esta massa fina, molde com as mãos uns queijinhos, metendo no meio recheio de ovos moles”.
Já no século XIX, Soror Maria Leocádia Tavares de Sousa que professou no Convento da Conceição de Beja, deixava em registo a sua receita de Queijinhos de Bolota.
No momento presente não é com Queijinhos de Bolota que Teresa nos adoça a visita. Antes, nos presenteia com uma tarte de limão com base em farinha do fruto da azinheira. Também provamos o pão que ganha com o sabor da erva-doce e que “precisa de levar uma levedura especial, este pão só com a farinha de bolota tende a ficar duro”, sublinha a proprietária do Monte de Pisões.
Adaptações da bolota que, por exemplo, em 2018 também chegaram ao laboratório de uma equipa de investigadoras da Universidade do Porto que desenvolveram e apresentaram um produto à base de bolota que substitui o café. A equipa envolvida criou um pó a partir do café que, tal como este, é dissolvido em água, antes de consumido.
Uma máquina de captar água
Ainda sobre as características da bolota e da sua árvore-mãe, espécie que pode viver 500 anos, acrescenta Ana Fonseca: “suporta temperaturas mais extremas do que o sobreiro. Este tende a ter uma distribuição na bacia do Tejo, zonas mais próximas ao litoral no Alentejo e serra algarvia. A azinheira ocupa a zona mais interior do país”. Uma espécie que tem na casca uma defesa ao stresse térmico. Já as “folhas possuem uma espécie de resina que as protege durante o estio”, sublinha a investigadora sobre esta “máquina de captar água e nutrientes do solo. Uma árvore de copa larga e raízes que podem chegar aos 20 metros, algumas superficiais, outras mais profundas que chegam aos lençóis freáticos”. Espécie sobrevivente num clima difícil que “aprendeu” que a associação é um bom fator de sobrevivência. “Fazem, a ligação dos seus rizomas, abaixo do solo, a fungos à superfície que acabam por ligar todas as árvores”.
Uma relação de interdependência que outro interveniente nesta ação de alerta para um recurso local, nos recorda. José Mira Potes, engenheiro, traz à visita ao Moinho de Pisões a sua experiência de décadas na gestão do montado. Sob uma chuva miudinha e insistente que refresca solo e copas frondosas, José Potes lança mão de um cartaz com perto de 20 anos. Nele sintetiza a sua “revolução” no montado. A que fez há duas décadas em 270 hectares de montado abandonado na Herdade das Laranjeiras, em Arraiolos. “Recuperar ambientes tem muito que se lhe diga. Desenvolvi um projeto com cabras em cultura extensível. Criei vedações, dotei a propriedade de água para os animais. Os caprinos são uma espécie muito melindrosa, embora sejam muito rústicos e grandes consumidores de matéria vegetal inflamável, quando se juntam animais de várias proveniências há problemas sanitários”.
José Mira nunca teve problemas desta ordem, ultrapassou as dificuldades impostas pela “Mão-de-obra difícil. Tive mais de 20 cabreiros” e dá-nos uma lição de salvaguarda de ambientes naturais, mas também ordenados pelo Homem. “O montado é um sistema agro-silvo-pastoril. É isto que o agricultor do Mediterrâneo faz há milhares de anos. Um sistema que nos permite criar condições para não falarmos do recurso a subsídios, antes a prestação de serviços ambientais. Como? Com a recuperação do solo, sequestro de carbono, fomento do ciclo da água, conservação da biodiversidade, combate aos incêndios”.
Uma relação das populações estabelecidas com o ambiente que vem de longe, assim como a utilização da bolota para alimentação humana. Sublinhou-o o historiador José Mattoso ao defender que a alimentação humana no período do Bronze Final era complementada com bolota. Segundo este autor “seria consumida pilada, sob a forma de papas ou pão, após ser torrada e triturada. com uma tonelada anual”, como nos é recordado no trabalho “O consumo humano de Bolota”, apresentado já em 2007 por Ana Margarida Pinto da Fonseca, da Herdade do Freixo do Meio. Aliás, cabe também a esta propriedade em regime de Agroecologia, sita no concelho de Montemor-o-Novo e ao seu proprietário, Alfredo Sendim, uma quota-parte deste renascimento da bolota. Pão, bolos, bolachas, pastéis de nata, bombons, filhoses, doçaria regional, sopa, croquetes, hambúrgueres, enchidos, pratos confecionados, café, licor, aguardente, cerveja, gelado, iogurte, são alguns dos produtos que esta empresa familiar já nos deu a provar tendo como base a bolota.
Também para não nos distrair do potencial deste fruto seco, ainda em novembro de 2019, decorrer em Lousada a terceira Conferência Ibérica sobre a Bolota.
Dos palcos mediáticos para a discreta existência num cantinho do concelho de Arraiolos, a bolota encontrou em pessoas como Teresa Rita Barrocas uma amiga que abraça um cesto carregado com este fruto seco, da mesma forma que o faz a quem a visita. Na pequena loja que explora no Moinho de Pisões, aqui estão os pães, as farinhas, as bolachas e os bombons de bolota. Teresa também disponibiliza os seus doces na pastelaria Espiga D’Ouro e na Mercearia Manjerona, em Arraiolos, assim como na casa Vale da Aramenha, em Marvão. Tudo em pequenas quantidades porque o labor é artesanal.
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