Conhecemos Ana Marques Pereira, médica de profissão, especialista em Hematologia Clínica, de anteriores conversas, não sobre a saúde dos portugueses, antes sobre a relação entre a cozinha e a nossa cultura e história.
Desta feita, o tema é apetitoso, os licores e a irresistível ligação entre álcool, frutas, ervas, temperos, flores e um elemento doce como a sacarose ou o mel. Uma bebida que nos desperta memórias lusas, mais não seja pela omnipresente ginjinha tão ligada a todo um imaginário lisboeta.
Acresce que uma conversa com Ana Marques Pereira, é invariavelmente campo para aprofundarmos matéria sobre questões articuladas com a nossa gastronomia no seu sentido mais lato. Não apenas aquilo que cabe no prato, mas também como aí chega, o que o enforma e todas as relações sociais, culturais e históricas que lhe estão ligadas.
Assim foi com a nossa primeira entrevista a esta médica, coordenadora do blogue Garfadas Online e autora do livro “A Dinastia de Bragança” [2000, 2007 e 2012], obra que nos apresenta a evolução dos hábitos de mesa na corte portuguesa desde o século XVII até ao início da República Portuguesa. Mais tarde, haveríamos de conversar de novo com Ana Marques Pereira a propósito de um outro título, “Do Comer e do Falar”, obra que emanou de três anos de trabalho entre a médica e a filóloga Maria da Graça Pericão. O resultado, um livro com milhares de entradas com vocabulário de uso corrente, regionalismos, estrangeirismos, termos técnicos, entre outros.
Agora, sentamo-nos frente à também bibliófila Ana Marques Pereira, nascida em Castelo Branco, vivendo em Lisboa e autora de uma obra incontornável quando queremos perceber os licores nacionais.
Chama-se o tomo, com perto de 300 páginas, “Licores de Portugal”. Título que parte de uma edição de autora e que, como percebemos da leitura da introdução que lhe é feita, incide sobre um tema que mereceu até à data pouca atenção.
A documentação sobre licores portugueses é escassa, o registo de marcas e patentes também é esparso. Acresce que, em Portugal, pouca importância é atribuída por muitas empresas ao seu espólio. Trabalho acrescido para Ana Marques Pereira que se lançou numa jornada de investigação de fontes orais, registos de marcas, registos de licenças comerciais e as informações comerciais publicadas. De consulta dos poucos livros existentes sobre o tema e, inclusivamente, junto dos arquivos das vidreiras que produziam as garrafas para os licores.
É sobre esta demanda da nossa tradição licoreira, do derrubar de alguns mitos, como o da larga tradição de licores conventuais e de todas as relações sociais que se estabeleceram em torno dos licores e de um mundo de artefactos que lhes estão ligados, que versa esta troca de palavras. Uma conversa de sofá, espicaçada por um bom café e por uns bolinhos de labor caseiro de nos fazerem pedir mais. Não fossem as regras da boa educação impor os seus limites, naturalmente.
Esta nossa conversa tem como mote o seu livro “Licores de Portugal” . Tudo tem uma origem. No caso vertente como nasce o seu interesse pela abordagem aos licores nacionais?
Surgiu recentemente. Quando enveredei pelo estudo da comida e alimentação decidi excluir as bebidas para não tornar o objeto de estudo vasto. Entretanto, aquando da abertura, em 2011, do Centro de Artes Culinárias, em Lisboa, dirigido por Maria Proença, foi-me lançado um repto, organizar uma exposição sobre um alimento que fosse tipicamente lisboeta. Lembrámo-nos da ginjinha lisboeta, com características que a tornam diferente das restantes do país.
Contudo, seria uma exposição muito restrita. Dado a ginjinha ser um licor, seria lógico organizarmos uma mostra sobre os mesmos, existindo uma abordagem específica à ginjinha. Esta para os lisboetas é muito importante, as lojas onde é comercializada são espaços abertos para o exterior e tem características únicas.
Ou seja, a doutora Ana Marques Pereira, acabou por se entusiasmar com o tema.
[Risos] Começo sempre por algo simples e acabo por me entusiasmar. Depois, acabei por escrever o livro. Essa exposição foi muito interessante por contar a história dos licores, a bebida tradicional, que atravessou um período em que esteve na moda e, depois, deixa de o estar, tirando alguns licores franceses.
Na altura comecei a estudar detalhadamente o tema e a adquirir objetos. Comecei por comprar livros, garrafas de licor e licoreiros. Acabo por perceber que existe um mundo por explorar ligado a este alimento.
Também percebo que a documentação sobre este tema no nosso país é escassa. Os empresários nacionais não têm o hábito de conservarem os seus espólios antigos. Quando consegui selecionar os proprietários, fiz recolha de testemunhos orais e dos elementos escritos que persistem. Também consultei registos de marcas, de licenças comerciais e informações comerciais publicadas. Colecionei rótulos, faturas, catálogos, publicidade.
E não mais parou. É uma perfecionista e para si a procura de novas informações é um trabalho em progresso como se usa dizer. Continua a desenvolver investigação no que respeita aos licores mesmo depois de encerrado o capítulo livro?
Sim, inclusivamente proferi uma conferência sobre a vertente social nos licores. Nunca repito o tema das conferências, refaço os conteúdos e adapto-os ao público. No encerramento da exposição na Marinha Grande [aberta ao público até 8 de abril de 2018] irei falar sobre a utilização do vidro nas garrafas de licores. É importante informar sobre quando surgiram os licores, a sua componente social e como a garrafa é um objeto de estatuto. Uma pessoa com mais posses adquiria um licoreiro maior ou mais luxuoso.
Repare, a época impõe os usos e costumes. Atualmente, tendo visitas em casa, oferecemos-lhes um licor. No passado oferecia-se ao comensal meia dúzia de licores. A pessoa escolheria. Os móveis eram mostra dos licoreiros das famílias e os copinhos condiziam com as garrafas. Os convidados escolhiam, dependendo se gostavam mais de laranja, groselha, morango, enfim, a gosto pessoal. Numa casa mais pobre existia um único licoreiro.
Na prática o Licor também como uma afirmação social?
Sim, uma afirmação social, tal como aconteceu antes com o chá e o café. Com a introdução de um novo alimento, surgem também novos objetos para que possam ser consumidos.
Gostaria que remontássemos esta conversa às origens, nomeadamente à introdução por exemplo, dos métodos de destilação, essenciais para produzir os licores, no território que agora é Portugal. Podemos começar por ai?
Sim. Julga-se que os árabes, criadores do alambique, introduziram na Península Ibérica a destilação em artefacto metálico no século X. Isto na região da serra de Monchique, no Algarve. Mais tarde, já no Século XVI, o ofício de caldeireiro, responsável pela construção de alambiques, era reconhecido em Lisboa. É quando surge também a afirmação da produção dos licores, mas nesta época no sentido medicamentoso.
Por exemplo, os cordiais que eram remédios alcoólicos considerados revigorantes para o coração, estimulando a circulação. Acreditava-se que se concentrava no álcool o poder de determinada erva ou fruto. Mas, sublinho, sempre com um sentido medicinal. Eram preparados farmacêuticos feitos localmente por receita médica.
Era uma atividade legislada. Por exemplo, a rainha D. Maria I criou em 1782 a Junta do Proto-Medicato, com a finalidade de regulamentar e fiscalizar os ofícios ligados à arte de curar. Isso incluía a proibição de vender licores e aguardentes sem autorização daquela entidade.
Quando surge o açúcar e este se vulgariza, principalmente no século XVII, o novo ingrediente é adicionado à bebida para facilitar o seu consumo, tornando-a mais agradável e dissipando o sabor a álcool.
E dentro dos conventos? Hoje encontramos uma considerável lista de licores com origem conventual. Há registos sobre a produção dos mesmos?
Há muitos licores que associamos aos conventos, provavelmente com um fundo de razão. Nos conventos existiam enfermarias e boticas. Contudo não existem provas da produção, as receitas não passavam para o exterior. Não existe nenhuma receita conventual para um único licor. Exceção feita ao Licor de Rosas, feito no mosteiro das Clarissas de Vila do Conde, conhecendo-se duas receitas.
Existe, sim, a associação dos monges ao licor, usada de forma comercial. Por exemplo, o Licor Carmelita, produzido em 1906, o Licor de Padre, registado em 1919 pela Companha Portuguesa de Licores, o licor Bernardino, criado pela Sociedade Vinícola da Província do Douro, Lda.
Acaba por ser um aspeto muito interessante, porque esta mística enriqueceu a publicidade, os rótulos, muito bonitos, coloridos, chamam a atenção.
Contudo, ainda hoje bebemos um licor nascido, efetivamente no seio de um mosteiro, o licor dos beneditinos do Mosteiro de Singeverga, certo?
Sim, mas o licor do Mosteiro de Singeverga, casa fundada em 1892 em Santo Tirso, só começou a ser produzido nos anos de 1940.
É um engenheiro químico, chamado Botelho, quem ensina aos monges a arte de produzir o licor neste que foi o único mosteiro beneditino em Portugal. Esteve sempre envolto em mistério. Atualmente é o padre Albino Sampaio Nogueira o responsável pela produção.
Há diferentes fontes de difusão dos licores?
Sim, temos os licores farmacológicos feitos por físicos, farmacêuticos e médicos; os que eram feitos pelas donas de casa e, outros, produzidos pelos comerciantes. Surgem livros já no século XIX a ensinar a fazer os licores destilados e os de infusão, pois são diferentes. Nos destilados é necessário o alambique. A dona de casa, sem alambique, faz os licores de infusão. Algumas, menos exigentes, compravam na farmácia embalagens com os concentrados de fruta e só juntavam o álcool e o ponto de pérola e tinham o licor pronto.
O licor caseiro era muito prestigiado nos séculos XIX e XX, a dona de casa gostava de mostrar os licores que produzia, mas em situações de cerimónia eram os comerciais que prevaleciam, para os mais abonados o francês para os menos, o licor espanhol. Os anisados foram muitos apreciados pelas senhoras e eram muitas vezes reproduções de produtos análogos espanhóis e franceses. Até mesmo as garrafas. Não existiam critérios restritivos nos direitos de autor, quer seja nas receitas, nas garrafas e nos rótulos. Eram copiados.
Ou seja, visto à luz de hoje, seria uma anarquia…
As pessoas roubavam. Dou-lhe um exemplo. Alguém fazia um licor de grande sucesso, logo outros copiavam-no. O registo das patentes e das marcas só começa em 1887, mas os registos custavam dinheiro e muitos produtores não registavam os seus produtos. Para quem investiga só a partir destes registos se vai historiar.
A publicidade também é uma grande ajuda para o investigador. Por exemplo, os licores Âncora de Leopoldo Wagner, era de grande qualidade, com uma produção que remonta ao século XIX, prolongando-se até metade do século XX. Os rótulos chegavam de França. A empresa tinha um conceito de publicidade que mais ninguém neste ramo tinha na época, pois era de excelente nível gráfico, rótulos com dourados e relevos. Ao contrário da maioria dos casos, pois o grafismo era entregue a curiosos. Os catálogos também são muito ricos, com muita variedade de produtos e de boa qualidade.
É comum associar-se os licores ao consumo entre as mulheres. Existe algum fundamento para esta ligação, digamos, sexista?
Em tempos passados não. Essa distinção começa ainda no século XVIII e mantém-se até ao século XX. Os homens bebem, por exemplo, conhaque, ou seja, bebidas mais fortes. A mulher não era socialmente bem vista por beber álcool. Dado o licor ter menos teor alcoólico, torna-se aceitável bebê-lo. Circunscreve-se nas chamadas bebidas de conversação.
Havia, inclusivamente crenças fisiológicas e médicas antigas em que se identificava a natureza feminina como frágil e instável.
Curiosamente, e já no século XX o único licor encarado como bebida de homens é a ginjinha. Vamos supor que era denominado licor de ginja. Provavelmente não seria bebida masculina.
É uma época de grande expansão dos licores. Podemos dizer que se vivia uma verdadeira paixão por esta bebida?
Sim, inclusivamente nas ementas dos restaurantes havia a lista do café e dos licores.
Repare, a produção de licores é como as de refrigerantes, houve em todo o país. As fábricas tinham uma dimensão diferente quando comparadas com as indústrias de hoje. No fundo eram pequenos armazéns onde se juntavam as matérias-primas e depois se fazia a produção. Se for a determinada zona do país vai reparar que os locais se recordam de um licor da região. Muitas empresas tinham apenas dimensão local. Até porque nessas terras abundava a fruta.
Depois há outro aspeto, os licores começam a ser produzidos pelas vinícolas. Estes, para minha grande surpresa, eram corados artificialmente, não são naturais, podem não ser à base de fruta.
Falando nos que eram produzidos à base de fruta. Há regiões que se notabilizaram na produção de licores?
Em Alcobaça, encontramos os licores mais antigos e tradicionais. Os primeiros, de origem farmacêutica. Lamentavelmente não há muita informação. Quando as empresas começam a fechar, os produtores de ginja, a cereja amarga, da região de Óbidos enfrentam um problema. Começam, então, a fabricar eles próprios o licor ou vendem-no a outros pequenos produtores. Cria-se, depois, o mito de que era uma tradição muito antiga. O que era realmente antigo era o licor de ginja feito em casa.
Olhando para a ginja, ou ginjinha, como a vamos encontrar associada à cidade de Lisboa?
A ginjinha portuguesa integra os licores tradicionais internacionais como o Anisette Bordeaux, o Parfait Amour, o Ratafiat de Grenoble. No caso português, em torno de Lisboa havia muitos ginjais, nomeadamente nas regiões de Palmela, Sesimbra, Barreiro, Quinta do Anjo e até de Sintra. Por exemplo, no século XVIII quem constrói o Palácio de Seteais comprou um terreno cheios de ginjais. Em Alcobaça, como referi anteriormente, também vamos encontrar muitos ginjais. Foram, contudo, progressivamente reduzidos para fixação de outras culturas. Na Cova da Beira, associada às cerejas, não havia tradição de ginja.
No caso da ginja em Lisboa, procurei encontrar uma relação entre a disseminação da ginjinha e a forte presença de galegos, embora não o tenha conseguido. Na Galiza há ainda a ratafia, termo que designa um licor aromatizado com fruta de caroço, como o pêssego, a alperce, as cerejas. Em Portugal deixou-se de usar esta palavra, mas em Espanha ainda é usada.
Voltando aos galegos, estes só vêm mais tarde para Portugal, no século XIX. Temos provas da sua presença com a implantação de estabelecimentos comerciais, por exemplo a Ginjinha Espinheira. Ou seja, os galegos tiveram, sim, um papel relevante na divulgação comercial da ginjinha.
Nesses tempos havia diferença entre a ginja produzida em casa e a comercial?
Sim e entre as que são feitas em Lisboa [levam caramelo e ficam mais escuras] e Óbidos, por exemplo. Alguns produtores são mais rigorosos no processo de produção do que outros.
A comercialização de ginjinha inicia-se no século XIX e uma das pioneiras na sua produção foi a Fábrica Âncora. No início do século XX vamos encontrar várias pequenas empresas a produzir ou a comercializar o licor de ginja. Temos como exemplos a firma Simões & Barata (Licor de Ginja), a Fernando Madureira (Ginja Latina), a Fábrica Licores Pérez, Lda (Ginja, Peitoral e Digestiva Extra), Francisco Espinheira Cousinho (A Ginjinha), Manuel de Assis da Silva Daun e Lorena Guimarães Ribeiro criam o licor de Ginja MSR. Há dezenas de produtores e os rótulos são preciosos indicativos da sua presença no mercado em diferentes períodos.
Também não podemos destituir a ginjinha da sua vertente comercial. Ou seja, ainda hoje há casas que captam a atenção de turistas e nacionais. Quando se inicia este fenómeno?
No século XIX nascem estabelecimentos especializados em venda de ginjinha. Com o tempo alguns deles tornam-se lugares de culto. Alguns destes espaços, os de maiores dimensões, acabaram convertidos em restaurantes e cafés. Contudo, são os estabelecimentos mais pequenos que ao longo do tempo mantêm a sua função de servir exclusivamente ginjinha. O espaço é exíguo, mas o clima ameno de Lisboa propiciava e propicia o consumo no exterior. É uma bebida de convívio, que se bebe rapidamente.
Muitos dos locais tradicionais na capital, dezenas, já fecharam, como a Merendeira (rua Nova do Almada), a Ginginha Estrela (rua Barros Queirós), a Ginginha do Prior (rua dos Cavaleiros). Outras, como a Ginjinha Espinheira, a Ginjinha Sem Rival, a Ginjinha Rubi, a Tendinha, a Licorista, só para citar algumas, continuam de portas abertas.
Entretanto, vamos assistir já no século XX a uma época de declínio dos licores. A que se deve?
Nos anos de 1960 começam a impor-se bebidas estrangeiras, o whisky, por exemplo. Análogo ao fenómeno a que assistimos atualmente com a moda do gin.
E inevitavelmente a morte de empresas ligadas à produção de licores?
Sim. Dou-lhe um exemplo de como mudanças sociais podem influenciar um determinado sector. A fábrica Âncora, produtora de licores, esteve em funções até aos anos de 1970. Na época, as pessoas queixavam-se muito do cheiro, do fumo. A unidade acaba por fechar, não obstante ter licores de qualidade.
Acresce que as condições de higiene que passam a ser exigidas obrigam a que pessoas que faziam pequenas produções de licores deixem de os produzir.
Não podemos omitir nesta conversa o grande acervo de que é detentora no que respeita a garrafas de licor. Quer partilhar connosco?
Tenho 600 garrafas de licor e algumas estou a restaurar. Há peças magníficas. Olhar para as garrafas e para os artefactos que rodeiam o licor é uma outra forma de o estudar.
Encontramos garrafas diferentes de qualquer outra bebida, produzidas em vidro, mas também em porcelana. Os comerciantes começam a fazer estas garrafas para competirem com os licoreiros. Havia a intenção, ao executar estas peças singulares, de as tornar de coleção ou utilitárias, de forma a que as pessoas as mantivessem após o final da bebida.
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