O Sol é meridional. O céu encontrou uma forma simpática de aconchegar o dia soalheiro, pintando-o de um azul profundo. Tudo é luz no ziguezague da estrada no Barrocal algarvio. Não é território serrano, também não se acomoda ao litoral. É um Algarve de premeio entre a solidão das serranias que encontram o Alentejo 50 quilómetros a norte, e a agitação humana da linha de mar.
Passamos Estiramantens, localidade assim mesmo escrita e mais saborosa quando escutada com a pronúncia algarvia. Mantemos o rumo na estrada apertada. Tudo é viço nesta primavera florida e verde a sul, no concelho de Tavira. A estrada contorce-se para não tocar nos muros em pedra crua. O casario alvo espevita as suas chaminés ornadas. Estiram-se acima das oliveiras, figueiras e alfarrobeiras. Muitas por sinal. Tantas que, o Atlântico, a dez quilómetros, se tem de esforçar por mostrar que gosta de ordenar neste Portugal virado a sul. Uma linha de mar que, a espaços, consegue dizer “presente”. Deixemo-lo. Vamos, por hora, com a promessa de fazer pão em forno de lenha. Pão que, mais tarde, após a química da cozedura da massa, acompanhará um apaladado caldo de galinha com grão, bem temperado de hortelã.
Chegamos ao nosso destino em Santo Estevão. A Quinta, assim singelamente tratada, e um dos parceiros do projeto que une oito países europeus e que visa promover a cultura mediterrânica, o MedFest. N´A Quinta o casario faz-se de estrutura imponente, outrora servindo uma propriedade agrícola. Na feição, este Algarve é um mundo rural. Sem as exorbitâncias arquitetónicas, oásis importados de palmeiras, aquaparques e outras notas de “grande modernidade”. Não, aqui sabe bem encostar o ouvido à natureza, escutar o zumbido ancestral dos insetos, apurar o olfato para os figos que prematuramente amadurecem nas figueiras (quem diria, em abril), sentir o frescor sob a copa das alfarrobeiras e oliveiras.
Um langor meridional que Josefina Saias, a nossa anfitriã, obreira desta A Quinta bem conhece. A palavra Josefina não rima com energia, mas podemos, aqui, tomá-la como sinónimo. Recebe-nos numa propriedade que conta sete gerações na sua família. Terra que remonta ao século XVIII e a um Algarve de agricultura viva. Dezoito hectares de mundo rural que a algarvia de gema trata de cuidar. Há meia dúzia de anos, Josefina trocou a direção de um infantário em Faro pela gestão da propriedade familiar. Tira-lhe proveito turístico, mas também o seu quinhão agrícola com a exploração das centenas de alfarrobeiras.
Com Josefina vamos aprender a fazer pão. Do de boa tempera. Ou, preferindo-se, um pão mimado, com tempo para fermentar, para descansar, antes de conhecer o calor das cinzas no velhinho forno.
Antes da magia do amassar e cozer, um breve périplo pela propriedade. Com Josefina conhecemos o velhinho Nico. Onze anos de ternura em forma de burro. Nico chegou às atenções de Josefina com 11 meses. Zurra, agora, à nossa chegada e disputa a atenção com o grasnar dos gansos e o cacarejo dos galináceos. Um bom entorno para nos aproximarmos da bocarra do forno centenário. Dentro, lampejam as cinzas. “Ainda não está pronto. Estão a ver, a cinza ainda não ficou branca. Quando assim ficar, está pronta para receber o pão”, explica-nos a proprietária d´A Quinta que aproveita as madeiras da propriedade para alimentar as chamas. Com um atiçador, Josefina espevita as cinzas. Da fornalha soltam-se novelos negros de fumo. Tingem de escuridão a boca do forno.
“Não sei o que é feito das andorinhas”, expressa a nossa anfitriã, apontando para o ninho que se aconchega num refolho de madeiras acima do forno. “Este ano não nos visitaram”. Josefina ama esta natureza. Aponta-nos a alfarrobeira que, estima, “terá mais de mil anos”. Um portento de madeiras e folhagem sob o qual se realizam casamentos. A Quinta celebra-os.
Hora de fazer pão. Frente ao forno, a casa onde graúdos e miúdos intrometem, literalmente, as mãos na massa. Josefina explica o ciclo do pão às crianças. Tem, inclusivamente, uma sala pedagógica para o efeito.
Dentro de um alguidar em barro já descansa a massa. Está há algumas horas a amadurecer num regaço de lã e linho. Josefina desdobra o xaile negro, acolhedor de muitas fermentações. “Era da minha avó”. Apresenta-nos “o menino”. Uma mistura de água, farinha de trigo, alguma dela integral e farinha de alfarroba. Não lhe falta o fermento para crescer e uma pitada de sal. “Este já levou uma benzedura. É uma tradição para cuidar que a massa cresce”, relata Josefina. Pão novamente benzido antes de recolher ao forno.
Vamos tender o pão à força de pulso. Massa subtraída ao aconchego do calor. Bancada enfarinhada, mãos lavadas [“só quero água nessas mãos, não é preciso sabonete”, impõe Josefina]. Os dedos passam pela brancura da farinha e, com a ajuda da nossa “padeira”, dividimos a massa em seis porções. Os próximos minutos são de afinco sobre a bancada. Estica, enrola, volta a distender e a recolher. Sempre com a palma da mão, nunca com a ponta dos dedos e com a obrigação de a enfarinhar amiúde. Uma experiência que não é só táctil. Impõe-se o odor da massa que sentimos ainda quente, o afã da respiração.
Ainda não temos pão. Antes a sua promessa. “Agora vai a fitar”. Mais dez a quinze minutos de calor de linho e xaile.
Josefina propõe-nos uma versão alternativa para parte do pão que agora fita. Uma “sapata” temperada com azeite, alecrim, orégãos, sal, dentes de alho. Tudo esmagado à força de mão.
Tempo para termos a nossa massa pronta para o forno. Três montinhos são aplanados e pincelados com o tempero de feição mediterrânica. Ao trio restante é infligido um roço a todo o comprimento. Já nos parece pão. Para o ser, teremos de esperar 20 minutos.
Frente à boca do forno há trabalho físico. “Vá, com a touca, molhe por favor, o interior do forno”. A touca, uma toalha húmida, envolvendo o extremo de um pau. É com ele que refrescamos a cama ardente onde descansará o nosso pão. Antes, com o rodo, havíamos limpo de cinzas a pedra ardente no interior do forno. Não esquecer a pá. É com ela que entregamos e retiramos a massa da canícula da fornalha. Só a intrometemos no calor depois de avaliarmos a temperatura neste íntimo de pedra. “Lança-se um punhado de farinha para dentro do forno. Se escurecer, ainda não é tempo, refresca-se a pedra com a touca”, sublinha a proprietária d´A Quinta.
Assim feito, fecha-se o forno, não por completo, no seu interior, o ar tem de circular. Volvem duas dezenas de minutos. Josefina lança mão da pá. Subtrai ao escuro um pão de bom corpo. Está fervente, de côdea bronzeada e densa. “Estará pronto?” Josefina sabe-o executando um gesto primevo. Bate no pão. Uma pancadinha rude e sabedora. “Quando nos devolve este som seco, sabemos que está pronto”, enfatiza Josefina. Não lhe falta o sorriso. Sabe que, neste Sul, ainda subsiste memória, a do Algarve dos seus pais, avós e bisavós.
Artigo publicado inicialmente em maio de 2019.
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