A 1600 metros de altitude ombreamos com o topo dos dorsos das grandes montanhas das beiras. Voamos para leste empurrados pela brisa ligeira que nasce a poente. À direita, o perfil rochoso da Serra da Gardunha. No lado oposto, encaixada numa malha apertada de nuvens, a grande Estrela. Perto de dois mil metros de altura granítica, debruada a neve e exposta ao horizonte. Aqui, dentro da barquilha do balão, sentimos alguma proteção.
Mesmo sabendo que sob os pés há uma queda sem rede em direção aos campos da Cova da Beira. Sete passageiros conquistados pela paisagem. Casario aconchegado em povoados: Fundão, Alcaria, Valverde, Covilhã, as aldeias históricas de Sortelha e Belmonte. Paisagem rural que mistura verdes campos agrícolas e pequenos bosques de carvalhos, sobreiros e oliveiras.Tudo o mais é silêncio e um objetivo: conquistar as terras de Alcongosta, a freguesia do Fundão que garante grande parte da produção de cereja deste território. Isto num concelho com mais de 300 produtores e que contribui com perto de metade do total nacional de cereja.
Não nos falta o equipamento para esta expedição às cerejeiras em flor. Trinta e cinco metros de determinação em forma de balão de ar quente, um aeróstato equiparado a uma aeronave. Mas diferente, como veremos. O piloto tem de analisar constantemente as correntes térmicas (que se elevam do solo), a pressão atmosférica e os ventos. E, estes, podem não ser aliados de uma navegação em direção ao ponto estimado. É o que acontece hoje. Às cerejeiras em flor resta-nos apenas um adeus lançado à distância.
Alcongosta fica para trás, aninhada a meia altura da serra, e o voo de três quilómetros termina num pasto, entre o tilintar de chocalhos, odor a poejo e erva fresca. Hora e meia de aventura que culmina com o resgate da equipa em terra. Um passeio em balão que se insere no programa “Fundão, 365 dias à descoberta”, aqui com uma temática, a da cereja. Um convite do município que inclui passeios de BTT, apanha da cereja, visitas ao Fundão e museus, passeios de comboio e apadrinhamento de árvores. Lá chegaremos.
Pastel, Bola de Berlim e bombom, a nova vida da cereja
O objetivo deste programa é tornar a Cereja da Cova da Beira (uma IGP), com importante peso na economia do concelho beirão, num produto transversal a todo o ano. Para isso a cereja mereceu estudo. É um fruto difícil de trabalhar dado o teor elevado de água. Com persistência surgiram os primeiros resultados e uma marca, a “Cereja do Fundão”.
Fora dos limites do concelho podemos provar o pastel de cereja, semelhante, no folhado, ao pastel de nata, mas aqui sem esta gordura e com um recheio de creme de cereja. Também tem segredo nos ingredientes. E como segredo é para guardar não há forma de reproduzir em casa este pastel desenvolvido na Escola Profissional de Hotelaria do Fundão. Como também não será fácil lançar mãos à obra e replicar os bombons de cereja com assinatura do chefe chocolateiro António Melgão. Dentro, uma ganache de cereja e chocolate branco. A cobertura, chocolate negro. Vale-nos saber que os podemos encontrar em diversas lojas nos grandes centros urbanos.
Não faltam também as parcerias desta Cereja do Fundão com alguns ícones da gastronomia nacional. Digam-no os apreciadores dos Gelados Santini (Cascais, Lisboa, Porto) ou do “Melhor Bolo de Chocolate do Mundo” (Lisboa, Porto). Cerejas que também casaram com iogurte grego (Yonest), com lingotes de fruta (FrutaFormas) e com a Bola de Berlim (Sacolinha). Mais recentemente, a Compal lançou um néctar com este fruto.
Uma matéria-prima que despertou a atenção de chefes de cozinha como José Avillez, Miguel Laffan, Miguel Castro e Silva, Kiko Martins, Vítor Sobral e Hugo Nascimento. Deram prova da versatilidade deste pequeno fruto originário da Ásia. E não se pense que das mãos dos chefes só saíram doces com cereja. Veja-se alguns exemplos: Gaspacho de cerejas do Fundão, requeijão, presunto e manjericão; Pato confitado com foie gras, cerejas salteadas com amêndoas; Escalope de foie com espuma de cereja e cebola confit em ginjinha.
Este fruto gosta de frio
Miguel Batista, presidente da Junta de Freguesia de Alcongosta, é homem que conhece muito bem a cereja, fruto que gosta de bastante frio, mais de 700 horas, durante o inverno e calor quando se aproxima o estio. É com o autarca que trilhamos os caminhos da freguesia encaixada na vertente norte da Serra da Gardunha. O município local organiza passeios de comboio, em viaturas motorizadas. Um giro que se faz com vagar.
A visita fica nos 3,50 euros por pessoa e é oportunidade para percorrer parte dos 2600 hectares de cerejais do concelho. Com abril ainda no início, as árvores cobrem-se com o branco das pequenas e delicadas flores. Estas darão mais tarde lugar aos cachos de frutos. Uma cultura que exige paciência, “sete anos até termos a primeira produção para comercializar”, diz-nos Miguel Batista. De momento percorremos uma estrada encaixada num vale, ladeada de pequenas cerejeiras, plantadas há um ano.
Que as conversas são como as cerejas já todos sabemos. Pegamos numa e lá encarrilham alguns cachos. Não se pense contudo que as temos todas, às cerejas, com a mesma forma e feitio. “Aqui no concelho há 50 variedades de cereja. Muitas têm sido importadas e, através de enxertos, são adaptadas às condições que temos”, conta o presidente da junta numa das pausas que o comboio faz.
Em boa verdade, atualmente, há apenas duas variedades de cerejas autóctones em exploração comercial, a Morengão, fruto mais escuro e a Saco da Cova da Beira, mais dura e pequena. Um fruto que encontra mercado fora de Portugal, nomeadamente no Chile, Brasil, Angola, Inglaterra, Países Baixos e que movimenta por ano perto de 20 milhões de euros, segundo dados da autarquia.
Mimar uma cerejeira:
Uma produção que beneficia das condições climatéricas da Cova da Beira. “Somos a primeira região, a nível europeu, a entrar no mercado com a cereja. Um fator competitivo. Por exemplo, na Finlândia a cereja do Fundão pode atingir os 52,00 euros o quilo no início da campanha. Isto com preços bastante atrativos para o produtor, na casa dos 15 euros por quilo”. As palavras são de Paulo Fernandes, presidente da Câmara do Fundão, momentos antes de uma cerimónia simbólica, o apadrinhamento de uma cerejeira.
Esta é mais uma atividade inserida no programa “Cerejeiras em Flor”. Plantar um rebento desta espécie é, como nos diz o autarca “uma forma de ligar as pessoas a esta terra. Mais do que uma ação simbólica, apadrinhar uma cerejeira é assumir o compromisso de cuidar e proteger”. Na prática o padrinho ou a madrinha têm a responsabilidade de, anualmente, visitar a sua árvore. Mas também têm direitos: até a árvore dar frutos recebem, todos os anos, 2 kg de cerejas e um voucher de 10% de desconto nos restaurantes e hotéis locais.
Há uma dimensão lúdica, quase pueril, neste ato de plantar a cerejeira. O talo, fino e com perto de dois metros, pejado de raízes, é acomodado num rego talhado na terra. Depois, com uma enxada, os torrões de areia tapam as raízes. Calca-se bem com o pé para cimentar a terra. Mais tarde a frágil árvore com um ano será cortada 30 cm acima do solo. É feito o enxerto com a espécie de cereja que se quer ver vingar. No local, a indicar o apadrinhamento, fica uma placa com o nome e aquilo que, escrito, se lhe quiser juntar. Fica a responsabilidade. Voltar e, quem sabe, encontrar uma cerejeira povoada de flores cândidas. A promessa de fruta firme e sã ao romper o mês de maio.
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