Quem chega ao lugar da Vista Alegre é recebido pela grande fábrica, vestida de branco e amarelo, que pela sua configuração parece um gigante que nos abraça com dois grandes braços. Do lado esquerdo a capela e a loja com as últimas novidades e coleções memoráveis, e do outro, do lado direito, uma loja outlet, que nos faz perder a noção do tempo, e o teatro centenário. Sentimos que estamos num lugar privado, aberto a todos que o queiram conhecer.
Este lugar começou a ganhar vida em 1812 quando uma figura importante da época, um empresário e fidalgo português, José Ferreira Pinto Basto, adquire os terrenos. A ideia seria instalar aqui “uma grande fábrica de louça, porcelana, vidraria e processos chímicos”, como se pode ler no documento que redigiu ao rei D. João VI.
O alvará régio foi-lhe concedido a 1 de julho de 1824, dia de aniversário da Fábrica da Vista Alegre que completa no próximo ano , 200 anos. Juntamente com as instalações fabris, foram construídas casas para os operários, um colégio onde eram lecionados ofícios, como desenho e pintura; um teatro para entretenimento e confraternização dos trabalhadores, bem como uma corporação dos bombeiros que ainda hoje existe.
Ficámos a saber tudo isto logo no nosso primeiro contacto com a marca Vista Alegre, no seu Museu.
Museu Vista Alegre
A visita ao museu ajuda-nos a perceber o contexto histórico em que cresceu e se desenvolveu a empresa, bem como a evolução de uma arte como o fabrico de porcelana. “O museu é uma das estruturas mais relevantes, existe quase desde o início, talvez não como museu organizado, mas a ideia da importância de guardar objetos pare perceber a relevância da história, isso sim, existe desde o início e é isso que nos permite hoje ter esta coleção”, explica-nos Filipa Quatorze, coordenadora do museu.
Entre os anos de 2014 e 2016, o museu foi remodelado, com a colaboração do Museu de Arte Antiga, e foram integrados dois fornos antigos, do século XX, que ajudam a contar a história da indústria. É por um destes cilindros enormes que começamos a nossa visita ao museu, que não vamos descrever exaustivamente para também deixar alguma surpresa e novidade para o leitor quando visitar.
Hoje em dia os fornos são esteticamente bonitos, mas a beleza não era uma das suas características quando laboravam. “Os fornos seriam uma área das mais difíceis e das mais exigentes”, relembra Filipa. “Imaginem encher isto de peças e manter as fornalhas laterais a queimar a 1400 graus centígrados durante um período bastante extenso de tempo”, acrescenta.
Era através das vigias laterais, pequenas portadas, que iam controlando o processo de cozedura pelo aspeto da cor da chama.
Este trabalho, ainda que árduo, era hierarquicamente um dos mais bem posicionados, pois era através do conhecimento empírico destes trabalhadores que seria possível fazer o controlo de toda a produção. “Teve de se fazer um longo caminho para conseguir adquirir e construir o know how de raiz, ainda que com o apoio de conhecimento científico de outros países da Europa, e passar por muitos riscos também”, conta Filipa.
As primeiras peças começaram a ser fabricadas em 1827, mas apenas seriam comercializadas quase dez anos depois, em 1835.
O passado está presente para contar a história, mas Filipa frisa que, apesar da fábrica da Vista Alegre ser “um bastião daquilo que foi tanto da indústria tradicional de cerâmica europeia, de porcelana”, também é importante reconhecer a sua capacidade de inovação.
E enquanto se faz uma viagem pelo tempo no museu, paredes meias está uma fábrica a laborar com 700 pessoas e onde esta evolução tecnológica é bem visível. “Temos agora dois fornos de tecnologia de ponta em termos de eficiência energética”, explica Filipa. Na nossa visita, posterior, à fábrica pudemos testemunhar que apesar do fascínio pelos tempos idos, a evolução tecnológica veio trazer melhorias, muitas delas ergonómicas, como os carrinhos que transportam as peças que já não são puxados por pessoas e sim robotizados através de um circuito programado.
E é com esta ideia de evolução dos tempos que avançamos para as diversas salas do museu onde ficamos a conhecer a história da marca, do fundador e da sua família, bem como o progresso estético e industrial da produção de porcelana. “A porcelana é como e fosse um registo em livro, é extremamente memorialista. Costumo dizer que é uma cronologia em 3D de Portugal”, reforça Filipa, enquanto nos mostra uma das salas com um acervo enorme de peças comemorativas.
O Museu da Vista Alegre ganhou, no ano de 2017, uma menção honrosa na categoria de “Prémio Melhor Museu do Ano” e conta com mais de 30.000 peças.
Aberto de segunda a domingo das 10h às 19h, ou 19h30, dependendo do período do ano, a visita tem um custo de 6 euros para adultos.
Quem visita o museu tem também a honra de visitar a Oficina de Pintura manual da fábrica, nos dias úteis, das 10h às 18h30, onde pode ver o trabalho minucioso e impressionante de pintura das peças.
Se for num grupo, no mínimo de 10 pessoas, pode também, mediante marcação prévia, iniciar-se na arte da decoração cerâmica. Consulte no site os horários e preços.
Capela da Vista Alegre
Feita a visita ao museu podemos continuar para o Lugar da Vista Alegre, desta vez à capela. Este é um dos pontos de maior interesse e com mais história.
Nem todos terão a mesma honra, mas o SAPO Lifestyle teve o privilégio de conhecer esta capela pelos olhos de quem bem a conhece e há muitos anos. Margarida Marieiro é funcionária do museu e habitante do bairro da Vista Alegre. Trabalha na marca há 43 anos, já os avós, tios e pais trabalhavam aqui. “Os filhos dos funcionários tinham prioridade, e eu candidatei-me. Na altura queria ir para pintura, mas não estavam a pedir ninguém e fui para estamparia”, começa por contar. Começou por trabalhar nas férias, porque a fábrica não fechava nesse período.
De chave em riste e orgulhosa pelo percurso que fez até então vai-nos explicando que a história da capela que “tem e não tem” ligação com a fábrica, uma vez que foi mandada construir muito antes do complexo industrial. “Esta capela foi construída entre 1693 e 1699”, começa por contar. A sua explicação é tão delicada, quanto os gestos que a acompanham no momento de apontar para cada canto daquele edifício.
Antes da capela não existia nada nestes terrenos, uma vez que tudo o que ali foi construído foi bastante mais tarde na sequência da existência da fábrica. “A única coisa que existia era uma casa senhorial onde residia o bispo D. Manuel Moura Manuel. Ele era bispo, em Miranda do Douro, e Reitor na Universidade de Coimbra, mas adorava estar aqui com a sua família”, explica Margarida.
A capela, de finais do século XVII, foi mandada construir por este Bispo. “Ele fica muito doente e como tinha uma grande devoção à Nossa Senhora da Penha de França pede-lhe ajuda prometendo uma capela em sua honra.” E é assim que surge este monumento muito pitoresco num local onde ninguém poderia imaginar.
Ironia do destino, o bispo acabou por falecer de forma súbita antes desta ser terminada e por isso, assim que é acabada a obra, os restos mortais de D. Manuel Moura Manuel são transladados para ali e num túmulo no vão da Capela-Mor. “Estão nesta arca tumular, que é um dos pontos de maior interesse desta capela", realça a moradora.
Margarida chama ainda a atenção à posição diferenciada da figura do bispo esculpida. “Normalmente, nos túmulos, as pessoas estão representadas deitadas e de mãos no peito, em sinal de descanso, mas aqui não. Aqui não está deitado, nem sentado, porque segundo a visão do bispo a morte não era um ponto final, era apenas uma passagem para a vida eterna e se olharem para a sua expressão há uma sensação de contemplação”, conta. Este é um trabalho em pedra calcária clara e é da autoria do artista Claude Laprade.
Em 1816, a capela cai em hasta pública e o fundador da Vista Alegre, José Ferreira Pinto Basto, sendo uma pessoa extremamente católica, compra-a. “ E é a partir desse momento que a capela começa a estar ligada à fábrica até aos dias de hoje. É uma capela privada”, esclarece Margarida.
José Ferreira Pinto Basto teve quinze filhos e um deles faleceu muito jovem, na sequência de uma queda de cavalo. Aí ele decide sepultá-lo neste lugar. Ainda hoje podemos ver umas inscrições no chão à frente do altar. Diz-se que os restos mortais já foram levantados e este filho, que seria o único aqui sepultado, já se juntou ao jazigo de família no cemitério da própria. Mas as inscrições permanecerão.
Outra curiosidade deste espaço está numa pequena varanda, numa das laterais da capela, virada para o altar. “O fundador era de tal forma católico que quando compra a capela constrói a sua casa ao lado, que era o palácio, e arranja maneira de a contemplar diretamente do seu quarto através daquela varanda”, conta. Atualmente o quarto faz parte de uma suíte do hotel Montebelo Vista Alegre.
Todos os anos, no primeiro fim de semana de julho, uma imagem de Nossa Senhora da Penha de França percorre em procissão o interior da fábrica e as ruas do bairro social. “Esta era uma vontade do fundador que ainda hoje se mantém”, realça Margarida.
Montebelo Vista Alegre Ílhavo Hotel
Em 2009, o grupo da Vista Alegre é adquirido pelo Grupo Visabeira, uma holding multinacional que atua em diversas áreas.
O grupo já atuava na área do turismo e decide, por isso, aumentar a sua cadeia do Montebelo Hotels & Resorts e em 2015 inaugura o “Montebelo Vista Alegre Ílhavo Hotel”.
Mas não se pense que este hotel se desintegra da história da Vista Alegre, pelo contrário. Foi construído à volta do palácio de residência dos fundadores, integrando-o com 10 quartos. Informamos já os nossos leitores que, se quiserem ficar com a varanda para a capela, terão de reservar o quarto número um.
Na chamada ala nova está a receção, o restaurante, o bar e o espaço de bem-estar, bem como três pisos com quartos, em que cada um conta a história da porcelana e o seu fabrico.
Mais tarde, o hotel estende-se a mais duas alas: o Palácio dos Mestres Pintores e as residências do Bairro Vista Alegre que foram também renovadas.
O Palácio dos Mestres Pintores foi a residência do primeiro pintor da Vista Alegre, o francês Victor Rousseau e tem disponíveis 13 quartos, todos eles com uma temática diferente.
Na zona do Bairro da Vista Alegre estão disponíveis quartos, suítes, studios e apartamentos T1, T2 e T3 nas antigas moradias dos operários que foram agora remodeladas, no âmbito o projeto de renovação das instalações da Vista Alegre.
Quem ficar aqui hospedado vai-se sentir um verdadeiro morador do bairro e poderá conhecer as ruas e os edifícios que ficaram para contar a história como a barbearia, a creche, o teatro – hoje sob a alçada da Câmara Municipal de Ílhavo – ou ainda a fonte dos amores onde os casalinhos iam namorar às escondidas.
O Bairro Operário
No início das operações da fábrica vieram muitos trabalhadores de fora e por isso a questão da habitação era necessária. Foi nesta perspetiva que o fundador José Ferreira Pinto Basto construiu um bairro habitacional. “Ele criou todas as infraestruturas para que os funcionários se sentissem aqui bem”, conta Margarida.
Foi pela mão de Margarida, que sempre aqui viveu, que fomos vagueando pelas ruas, cada uma com o nome de um administrador. “ A minha rua é a rua Engenheiro João Teodoro que foi um dos administradores que em 1924 , no primeiro centenário, é responsável pela construção de mais casas novas e então deu-se o nome dele à rua pela importância no sector social”, conta.
As rendas equivaliam a um dia de trabalho, e ainda hoje assim se mantém, a água é gratuita e a eletricidade tem um valor mais baixo do que no município. “Isto era quase como um lugar mágico. Digam-me, hoje em dia, quem é que tem estas condições?”, diz.
Um dos edifícios que se mantém de pé, e remodelado, é a creche que também foi mandava construir para os filhos dos trabalhadores ficarem enquanto os pais trabalhavam. Também Margarida andou nela. “Naquele tempo trabalhavam até às 18h e ao sábado. E eu lembro-me que quando soava a buzina nós ficávamos acolá no passeio à espera de ver qual era a mãe que chegava primeiro”, conta. O edifício da creche é hoje o Serviço Educativo do Museu onde se fazem oficinas.
Também o despertador do bairro era dado pela fábrica. “Havia um apito às 7h15 para todos se levantarem da cama e às 7h55 já estavam todos sentados no lugar para as 8h começar a trabalhar”, conta Margarida.
A vida no bairro era muito familiar, uma vez que também não havia uma rede de transportes como há hoje em dia, que permitisse as pessoas saírem dali. Portanto, as relações também se iam construindo dentro do bairro, como conta Margarida, que veio a casar com o seu vizinho do lado.
À frente da casa onde morava com os pais, ainda solteira, está um dos símbolos deste bairro, a enorme árvore bela-sombra. “Isto era o meu castelo! Muitas vezes à noite vínhamos para aqui brincar”, recorda Margarida.
As casas do bairro só são habitadas por trabalhadores da fábrica ou pessoas já reformadas. “As casas eram cedidas mediante o agregado familiar”, explica.
Hoje em dia já não são atribuídas casas aos trabalhadores. Atualmente apenas quatro pessoas que ali moram estão no ativo, duas delas são Margarida e o marido, os restantes são reformados.
Não podíamos terminar a nossa visita sem perceber a origem do nome Vista Alegre. É a nossa anfitriã quem nos fala da fonte de Carapichel, hoje inserida no hotel ao pé da receção, onde se acredita ter a explicação do nome. Esta fonte foi mandada construir por D. Manuel de Moura Manuel para servir a capela e a quinta. Na pedra da frente podemos ler: “Bebe, pois bebe à vontade acharás que é (muitas vezes) tão útil para a saúde quão para a ‘vista alegre’”.
O SAPO Lifestyle visitou o museu, fábrica, hotel e bairro a convite da Vista Alegre.
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