Junho é o Mês da Saúde Digestiva — uma iniciativa da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia (SPG) que, todos os anos, procura sensibilizar a população para a importância da prevenção, diagnóstico precoce e tratamento das doenças do aparelho digestivo. No presente ano, o foco da campanha recai sobre um tema que carece de atenção urgente: a relação entre a obesidade e as doenças digestivas, um elo ainda pouco reconhecido, mas com impacto profundo na saúde de milhares de portugueses.

Estima-se que cerca de um terço da população nacional seja afetada por patologias do foro digestivo, muitas das quais têm na obesidade um fator de risco determinante — e muitas vezes subestimado. Da doença do refluxo gastroesofágico ao fígado gordo, passando por vários tipos de cancro digestivo, as consequências do excesso de peso vão muito além das doenças mais faladas como a diabetes ou as cardiovasculares.

Para aprofundar esta ligação entre o peso corporal e a saúde do sistema digestivo, estivemos à conversa com Joana Nunes, Gastrenterologista e Secretária-Geral da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia (SPG). Mote para percebermos de que forma a obesidade interfere com o funcionamento do sistema digestivo, quais as doenças mais negligenciadas, e que mudanças são necessárias — do ponto de vista clínico, social e político — para travar esta pandemia silenciosa.

O excesso de peso e a obesidade são amiúde associados ao surgimento, entre outras, de doenças cardiovasculares, hipertensão arterial, diabetes mellitus. O que explica a relativa invisibilidade da sua ligação às doenças do aparelho digestivo, apesar da crescente evidência científica?

De facto, a obesidade tem sido muito associada a doenças como o enfarte do miocárdio, a hipertensão ou a diabetes. Em contraste, a sua relação com as doenças digestivas tem sido menos divulgada, talvez por serem menos visíveis ou por se manifestarem de forma mais insidiosa. De qualquer modo, está bem demonstrado que a obesidade é um dos principais fatores de risco de doenças como refluxo gastroesofágico, esteatose hepática (“fígado gordo”) e até de alguns cancros, como o cancro do cólon e reto e do pâncreas.

Joana Nunes, Gastrenterologista e Secretária-Geral da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia (SPG)
Joana Nunes, Gastrenterologista e Secretária-Geral da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia (SPG) Joana Nunes, Gastrenterologista e Secretária-Geral da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia. créditos: Divulgação

De que forma o excesso de peso interfere no funcionamento do sistema digestivo, ao ponto de contribuir para doenças como o refluxo, o fígado gordo ou até certos tipos de cancro?

Existem vários mecanismos que ajudam a explicar esta interação entre excesso de peso/obesidade e as doenças do sistema digestivo.

Por um lado, o efeito da acumulação de gordura, especialmente a gordura abdominal, que aumenta a pressão intra-abdominal e está associada a condições como o refluxo gastroesofágico, em que o ácido que é produzido no estômago reflui para o esófago. Estudos demonstraram que a perda de peso (5 a 10%) tem um efeito na melhoria dos sintomas de refluxo. Outro mecanismo está relacionado com a acumulação de gordura no fígado (esteatose hepática) que pode conduzir a inflamação, fibrose e até cirrose hepática. Além disso, o ambiente de inflamação crónica que está associado à obesidade pode afetar todo o sistema gastrointestinal, aumentando o risco de pólipos do cólon e reto, induzindo alterações na microbiota intestinal e promovendo certos tipos de cancro digestivo.

Entre todas as doenças digestivas com associação comprovada à obesidade, qual considera ser a mais negligenciada ou subestimada pela opinião pública?

Provavelmente é o “fígado gordo”, tecnicamente denominado doença hepática esteatósica associada a disfunção metabólica. Por uma questão de simplificação, utilizarei o termo “fígado gordo”. Apesar de o fígado gordo afetar cerca de 1/3 da população mundial, tem sido negligenciado não só pela opinião pública, mas sobretudo pela comunidade médica. A maioria dos médicos desvaloriza o achado de esteatose hepática numa ecografia abdominal ou noutro exame de imagem. Isto leva a que os doentes, naturalmente, também esqueçam este assunto. Como não dá sintomas nas fases iniciais, o fígado gordo é frequentemente ignorado até atingir estadios avançados, como a cirrose ou cancro do fígado, onde as opções de tratamento são mais limitadas.

Felizmente, tem havido um alerta pelas sociedades internacionais e nacionais de doenças hepáticas, justamente para promover o diagnóstico e estadiamento desta doença.

Ainda existe a ideia de que o 'peso a mais' é uma questão estética. É importante esclarecer de que a obesidade é uma doença por si, com impacto direto em múltiplos órgãos.

Na sua experiência clínica, os doentes reconhecem o excesso de peso como um fator de risco autónomo, ou só o valorizam quando já coexistem sintomas ou diagnósticos adicionais?

A minha experiência é que a maioria dos doentes desvaloriza o excesso de peso. Alguns já tentaram perder peso sem sucesso e acomodaram-se à ideia de que é uma situação irreversível. Quando não é. A obesidade é um fator de risco modificável, por isso vale a pena tratar.

Ainda existe a ideia de que o “peso a mais” é uma questão estética. É importante esclarecer de que a obesidade é uma doença por si, com impacto direto em múltiplos órgãos. Mas penso que o panorama é animador, com uma população jovem mais informada e preocupada com a sua saúde, que já nos procuram em busca de soluções seja medicamentosa, cirurgias ou procedimentos endoscópicos, aliados a alterações do estilo de vida.

Cuidar do peso é também cuidar do sistema digestivo.

A Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia reconhece hoje a obesidade como uma doença crónica, e não apenas como um fator de risco. Que implicações tem esta mudança de paradigma na abordagem preventiva e terapêutica das doenças digestivas?

Sabemos hoje muito sobre a obesidade, nomeadamente o impacto significativo que a microbiota e a genética têm no seu desenvolvimento. Esse conhecimento que acumulámos sobre o que é a obesidade permite-nos vê-la como uma doença e não apenas como “culpa do indivíduo”. E essa visão muda tudo: promove uma abordagem mais empática e contínua.

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Porque existe muita discriminação das pessoas com excesso de peso e obesidade, que frequentemente têm sentimentos de vergonha e culpa. É nosso dever como Sociedade, com base na evidência científica que dispomos, contribuir para mudar este cenário.

Por outro lado, precisamos de cuidados de saúde integrados —nutricionistas, psicólogos, médicos de várias especialidades como médicos de medicina geral e familiar, medicina interna, gastrenterologia, endocrinologia, cirurgia. Mas sozinhos não vamos conseguir lutar contra esta pandemia da obesidade. Tem de haver envolvimento de políticas que apoiem estilos de vida saudável, a começar nas escolas, com alimentos frescos e saudáveis, incentivo à prática regular de exercício físico. É necessária uma estratégia de prevenção a longo prazo, para podermos prevenir complicações graves associadas à obesidade.

O rastreio do cancro colorretal inicia-se, por norma, aos 50 anos. À luz da crescente incidência em pessoas mais jovens e do papel da obesidade nesse contexto, seria pertinente antecipar essa idade para grupos de maior risco?

Sim. A obesidade está ligada a um aumento de casos de cancro do cólon e reto em pessoas mais jovens. Alguns países já recomendam o rastreio do cancro do cólon e reto mais precocemente, a partir dos 45 anos. Esta discussão deve também acontecer em Portugal, tendo em conta os dados mais recentes.

Se tivesse de condensar a presente campanha de consciencialização - relação entre a obesidade e as doenças do aparelho digestivo - numa única mensagem-chave dirigida à população portuguesa, qual seria?

Cuidar do peso é também cuidar do sistema digestivo.

Apesar do crescente discurso em torno da nutrição, sente que o tema da alimentação continua, na prática clínica, a ocupar um lugar secundário? O que seria necessário para mudar essa realidade?

Infelizmente, a nutrição ainda ocupa um lugar secundário. Apesar de se falar cada vez mais de nutrição, o acesso a nutricionistas não é fácil sobretudo no sistema nacional de saúde e os profissionais de saúde têm pouca informação sobre nutrição de uma maneira geral.

Mas este não é o único problema. O problema começa antes, na construção dos hábitos alimentares, especialmente nas crianças e adolescentes. E aqui a publicidade e a comunicação social exercem um papel central. Não é segredo que a indústria alimentar investe milhões em campanhas que promovem alimentos ultraprocessados, ricos em açúcares, gorduras, sal. Estamos a falar de alimentos apetecíveis, seja pelo baixo preço, embalagens chamativas, práticos, com grande prazo de validade. Estes produtos substituem refeições equilibradas diariamente por opções pobres em nutrientes e elevado valor calórico. Está demonstrado que a exposição frequente a este tipo de publicidade contribui significativamente para aumento da obesidade e de doenças associadas.

Por outro lado, a desinformação é muita na comunicação social e nas redes sociais, com dietas da moda e produtos milagrosos.

Algo tem sido feito, nomeadamente a nível nacional, com a criação do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS) da Direção Geral da Saúde, com a implementação do Nutri-score para fornecer ao consumidor informação simples sobre o valor nutricional dos alimentos. Mas não chega. Precisamos de mais medidas. É necessário regulamentar a publicidade de produtos alimentares especialmente aqueles dirigidos para o público infantil, incentivar consumo de alimentos frescos e naturais nas escolas e nas casas dos Portugueses.

Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.