Para o seu livro traz o tema da violência obstétrica. Recorre a uma Lei venezuelana de 2007 para definir este tipo de violência: “Apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissionais de saúde”. De que formas se dá esta apropriação?

A lei venezuelana foi a primeira a conceptualizar a violência obstétrica, por isso costumo referi-la. A apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres dá-se pela inexistência de consentimento informado na vigilância da gravidez e na assistência ao parto, ou seja, quando os/as profissionais de saúde não pedem autorização para realizar determinadas intervenções; quando as impõem em vez de as proporem; quando dizem que determinada intervenção é "obrigatória", isso é limitarem a autonomia das grávidas sobre o seu próprio corpo e processos reprodutivos. Isto é a norma em Portugal, em que todas as grávidas, independentemente de serem grávidas de baixo risco, são obrigadas, por exemplo, a ter um acesso venoso durante o parto, embora não haja qualquer evidência de que isso seja benéfico. Também é regra, nos hospitais portugueses, as grávidas parirem em posição litotómica, ou seja, deitadas, o que, além de não ter qualquer benefício, tem riscos e aumenta a probabilidade de o parto ser instrumentado. A maioria das mulheres desconhece que pode parir noutras posições, porque tal nunca lhes foi apresentado como hipótese, porque a informação que é dada é, regra geral, espartilhada para a conveniência dos/as profissionais de saúde.

O Meu Parto, As Minhas Regras
Mia Negrão, advogada e ativista pelos direitos na gravidez e no parto. créditos: Arena /Sónia Brito

Na introdução ao livro, ainda no que respeita à violência obstétrica, escreve “o ‘normal’ passa a ser a intervenção, a medicalização, o abuso e os maus-tratos”. É um cenário recorrente no nosso país?

Infelizmente, sim. Ouvimos a geração das nossas avós e mães a fazerem relatos de parto semelhantes aos que ouvimos em 2024. Normalizaram-se as intervenções rotineiras ao ponto de as pessoas acreditarem que é preciso uma episiotomia [corte no períneo] para o bebé nascer, que ter um acesso venoso é obrigatório e necessário, que parir deitada é normal, ou que gritarem connosco para fazermos força é útil. As Recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) distanciam-se, em tudo, do que se passa nas maternidades portuguesas.

Concorda que aquilo que se determinou como “natureza feminina” contribui para a normalização desta violência obstétrica?

A violência obstétrica é paternalismo clínico aplicado a uma área específica: a da obstetrícia. A violência obstétrica decorre de um sistema patriarcal, em que as mulheres são vistas como "o sexo fraco" e em que são descredibilizadas em função de serem diferentes dos homens, como se o corpo masculino fosse o padrão e o corpo feminino um desvio do padrão. Historicamente, as funções reprodutivas das mulheres são entendidas como "problemas". Basta pensarmos no enorme tabu que é a menstruação, por exemplo, que em determinados países obriga a que as meninas e mulheres sejam postas fora de casa durante a menstruação, por serem "impuras". No parto, acredita-se que as mulheres precisam sempre de "ajuda" porque não conseguem parir sozinhas. Já tivemos muitas invenções para "ajudar" que, contas feitas, só trouxeram mais problemas. É o caso da sinfisiotomia [corte da sínfise púbica] e do twilight sleep, em que as mulheres eram sedadas durante o parto.

Sobre a autora

Mia Negrão nasceu em 1992, em Coimbra. É advogada,formadora de profissionais de saúde, doula e assessora de lactação. Em 2015, durante a licenciatura em Direito, começou a apoiar juridicamente vítimas de violência obstétrica. Em 2020, fundou o Nascer com Direitos, projecto através do qual divulga informação sobre os direitos na procriação medicamente assistida, na gravidez, no parto e no pós-parto. Integra a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas e é representante da Ordem dos Advogados no Young Lawyers Committee, um comité do Conselho das Ordens dos Advogados na Europa.

Em 2021, a Ordem dos Médicos contrariava a ideia de que exista no nosso país violência obstétrica. É-lhe fácil desconstruir esta afirmação?

Em 2024, a Ordem dos Médicos mantém essa posição. Primeiro, tem que ver com semântica. A Ordem dos Médicos entende que se deve falar em "maus-tratos" em vez de violência obstétrica, uma vez que os/as médicos/as não têm a intenção de ser violentos e porque "obstétrica" parece reportar-se apenas a obstetras, quando, em boa verdade, qualquer profissional de saúde ou até acompanhantes podem praticar violência obstétrica.

É fácil desconstruir esta ideia. Em primeiro lugar, porque são as vítimas quem tem a legitimidade para nomear a violência a que foram sujeitas. Em segundo lugar, trata-se de um tipo de violência institucional de género, que está enraizada, ou seja, o próprio sistema é violento para as grávidas pela forma como lhes impõe intervenções e ignora a sua autonomia e autodeterminação. Em terceiro, "obstétrica" refere-se não ao tipo de profissionais que a praticam, mas sim à área em que acontece, a obstetrícia. Quanto à afirmação da Ordem dos Médicos de que não existe violência obstétrica em Portugal, é porque ainda não compreenderam a sua definição e porque fazem parte do problema e ainda não conseguem vê-lo. Como dizia Marsden Wagner, médico e ex-director do departamento de saúde da mulher e das crianças na OMS, "os peixes não conseguem ver a água em que nadam".

Em 2015, ainda na faculdade de direito começou a apoiar juridicamente vítimas de violência obstétrica. Diz-nos que “não é um tópico autonomizado no ordenamento jurídico português”. Que razões encontra para este facto?

Lembro-me de, em 2015, ainda não se ter bem a certeza de como nomear este fenómeno. Havia quem lhe chamasse maus-tratos obstétricos ou abuso obstétrico. Quando percebi que havia leis, noutros países, em que já se denominava este flagelo como violência obstétrica, adotei o termo e percebi que, face ao Direito, é aquele que faz mais sentido. Mas 2015 foi anteontem. Não somos assim tão rápidos a fazer mudanças, enquanto país, e precisamos primeiro que o assunto seja conhecido do público e tenha dimensão suficiente para que se veja a necessidade de o legislar. Em 2019, o Conselho da Europa pronunciou-se sobre a violência obstétrica e ginecológica; também em 2019, aprovámos uma lei que outorga direitos na gravidez e no parto, embora sem referir a violência obstétrica; em 2021 foi criado o Observatório de Violência Obstétrica em Portugal e a Assembleia da República recomendou ao governo a eliminação de todas as práticas de violência obstétrica. O caminho está a ser feito e este tópico será, certamente, legislado.

O Meu Parto
créditos: Arena

Fundou o Nascer com Direitos. Fê-lo por perceber que em Portugal há pouca informação – ou desconhecimento desta – no que respeita à violência obstétrica e ao apoio a dar à mulher? Quais são os objetivos que persegue este projeto?

O Nascer com Direitos visa dar informação às grávidas, casais, profissionais de saúde e também juristas, tanto através de publicações gratuitas nas redes sociais, como através de formações, workshops e sessões individuais. O objectivo é capacitar para o exercício de direitos e contribuir para a literacia jurídica das pessoas.

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Como sabemos, informação é poder. Em Portugal os media, a literatura, os influenciadores/as de opinião, os profissionais de saúde, entre outros, não estão a contribuir para o esclarecimento das mulheres sobre os direitos que lhe assistem em relação ao seu corpo?

Ainda não o fazem em grande escala, mas já se veem cada vez mais influencers a abordar o tema da violência obstétrica e a contarem os seus relatos de parto e temos alguns profissionais de saúde que falam abertamente sobre a violência obstétrica a que assistem diariamente nos hospitais. Também já houve algumas reportagens nos media sobre o assunto, mas parece haver algum receio em falar disto, por gerar sempre queixas, por parte de médicos/as, à ERC. Isto é mesmo um hot topic.

No livro também critica as organizações de saúde, referindo que tomam decisões não suportadas pelas evidências científicas. Quer dar-nos um ou dois exemplos?

Em 2020, no início da pandemia, a Direção Geral da Saúde (DGS) recomendou a separação de mães e bebés e o descarte do leite materno caso as mães tivessem COVID ou se o resultado do teste ainda não estivesse disponível. A OMS, desde o início, foi perentória no que concerne a este tópico: o contacto pele com pele e a amamentação têm benefícios muito superiores aos riscos que a COVID poderia ter, recomendando que se mantivessem sempre as mães e os bebés juntos e que estes fossem amamentados. Em Portugal, tivemos mães que apenas conheceram os seus filhos 15 dias após o parto, como consequência da recomendação da DGS. É desumano, tem consequências gravíssimas para a saúde de mães e bebés e cria um problema de saúde pública, na medida em que os bebés não amamentados apresentam, a longo prazo, mais problemas de saúde.

Uma mulher sujeita a violência obstétrica como pode reagir/reclamar os seus direitos?

Para responder a essa pergunta, criei o Guia Prático para Reclamar, para que as pessoas o possam fazer sozinhas. Obviamente que reclamar às entidades responsáveis e até às ordens profissionais pode não ser o suficiente, pelo que recomendo que as pessoas contactem um/a advogado/a, para perceberem se a situação concreta se qualifica para o pedido de uma indemnização ou para uma queixa-crime, por exemplo.