Já passou a barreira das nove décadas de existência mas recusa-se a baixar os braços. «Tenho 91 anos e sou professora de yoga. Nunca fiz outra coisa», começa por dizer Clotilde Ferreira. «Podia ter sido hospedeira do ar, mas o yoga escolheu-me. Há coisas que estão destinadas», acredita. «Fiz duas operações recentemente, a primeira em dezembro do ano passado [2015] e a segunda em abril [2015]», continua a contar.
«Tinha artroses que já me estavam a dar muitas dores pelo que me colocaram uma prótese em cada anca. Por causa disso, tive de parar de dar aulas durante sete meses. Em julho [do mesmo ano], já estava de volta aos alunos do Ginásio Clube Português, em Lisboa, primeiro de muletas e, em setembro, sem elas», desabafa.
Não foram só os alunos a ficar espantados. Os médicos também. «Se estou com esta saúde e recuperei tão rápido é por causa do yoga, não tenho dúvidas. O meu médico, o ortopedista Carlos Evangelista, aceitou operar-me quando outros que consultei antes dele me disseram que devia era fica quietinha e não me mexer muito», recorda Clotilde Ferreira.
Antes da intervenção cirúrgica, sabe que o médico foi avisado. «Vais operar uma pessoa de 91 anos? Não vale a pena», disseram-lhe. «Tem 91 e mais saúde que muitos de vocês e do problema ósseo trato eu», terá respondido o especialista.
«Mas até ele ficou espantado com a minha recuperação», regojiza-se. Dois dias depois de ser operada, o especialista chegou ao quarto e meteu-se com ela. «Uma professora de yoga deitada? Nunca vi!», ironizou. «Peguei nas duas canadianas e levantei-me», revela Clotilde Ferreira. O segredo, garante, está na modalidade que pratica há mais de 60 anos e ensina há 50.
Da infância no Congo ao yoga em Bruxelas
Os primeiros anos de vida foram passados fora do país. «Passei grande parte da infância no Congo Belga, onde o meu pai estava emigrado. Ainda fiz o sexto ano em Portugal, onde vivia com uns tios, mas quando rebentou a guerra em Espanha, o meu pai teve receio das repercussões e veio buscar -me», recorda.
«Fomos viver para o mato, onde ele tinha uma plantação. Eu estudava em casa e ia a Leopoldville [atual Kinshasa] fazer exames. Eram poucas as mulheres que estudavam nessa altura. Foi numa dessas idas à capital que conheci o meu futuro marido, também português e empresário», conta. O casamento seria o passo seguinte.
«Casámos em 1942 e tivemos dois filhos, um rapaz e uma rapariga. Passava muito tempo na Bélgica porque a empresa era belga-congolesa e foi em Bruxelas que descobri o yoga, ou melhor, que o yoga me descobriu a mim. O nosso médico do Congo fazia yoga e achou que eu era muito meditativa. Então, deu-me o contacto de umas pessoas em Bruxelas, como o André Van Lysebeth e outros, que tinham ido à índia e estudavam yoga, e de quem me tornei amiga», afirma.
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O poder do pranayama
Foi na Bélgica que Clotilde Ferreira começou a ler livros sobre yoga e a praticar a modalidade. «Todos os anos, passávamos uma temporada na Suíça. Eles convidavam a vir professores, como o mestre indiano Amrit Desai de quem me tornei discípula e que é autor de uma linha de yoga, chamada kripalu yoga ou aAmrit yoga, que dá especial enfoque à articulação da respiração com o movimento. Desde o primeiro momento em que o vi soube que ia seguir o trabalho dele», refere.
«Juntamente com a meditação, foi a respiração ou pranayama, que me interessou sempre e até vim a fazer, mais tarde, uma especialização, nos EUA. O pranayama tem um efeito calmante e de equilíbrio. Faço todos os dias de manhã durante uma hora», revela Clotilde Ferreira.
«Hoje, por exemplo, tinha médico às nove, então levantei-me às seis, fiz uma hora de fisioterapia às pernas e fui para o terraço fazer pranayama, antes de ir ao médico. A meditação também me equilibra muito. No tempo que estive sem dar aulas, além de meditar em casa, comecei a traduzir um livro de yoga do inglês para trabalhar os neurónios. Agora, estou a traduzir um do francês sobre mantras», diz.
Uma professora de yoga em Lisboa
Em 1963, o marido de Clotilde Ferreira morreu. «Apanhou tuberculose e morreu em três meses. Mudou tudo nessa altura. Ele deixou pouco, o suficiente para eu poder voltar para Portugal, alugar uma casa e inscrever as crianças num colégio. Quando voltei, fui fazer yoga com a Maria Helena de Freitas Branco que foi quem começou o yoga em Portugal», prossegue.
Um dia, ela proferiu uma frase que a marcou. «Tu serias uma boa professora», disse-lhe. «Até aí nunca tinha pensado nisso, mas achei que se era para dar aulas tinha de aprender», confessa. «Fui a Bruxelas tirar um curso de formação e, logo no segundo ano, comecei a dar aulas num teatro em Torres Vedras», conta.
Os mais próximos estranharam. «A minha família achava-me uma excêntrica, claro. Fui sempre um bocado outsider e, ainda hoje, tirando uma nora, sou a única pessoa da família a fazer yoga. Foi sempre o que fiz. A dada altura surgiu a oportunidade de ir para hospedeira do ar mas isso implicava deixar os meus filhos sozinhos e não quis fazer isso», assume, sem rodeios.
Modalidade personalizada
Além de yoga, Clotilde Ferreira estudou shiatsu e meditação zazen com Deshimaru, o mestre que trouxe o zen para a Europa. «Integro essas técnicas nas minhas aulas. É um yoga meu, digamos», desabafa. «Todas as aulas começam com técnicas de automassagem do shiatsu, depois fazemos trabalho físico durante cerca de 45 minutos com especial enfoque na coluna e na respiração e terminamos com relaxamento e meditação», explica.
«Aos sábados, a seguir à aula de yoga dou meditação zazen, uma técnica em que estamos virados para a parede para diminuir as perturbações. A meditação é muito difícil inicialmente, mas na vida atual, com a loucura em que andamos no dia a dia, precisamos muito. É a cabeça que comanda o corpo. Aliás, foi isso que respondi às pessoas que não achavam bem eu dar as aulas de muletas», refere.
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Uma vontade férrea de continuar
Aos 91 anos, ainda não pensa parar. «Dou as aulas mais com a cabeça do que com o corpo e mesmo este está melhor que muitos. Atualmente, dou uma aula todos os dias e, enquanto puder e tiver alunos, hei de continuar. Corrijo muito os alunos, mas mais pela palavra. É importante desenvolver consciência do corpo e da mente», explica.
Esse é, de resto, um pensamento que há muito que norteia a vida profissional de Clotilde Ferreira. «Aliás, o meu primeiro trabalho como professora de yoga foi dar aulas a pessoas com deficiências motoras. O presidente da instituição, que era tetraplégico, fazia a aula em cadeira de rodas. E tinha o mesmo proveito. É essa a beleza do yoga», considera.
Tudo é energia
Ao longo do seu percurso, Clotilde Ferreira já assistiu a muita coisa. «Fico satisfeita se uma pessoa com 80 anos com dificuldades físicas vier fazer uma aula. E alguns dos meus alunos mais velhos surpreendem-me ainda hoje. Eu também continuo a aprender, uma aula nunca é igual à outra e o mesmo acontece com as posturas», diz.
«Podemos repeti-las mas é sempre diferente. A interrogação, essa é sempre a mesma, hoje, tal como nos anos da década de 60, o que as pessoas buscam é o mesmo. Paz! Hoje, medito cada vez mais. Na meditação, desaparece tudo e há uma fusão com a energia do todo. Tudo é energia ou prana. Temos é de saber captá-la», insiste.
Há tempos, o meu mestre disse-lhe «Já tens mais prana que eu!». «Mas também já sou mais velha que ele», sublinha. Apesar dos anos, não teme o futuro. «Da morte não tenho medo nenhum», assegura. «É uma passagem», acredita. «Sei que o corpo acaba mas a consciência perdura», acrescenta ainda.
Os quatro princípios do yoga segundo Clotilde Ferreira
1. Yoga não é ginástica
«É mais um trabalho mental do que físico. A postura de yoga não é malabarismo. Equilibra o corpo e a mente. Trabalhamos o físico para chegar à meditação», refere a professora.
2. A concentração conquista-se
«Não se nasce com ela. Hoje, sento-me e entro em meditação automaticamente, até consigo perceber as diferenças de rumo dos aviões que passam por cima de casa. A vibração de cada rota é diferente», sublinha Clotilde Ferreira.
3. Yoga é uma maneira de viver
«Faz-se todo o dia, não só na sala de aula. Estou a falar e estou a fazer yoga», afirma a instrutora.
4. Na meditação, a mente não para. Equilibra-se!
«Os problemas existem, mas podemos deixá-los passar e atingir um estado de paz», acredita Clotilde Ferreira.
Texto: Bárbara Bettencourt com Luis Batista Gonçalves (edição internet) e Artur (fotografia)
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