Em 2018, o Dicionário Oxford escolheu a palavra “tóxico” como termo do ano. Hoje, apelidamos as dívidas e os ativos como tóxicos, recordamos amiúde ambientes tóxicos, falamos de masculinidade tóxica e não apartamos a toxicidade das relações humanos. Nesse particular, referimo-nos às pessoas como tóxicas. A espanhola Silvia Congost, terapeuta especializada em dependência emocional, dedica o seu mais recente livro às relações tóxicas. Pessoas Tóxicas – Como Identificá-las e Libertar-se dos Narcisistas Para Sempre (edição Pergaminho), faz uma viagem a uma das faces mais negras das relações humanas, seja no âmbito familiar, no círculo de amigos, no trabalho ou no amor. “As pessoas tóxicas existem. Quer as vejamos ou não, quer as aceitemos ou não, elas existem, e muitas vezes podem estar bem próximas de nós”, lemos na apresentação ao livro que nos propõe um movimento de libertação. Sílvia Congost explica-nos, passo a passo, como sair dessa prisão emocional e reconstruir a vida.  Tema para uma conversa que chama a si questões como a personalidade tóxica, a compaixão e de como a saber exercer, mas também quais os seus limites; os perfis das vítimas e os sinais de que estamos numa relação tóxica. A este propósito diz-nos Silvia Congost: “sofremos, passamos mal. Há ansiedade, obsessão nas perguntas sobre os porquês para aquele comportamento”.

Um livro que a terapeuta, com dez obras publicadas, dedica “a todos aqueles a quem a vida decidiu que deveriam percorrer o árduo caminho de ter de lidar com pessoas tóxicas, para assim descobrirem a sua enorme grandeza”.

É terapeuta especialista em dependência emocional. Quer explicar-nos a sua atividade?

Sou psicóloga. No passado, estive numa relação que me foi tóxica e que me gerou dependência emocional. Tinha medo de pôr fim a essa relação. No fundo, não sabia como fazê-lo. Para entender o que era a dependência emocional, dei-me conta que queria dedicar-me profissionalmente a ajudar outras pessoas que viveram situações semelhantes, mas que não possuíam as ferramentas para essa superação. Passei a dedicar-me a 100% a acompanhar esse tipo de relações, também a escrever livros, a ministrar cursos e a participar em conferências. Dedico-me a esta atividade há perto de 20 anos. Tenho três centros de psicologia em Espanha, nas cidades de Madrid, Barcelona e Girona. Também fazemos muitas sessões online. Tenho uma equipa de mais de 30 pessoas. É esta a forma que encontrei para ajudar. Diria que mesclo a obsessão e a paixão por ajudar. No fundo, quero levar as pessoas a perceberem que não podem normalizar as relações tóxicas.

Na prática, a relação tóxica em que se viu envolvida trouxe-lhe força para construir algo grande…

Digo sempre que a experiência que mais me fez sofrer foi aquela que me deu o melhor presente na vida, ou seja, aquilo que faço atualmente, ajudar as pessoas.

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Abre o seu livro com a descrição de uma visita a uma vinha. Não o faz com intenções enológicas, antes com uma metáfora. O que nos quis transmitir com esta visita?

A metáfora prende-se com o seguinte: para compreendermos um vinho, há que perceber o que sofreu a vinha, se sofreu uma praga, se houve um período de seca. Há que ver nisso sinais que nos fazem perceber as características daquele vinho. No que se refere a pessoas tóxicas, há que perceber primeiro porque são assim. Se compreendermos de onde veio aquela pessoa, como foi a sua infância, a sua família, as suas carências, vamos compreender os porquês de alguém ser como é. Mas, atenção, não para a justificar. Se fizermos esse exercício em geral nas nossas vidas com os seres humanos que nos rodeiam leva-nos à empatia e à compaixão. Não pensarás somente porque te trata daquela forma, mas levar-te-á a perceber o que sofreu e ganhas com isso alguma distância.

É a compaixão de que fala no seu livro?

A compaixão, nalguns casos, é importante para entender porque os demais são como são e entender quem somos e que, na realidade, não somos os causadores das suas atitudes e dos maus-tratos que nos infligem. No caso de uma relação, a compaixão pode não ajudar a terminar a ligação que temos a essa pessoa, porque teremos a tendência para apoiar quem nos faz sofrer o que não nos levará à separação.

pessoas tóxicas
créditos: engin akyurt/Unsplash

Uma definição de toxicidade diz-nos: “a palavra pode referir-se metaforicamente aos efeitos perniciosos de qualquer entidade destrutiva sobre sistemas mais complexos, sociais ou naturais, como a família, a sociedade humana, um ecossistema ou a própria biosfera”. A Sílvia concorda que esta é uma definição que pode ser extrapolada para uma pessoa tóxica? Porquê?

Concordo totalmente. Quando inicias uma relação e se te sentes mal a nível físico, emocional e psicológico, muito provavelmente estás perante uma pessoa tóxica. Por isso é importante detetar o problema. Uso uma outra metáfora: somos intolerantes a pessoas tóxicas da mesma forma que o podemos ser às nozes. Tal como nas intolerâncias alimentares, a proximidade a uma pessoa tóxica pode ser mortal. Tenho pacientes que desabafam ao afirmarem querer pôr um ponto final à vida. Há casos de suicídio e de doença.

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Há pessoas que são mais propensas a rodearem-se de indivíduos tóxicos?

Sim. Se olharmos para trás, para a nossa história, veremos que se crescemos num ambiente tóxico, com maus-tratos, violência física, podemos normalizar esse tipo de tratamento. Logo sentimo-nos ‘confortáveis’ com pessoas que funcionam de forma igual. Para essa pessoa, o amor pode ser aquilo que viu em casa. Em adultos, estaremos como que programados para nos rodearmos de pessoas parecidas. Até que nos damos conta e tomamos consciência. Há pessoas que nunca se dão conta, outras sim. Os meus livros concentram-se nessa identificação para encetar a mudança.

Um perfil narcisista pode resultar de uma pessoa que, em pequena, sofreu ou assistiu a maus-tratos em sua casa, não recebeu carinho, foi humilhada e desrespeitada.

A Silvia fala-nos no seu livro de pessoas “danificadas”. Que pessoas são estas?

Quando falo de pessoas “danificadas”, refiro-me àquelas que apresentam danos emocionais devido ao que viveram. Um perfil narcisista pode resultar de uma pessoa que, em pequena, sofreu ou assistiu a maus-tratos em sua casa, não recebeu carinho, foi humilhada e desrespeitada. Isso deixa uma ferida na personalidade que condicionará e que a levará a tratar as demais sem empatia e compaixão e, claro, com danos causados a terceiros.

Estas pessoas tóxicas podem ser socialmente funcionais?

Sim, por exemplo, os perfis narcisistas podem ser pessoas muito inteligentes, com cargos de poder devido à sua ambição. Inclusivamente, podem parecer pessoas encantadoras para terceiros, o que poderá levar aqueles que rodeiam a vítima a não perceber aquela personalidade. Serão bons atores e atrizes. Por outro lado, uma pessoa tóxica pode não ser “danificada”. Por exemplo, posso ser tóxica para si por não partilharmos os mesmos valores. Se tivermos de trabalhar em conjunto vamos irritar-nos mutuamente.

De certa forma somos todos tóxicos…

Claro. Podemos ser tóxicos. Por exemplo, se numa relação, os dois não estiverem em concordância com ter filhos, um terá de renunciar. Isso levará, eventualmente, a mal-estar e a uma relação conflituosa. Podemos ser tóxicos para com um amigo, mas provavelmente iremos tomar consciência do facto e terminaremos com o comportamento que leva ao sofrimento do outro.

pessoas tóxicas
créditos: Miguel Bruna/Unsplash

Há quem diga que não há pessoas tóxicas, apenas difíceis.

As pessoas tóxicas existem, sem dúvida. Há que perceber do que falamos quando nos referimos a uma pessoa tóxica. Tenho um capítulo no livro onde refiro que não acho que o ser humano seja mau por natureza, não o demonizo. Mas, sim, existem pessoas tóxicas.

Quais são os sinais de que estamos numa relação tóxica?

Sobretudo porque sofremos, porque passamos mal. Há ansiedade, obsessão nas perguntas sobre os porquês para aquele comportamento e como encontrar a forma para que a relação funcione. Podemos ficar deprimidos, vermos a nossa autoestima destruída e, em extremo, desejar a morte. Há diferentes graus de sofrimento. Mas, sobretudo, porque não sentimos paz, sentimo-nos mal.

É possível reverter uma relação tóxica sem romper com as pessoas? Penso, por exemplo, em pessoas tóxicas que nos são muito próximas como pais e filhos.

Quando a pessoa tóxica é uma mãe ou um pai há a questão do laço familiar. O que podemos fazer, em adultos e se não queremos cortar a relação a 100%, é tentar entender porque aquela mãe e/ou pai é assim, exercemos a compaixão e garantimos a distância de que falei há pouco. Temos de nos proteger, eventualmente ver a pessoa menos vezes.

Quase todos já convivemos com uma pessoa tóxica no trabalho. Se é um companheiro de trabalho, afastamo-nos sempre que podemos. Se for uma chefia, há que pensar numa outra opção profissional a prazo.

E no trabalho…

Quase todos já convivemos com uma pessoa tóxica no trabalho. Se é um companheiro de trabalho, afastamo-nos sempre que podemos. Se for uma chefia, há que pensar numa outra opção profissional a prazo, pois podermos acabar doentes. Há muitos líderes que contam com perfis com transtornos narcisistas.

É possível identificar pessoas tóxicas nas redes sociais?

Sim, nalguns casos é possível identificar. Por exemplo, quando começas uma relação com alguém e a pessoa ‘bombardeia-te’ com mensagens todo o dia. Por outro lado, lê a tua mensagem e não te responde durante oito horas. Cria-te angústia. Deparamo-nos também com pessoas que proferem comentários que te perturbam ou que não te respeitam.

pessoas tóxicas
créditos: Pergaminho

O espetro de pessoas tóxicas é muito largo. Para si, qual é o tipo mais perigoso?

Julgo que os psicopatas e os narcisistas. Mas, os que vemos com mais frequência nos perfis com transtorno de personalidade são os narcisistas. Dedico um capítulo do meu livro a esse tema. Em consulta, desde há muito que trabalhamos com perfis narcisistas o que nos leva a perceber que há inúmeras pessoas que estão presas em relações narcisistas. Essas pessoas isolam-se aos poucos, tornam-se dependentes, ficam com medo de fazer algo mal. Em extremo, podem considerar que não sabem tratar dos seus filhos.

Há mais mulheres do que homens a pedirem ajuda psicológica?

Detetam-se mais casos de vítimas mulheres do que homens, mas há muitos homens que não pedem ajuda. Há muito mais mulheres narcisistas do que aquilo que pensamos. Quando um homem chega à consulta e se senta diz-nos: “envergonha-me dizer isto, mas creio que a minha mulher me maltrata”. Por questões culturais e educacionais, o homem hesita em dizer que é maltratado. Há que empoderar este homem para falar. Teme, por exemplo, que não possa ver mais os filhos. Uma mulher nesta condição pode ser muito perigosa. Quando toco neste tema há mulheres que me criticam. Não estou a dizer que não há mais mulheres maltratadas face aos homens, o que digo é que também há homens nesta condição.

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Qual é o perfil etário das vítimas que frequentam as suas consultas?

Normalmente um perfil entre os 30 e os 50 anos. Mas, relações tóxicas há as em todas as idades. Em idades mais avançadas, as mulheres tendem a resignar-se e não são capazes de perceber que podem viver uma outra vida, serem mais felizes.

Nas consultas aparecem vítima e a pessoa tóxica?

Não. O individuo tóxico se for diz: “venho porque esta pessoa não saberá explicar-te que não tenho nenhum problema”.

O seu livro também nos fala de recuperação. Como nos podemos recuperar após sairmos de uma relação tóxica?

O importante é entender, de fora, o que se passou. Como éramos, quais as feridas que permitiram tudo aquilo, há que identificar em que momento pusemos o limite que permitiu iniciarmos a mudança. É um processo para recuperar a autoestima, tomar consciência de tudo o que valemos, que nos tratem bem. Quando aprendemos a estar sós, sem companheiro ou companheira, estaremos preparados/as para iniciarmos uma nova relação.  E também saberemos identificar se estamos perante uma pessoa tóxica. Todos podemos sair de uma relação tóxica. É um caminho que nos fará, sempre, ganhar.

A Sílvia já escreveu dez livros. O que há de comum a todos eles?

Que as pessoas entendam o que lhes ocorre nas relações, o que as faz sofrer, o que não é normal. Creio nas relações e no amor, mas não acredito que o sofrimento construa uma relação. Não é normal se a tua mulher ou o teu marido te sujeitar, por exemplo, à humilhação perante os amigos.