Reportagem de Bruno Horta
O regresso rocambolesco a Portugal, o internamento e a operação ao cérebro
PVDE
“Altura: 1,70m. Cor: natural. Sinais particulares: tem duas pequenas cicatrizes debaixo do queixo.” Assim aparece descrito Valentim de Barros na ficha número 10.988 lavrada em 1939 pela Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), força secreta criada em 1933 por Salazar, com âmbito internacional e funções de controlo das fronteiras. Na ficha constam três fotografias tiradas pela polícia a Valentim. São os três retratos típicos dos presos políticos do Estado Novo: a preto e branco, tipo passe, com a cara de perfil, de frente e a três quartos. Valentim tem 22 anos, está de semblante fechado e manifesta uma beleza discreta.
A biografia prisional inclusa regista: “Preso por esta polícia no Porto em 2 de janeiro de 1939 em bordo do vapor São Miguel, vindo expulso da Alemanha. Restituído à liberdade em 25 de março de 1939.” Quase três meses de cárcere em Portugal. O processo 12/39, aberto na sequência destes factos, ostenta a acusação: “Expulso da Alemanha e falsa identidade”. Correspondência interna, apensa ao processo, oferece informações caricatas.
Valentim fica na cela 5 da delegação do Porto da PDVE, no Largo Soares dos Reis. Tenta fugir a 8 de janeiro, seis dias depois de ali ter entrado. Pede ao guarda Joaquim Matos para ir à casa de banho e “ao ser-lhe aberta pelo guarda a porta do referido WC, já para sair, empurrou com tanta violência a porta que este não pôde evitar a fuga já premeditada”, regista o tenente Manuel Magro Romão, diretor-delegado da PVDE. “Dado imediato conhecimento ao agente, ambos, bem como o 'chauffeur' de serviço, correram sobre ele, tendo-o conseguido recapturar junto ao quiosque do Largo Soares dos Reis.”
Mais escreve o diretor-delegado que “o Barros pretende fazer-se passar por alienado, levando dias e noites consecutivamente aos pontapés e socos à porta da cela, recusa toda a comida que lhe é levada, chegando por vezes a atirá-la para o chão”.
A 11 de janeiro, o tenente Romão muda de opinião e deixa cair a ideia de loucura dissimulada. Envia um ofício ao secretário-geral da PVDE, em Lisboa, perguntado, “a bem da Nação”, o que fazer com Valentim, pois este “nas suas atitudes vem dando sinais de demência”.
No dia anterior, 10 de janeiro, o encarregado dos serviços de investigação, António Ródo, escreve num relatório: “Apesar das várias tentativas feitas no sentido de averiguar dos motivos por que foi expulso da Alemanha o nacional Valentim de Barros nada de concreto se conseguiu apurar, em virtude de o mesmo dar indícios de alienação mental e não responder com suficiente clareza às perguntas que lhe são formuladas.” Despacho: “Seja presente ao Exº. clínico da polícia.”
A 23 de março, o tenente Romão escreve novamente ao secretário-geral da PVDE e deixa subentendido que Valentim foi considerado doente mental, logo, inimputável: “Verificando-se do relatório médico-legal passado no Hospital Conde Ferreira que ao preso não cabe responsabilidade criminal, tenho a honra de o fazer apresentar a V. Exª, a fim de ser entregue às pessoas de família que o mesmo possui nessa cidade.”
“Vim para o Governo Civil de Lisboa, acompanhado por um agente da PVDE. Daí trouxeram-me para este manicómio Bombarda”, recordará Valentim ao médico do hospital.
DOENÇA
Cerca de 300 doentes dão entrada em 1939 e Valentim é um deles. O hospital é então conhecido como Manicómio Bombarda ou Hospital de Rilhafoles, do nome do convento que ali tinha funcionado até 1834. Há 92 enfermeiros e sete médicos. Um deles faz o exame psiquiátrico a Valentim. E deixa gravado: “Cumprimenta-me à entrada, senta-se quando lhe ordeno. Modos afeminados, melífluos, dengosos, denunciantes da sua inversão sexual. Perfeitamente calmo, humor natural. Respostas adaptadas, longas, circunstanciadas, voz afeminada.”
A palavra “homossexual” tinha sido cunhada em 1848, ano em que o Miguel Bombarda é instituído por iniciativa do presidente do conselho de ministros Duque de Saldanha. “O impulso homossexual cria de antemão uma aversão ao sexo oposto”, estabelecera o psicólogo austro-húngaro Karoly Maria Benkert nesse ano de 1848. “A inversão sexual é uma doença tão digna de ser tratada como qualquer outra”, escreve Egas Moniz na sua tese de doutoramento em 1911 – ano em que arranca o ensino da psiquiatria em Portugal.
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