Na Natureza não faltam as imposturas. As sarigueias fingem-se de mortas quando são perseguidas por um predador. Os corvos emitem vocalizações de falso alarme para afastarem os rivais e não partilharem os alimentos. Anfíbios e répteis são impostores inveterados. Os próprios genes e células fazem batota.

Combinando as descobertas científicas mais recentes com um número elevado de exemplos, o zoólogo Lixing Sun evidencia no seu livro Os Mentirosos da Natureza e a Natureza dos Mentirosos (edição Temas e Debates) o modo como, na Natureza, a impostura assenta em duas regras básicas: a primeira é a mentira, pela qual os impostores alteram o significado de mensagens honestas na comunicação para servirem interesses próprios; a segunda é a exploração pelos impostores das fraquezas e dos défices nos sistemas cognitivos das outras criaturas. Lixing Sun demonstra que a mentira é um poderoso catalisador da disputa evolucionária entre o vigarista e o vigarizado, dela resultando um mundo biológico repleto de complexidade e beleza.

Com perspicácia e humor, o autor examina também a omnipresença do embuste na sociedade humana, identificando os tipos de impostura que promovem a inovação e a vitalidade cultural e estabelecendo um método para combater as mentiras maliciosas, de que são exemplos as notícias falsas e a desinformação.

Do livro, publicamos o excerto abaixo.

Mentirosos, mentirosos por todo o lado

Está grávida. Criar um filho exige muito tempo e energia, duas coi­sas que lhe faltam. Sem casa, não tem outro remédio senão procurar quem lhe tome conta do bebé — à borla. Não é fácil, mas ela sabe como consegui-lo. Procura nas redondezas e descobre uma casa aco­lhedora num bairro sossegado. A jovem mãe de família parece cari­nhosa e acaba de dar à luz um bebé, o que faz dela a substituta perfeita. Esconde-se ali perto, a vigiar a casa. A oportunidade surge quando a jovem mãe sai por instantes para ir buscar comida. Apro­xima-se, sorrateira, e troca o bebé pelo seu. E então atira impiedosa­mente a pequena vítima para um monte de lixo.

O que acaba de ler é a descrição de um assassínio a sangue-frio, um crime que acontece na natureza sempre que uma fêmea de cuco deposita o seu ovo no ninho de outra ave. O cuco está a enganar, embora o cenário não corresponda à definição mais habitual do verbo «enganar» que consta dos dicionários: «agir de uma forma desonesta ou injusta para conseguir uma vantagem». Entre os huma­nos, enganar envolve habitualmente um elemento de intenção. No mais vasto mundo biológico, porém, provar intenção não é fácil nem necessário. Para o biólogo, desde que um organismo aja de maneira a beneficiar-se a expensas de outro — sobretudo em situa­ções em que se esperaria cooperação —, está a enganar.

Este livro trata do comportamento, evolução e história natural do engano. Apesar de, na linguagem comum, o termo «enganar» seja frequentemente intercambiável com «mentir» e «aldrabar», as três palavras têm conotações diferentes. Além disso, mentir e aldrabar envolvem processos biológicos muito diferentes, como veremos nos dois capítulos seguintes. Neste livro uso a palavra «enganar» para significar tanto mentir como aldrabar ou, já agora, fazer batota.

Os aldrabões estão por todo o lado no mundo biológico, de acordo com a nossa definição alargada de enganar. Os macacos recorrem a artimanhas para conseguir sexo; as sarigueias fingem-se de mortas quando perseguidas por um predador; as aves afastam os rivais do alimento que cobiçam emitindo uma vocalização de alerta normal­mente usada para lançar o alarme face à aproximação de um perigo; anfíbios e répteis são impostores consumados, capazes de alterar a cor do corpo para se confundirem com o meio ambiente; o esgana­-gata, um pequeno peixe de água doce, protege os seus ovos atraindo os congéneres canibais para longe do ninho; lagartas indefesas afas­tam os predadores mascarando-se de animais perigosos como cobras, com grandes olhos falsos (ver ilustração a cores 1); as lulas escapam aos perseguidores ejetando tinta para criar uma «cortina de fumo» na água. Poderia prolongar indefinidamente esta lista de comporta­mentos enganadores e mentirosos no mundo animal.

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O que talvez o surpreenda é saber que, para enganar, não é pre­ciso ter um cérebro, ou sequer um neurónio, uma vez que também muitas plantas o fazem. A maior parte das orquídeas, por exem­plo, imita o aroma do alimento preferido dos respetivos polinizado­res. Cerca de 400 espécies, no entanto, desenvolveram uma tática ainda mais audaciosa: enganam os polinizadores machos imitando o cheiro e a forma das respetivas fêmeas para aproveitar o entusiasmo com que eles procuram uma oportunidade de acasalar (ver ilustração a cores 2). Ainda mais espantoso é o facto de estas plantas consegui­rem manter o interesse dos polinizadores machos impedindo-os de ejacular. Deste modo, o frustrado polinizador continuará a procurar outra fêmea — incluindo uma flor que se pareça com uma fêmea — com que acasalar. Uma vez que estes machos são altamente promís­cuos, cumprem com grande eficácia a sua missão de disseminar pólen de orquídea.

Até os fungos fazem batota. Por exemplo, as trufas — uma espécie aparentada aos cogumelos que forma corpos frutificantes no subsolo — emitem um esteroide chamado androstenol que imita a feromona dos javalis. O androstenol é produzido nos testículos dos javalis machos adultos e tem, para o olfato humano, um cheiro bolo­rento. Quando a fêmea do javali deteta o aroma das trufas, põe-se a escavar entusiasticamente em busca da origem. O que não sabe é que está a ser enganada por algo que não apresenta qualquer semelhança com o galã que esperava. O único resultado do seu apaixonado fer­vor é espalhar os esporos das trufas. Missão cumprida para os fun­gos enganadores.

Organismos complexos como plantas e fungos aldrabam; mas o mesmo faz a vida unicelular. Um bom exemplo é a amiba social, conhecida dos cientistas pelo seu nome científico Dictyostelium dis­coideum(«Dicty», para os amigos). Quando obrigadas a passar fome, as células das amibas juntam-se para formar uma estrutura móvel que faz lembrar uma lesma. A «lesma» move-se como uma unidade até encontrar um local adequado e então desenvolve um corpo frutificante constituído por uma cabeça produtora de espo­ros na ponta de um fino caule. O conjunto tem o aspeto de um chupa-chupa ou de uma maraca (um instrumento de percus­são parecido com uma roca, muito popular na América Latina). As células da cabeça, que representam 80% do total, produzirão a geração seguinte quando o alimento voltar a ser abun­dante. Os restantes 20% de células que constituem o caule, no entanto, apodrecem uma vez cumprida a sua missão — manter a cabeça erguida para que os esporos possam espalhar-se pela maior área possível, como dentes-de-leão a confiar ao vento as suas semen­tes penugentas.

Se fosse uma célula de amiba, onde preferiria estar — na cabeça ou no caule do corpo frutificante? Na cabeça, claro! Porque só na cabeça tem a oportunidade de transmitir os seus genes à geração seguinte. Se fosse uma célula do caule, os seus genes estariam conde­nados a um beco sem saída evolucionário. Quem, no mundo bioló­gico, quer ser relegado para uma condição inferior, sem possibilidade de reproduzir-se?

Felizmente, isto não é um grande problema quando as células de amiba têm a mesma estrutura genética, como os gémeos verda­deiros. Quando as células partilham um mesmo conjunto de genes, pouca diferença faz quais delas asseguram a próxima geração. Mas se o corpo frutificante é composto por uma quimera de dois ou mais géneros de células, em que muitos dos genes são diferentes, há conflito. Todas elas competem por fazer parte da cabeça fértil, em vez de desempenharem um papel secundário no caule estéril. Como seria de esperar, células diferentes fazem jogo sujo para conseguir chegar à almejada cabeça, recorrendo a todos os meios necessários, incluindo enganar. Alguns tipos de células conseguem, graças a determinadas mutações genéticas, defraudar as outras enviando para a cabeça mais do que a sua quota-parte de «representantes», uma manobra semelhante à tática política de subdividir os círculos eleitorais de modo a ter mais deputados. Além disso, quando che­gam à cabeça, segregam substâncias químicas nocivas que impe­dem as retardatárias de entrar no salva-vidas para a geração seguinte. Estudos recentes revelaram que mais de cem genes estão envolvidos neste esquema fraudulento.

Visitemos agora o mundo das bactérias para ver se também elas enganam. As bactérias são minúsculas. Individualmente, não conse­guem fazer grande coisa. Tal como construir a Grande Muralha envolveu centenas de milhares de seres humanos, levar a cabo tarefas bacterianas coletivas (como emitir luzbioluminescência — e reti­rar do meio ambiente elementos vitais) exige milhões de bactérias a trabalhar juntas para um fim comum. Por isso, muitas vezes, as bactérias juntam-se para formar uma fina película viscosa, chamada biofilme, no solo ou na água.

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Outro projeto comum das bactérias é recolher ferro, um ele­mento crucial à sua sobrevivência. O problema são as baixas concen­trações em que o ferro é, regra geral, encontrado nas proximidades imediatas. Porque uma bactéria individual pouco pode fazer sozi­nha, captar ferro é necessariamente um trabalho coletivo. A fim de coordenar esforços, os membros da comunidade bacteriana «falam» uns com os outros emitindo substâncias químicas graças às quais indicam a determinados genes que se «liguem» em sincroniza­ção para constituir uma família de compostos complexos chamados sideróforos. Os sideróforos são aparentados à hemoglobina das nos­sas células sanguíneas, na medida em que conseguem ligar-se ao ferro. Por isso, as bactérias usam-nos como uma rede de pesca para apanhar o ferro em flutuação no meio ambiente.

Mas há um senão. A produção de sideróforos é onerosa para as bactérias individuais em termos de material e energia. E, no entanto, constituem um bem público, um recurso partilhado por todos os membros da comunidade. Como todos sabemos, quando há um bem público, aparecem quase sempre borlistas dispostos a aprovei­tar. Quem nunca esteve numa situação em que alguns membros da equipa aceitam os louros pelo trabalho do grupo, apesar de terem contribuído muito menos do que os outros?

Também as bactérias têm de lidar com este dilema social. O que não falta é oportunistas que contribuem com menos do que a sua quota-parte para a produção de sideróforos, mas que nem por isso se eximem de devorar a safra — o ferro —, como os outros que fizeram o trabalho. Como é lógico, os batoteiros podem prejudicar o esforço coletivo. Se são demasiado numerosos, a produção de sideróforos cai e a quantidade de ferro captado declina, o que por sua vez põe em perigo a vida de toda a comunidade. Ameaçados por esta consequên­cia potencialmente fatal, os produtores honestos desenvolveram um arsenal de estratégias antifraude. Algumas bactérias, por exemplo, podem juntar-se às suas irmãs genéticas para impedir que as oportu­nistas se infiltrem na comunidade. Podem até usar toxinas para matar as impostoras.

mentirosos
créditos: Temas e Debates

Até os vírus enganam. Não são considerados seres totalmente vivos, porque lhes faltam as ferramentas biológicas necessárias para sobreviverem e reproduzirem-se sozinhos, de modo que têm de rou­bar recursos e a maquinaria genética dos anfitriões para completar o seu ciclo vital. Significa isto que para aldrabar não é sequer preciso ser uma forma de vida completa.

Têm sido bem documentados casos flagrantes de fraude viral. Acontece um exemplo quando diferentes espécies de vírus ou varian­tes de uma mesma espécie infetam uma única célula anfitriã. Os seus recursos genéticos —como genes e proteínas — misturam-se, o que dá a certos vírus a oportunidade de recorrer ao engano para roubar os recursos produzidos por outros, que lhes servem de ajudantes involuntários. Desde modo, os vírus trapaceiros não precisam de possuir todos os genes essenciais para fazer cópias de si mesmos ou para produzir o invólucro proteico, chamado cápside, que lhes pro­tege o material genético.

O que vimos até agora foram exemplos de engano entre indivíduos diferentes, simples ou complexos, unicelulares ou multicelulares. Mas pode também ocorrer no mesmo indivíduo. As células cancero­sas, por exemplo, são células enganadoras que fogem ao dever de cooperar com outras células do corpo. Em vez disso, açambarcam todos os recursos, proliferam e recusam suicidar-se quando isso lhes é ordenado. Assim, lutar contra o cancro é essencialmente lutar con­tra células impostoras, como Athena Aktipis deixou bem claro no seu livro de 2020, The Cheating Cell.

Mesmo no interior de uma célula típica, o engano faz parte da vida — por exemplo, o cromossoma B vive à custa de aldrabices. Em gritante contraste com os cromossomas «A» que conhecemos, os cromossomas B são mais pequenos e podem ser muito abun­dantes, presentes em quantidades variáveis dentro de uma célula (Fig. 1.2). O que os torna notáveis é a capacidade de «ir no grupo» sem fazer qualquer espécie de trabalho. Por outras palavras, passam de geração para geração à boleia, sem contribuir seja como for para a funcionalidade da célula, muito como os «penetras» que apare­cem nas festas para comer e beber à borla e divertirem-se à custa do anfitrião.

Até os genes mentem. O seu corpo é um recipiente para uma enorme quantidade de refugo genético conhecido como ADN lixo. Tal como os cromossomas B, o ADN lixo não serve qualquer propó­sito para o organismo hospedeiro, mas passa à boleia de geração em geração. A quantidade de ADN lixo presente no organismo é verda­deiramente impressionante. Chega a representar 98% do nosso genoma, compreendendo muitas variedades de material genético inú­til, como elementos repetidos, pseudogenes e elementos transponíveis (estes últimos são mais pitorescamente chamados «genes saltadores»).

Os genes saltadores são fragmentos de ADN capazes de se inse­rir em praticamente qualquer ponto do genoma através de um pro­cesso de «copiar e colar», como o que fazemos num programa de processamento de texto. São tão prolíficos que representam até 45% de todo o genoma humano. Um gene saltador bem conhecido é o elemento Alu. Com o comprimento aproximado de 300 pares de bases, o elemento Alu produziu mais de um milhão de cópias de si mesmo na linhagem evolucionária que levou aos humanos ao longo dos últimos 53 milhões de anos. Hoje, representa até 10,7% de todo o genoma humano. Graças à natureza hiperativa dos genes saltado­res e à sua capacidade de se autopromoverem, o genoma das sala­mandras pode ser 40 vezes maior do que o dos humanos15. Uma vez que todos os animais (na realidade, todos os organismos eucariotas) têm aproximadamente o mesmo número de genes funcionais, aquilo de que as salamandras podem gabar-se é de ter uma lixeira genética de dimen­sões gigantescas.

Fazendo jus ao nome, os genes saltadores saltam, e saltam aleato­riamente de um ponto para o outro do genoma. Porque a vasta maioria do nosso ADN é refugo, quando um gene saltador se replica e vai inserir-se noutro ponto do genoma, o efeito, é o mais das vezes, negli­genciável, qualquer coisa como atirar mais um saco de lixo para um enorme aterro. Mas ocasionalmente esta inserção pode ocorrer numa área no meio de um gene funcional. Se isto acontece, pode causar graves defeitos genéticos e levar a problemas de saúde como o cancro ou a hemofilia.

Intrigado com os genes saltadores? Há também casos de genes mentirosos chamados «elementos genéticos egoístas», ou, mais colo­ridamente, «genes fora da lei». Entre os mais conhecidos contam-se os causadores de distorção de segregação ou desvios meióticos em insetos. Na mosca-da-fruta comum usada nos laboratórios, Droso­phila melanogaster, estes genes podem multiplicar a sua representa­ção no genoma matando as células espermáticas portadoras de alelos alternativos. Ao fazê-lo, obtêm mais do que a justa quota-parte do que normalmente seria uma repartição equitativa. Se estes genes fora da lei se localizam nos cromossomas X ou Y, o resultado pode ser uma proporção distorcida entre géneros (mais machos ou mais fêmeas) em vez de uma distribuição 50/50.

O último caso de genes enganadores que quero descrever diz respeito aos chamados «elementos de conversão». Estes genes especi­ficam o código genético de enzimas da família das endonucleases, conhecidas por meganucleases (homing endonucleases), que têm a capacidade de clivar uma cadeia de ADN em locais específicos, após o que inserem na falha assim criada uma réplica de si mesmas. É assim como um ginecologista desonesto que inseminasse com o seu próprio esperma os óvulos das mulheres que o procurassem para conseguir uma fertilização artificial.

Os elementos de conversão cometem uma fraude genética ao violarem as regras seguidas pelos outros genes. Os genes que obe­decem às regras podem ser diretamente prejudicados, ao ficarem incapacitados, ou indiretamente, ao enfrentarem uma concorrên­cia desproporcionada numa corrida injusta. Tal como os genes saltadores, os elementos de conversão podem ser transmitidos trans­versalmente, replicando-se e inserindo-se no genoma dos seus pares, além de no da sua própria descendência. (Inesperadamente, esta capacidade «batoteira» de autopromoção confere hoje um novo élan às meganucleases: são a base da tecnologia de edição genética cha­mada CRISPR, de que foram pioneiras Jennifer Doudna e Emma­nuelle Charpentier, galardoadas com o prémio Nobel da Química de 2020.)

Os elementos genéticos egoístas como os cromossomas B, os genes saltadores, os agentes da distorção de segregação e os elemen­tos de conversão partilham uma característica comum: todos pro­movem os seus próprios interesses à custa de outros genes. Uma vez que os padrões de transmissão destes elementos genéticos violam as clássicas leis mendelianas, talvez sinta agora que aprendeu as coisas erradas nas aulas de Biologia do Secundário. Não se preocupe. Os sistemas biológicos são complexos e raramente regulados por leis universais como na Física. Por isso a Biologia é conhecida como a ciência das exceções.

A secção anterior, apesar de ter referido apenas alguns exemplos, demonstra que o engano existe em todos os domínios da vida, a todos os níveis da hierarquia biológica, dos organismos mais com­plexos às formas de vida menos sofisticadas, inclusivamente incom­pletas. Existe entre animais, plantas, fungos, bactérias, vírus, cromossomas e fragmentos de ADN. Acontece dentro do mesmo indivíduo, entre indivíduos da mesma espécie, e entre espécies larga­mente diversas na forma e na função.

Independentemente da prevalência da prática na natureza, no entanto, as palavras «mentir», «enganar» e «iludir» têm todas conotações negativas devido à nossa preferência moral e à maneira como valorizamos a honestidade. Mas por muito que apreciemos a honestidade e detestemos a mentira, a vida real corre muitas vezes ao arrepio do que idealmente desejamos. Ao contrário do que afirma o velho ditado, a honestidade nem sempre é a melhor polí­tica na vida do dia a dia.

Consideremos o seguinte caso. Um homem inocente foi injus­tamente acusado, condenado e sentenciado à morte. Desesperados por salvá-lo, os seus leais amigos propõem uma saída: fugir subor­nando o carcereiro. Mas quando é confrontado com esta escolha, declina, alegando que fazê-lo seria defraudar o sistema legal. Que acha deste conceito de honestidade tal como é aplicado por este homem? Se estivesse no lugar dele, que faria?

Se pensa que a escolha do sujeito é tola, parabéns! Acaba de sal­var a vida de Sócrates, o filósofo grego que preferiu a morte a que­brar a confiança entre um cidadão e o Estado. Quais seriam as probabilidades de encontrarmos no mundo natural um herói mártir disposto a morrer em nome da honestidade e da confiança? Seriam, sem dúvida, muito pequenas — na realidade, não existem exemplos conhecidos. Pelo contrário, sabemos que o engano é ubíquo na natureza a todos os níveis.

Por que razão é o engano tão comum no mundo biológico? Resposta: porque a evolução não é um filósofo socrático. É um pro­cesso amoral e desapiedado que funciona pragmaticamente sem que­rer saber das nossas preferências éticas, códigos de honra ou sistemas de valores. E de certeza que não faz qualquer diferença entre coope­ração pró-social e manipulação antissocial, porque a única coisa que importa é promover a sobrevivência e a reprodução. Qualquer característica —seja ela morfológica, fisiológica, comportamental ou genética — pode prevalecer desde que favoreça a aptidão darwi­niana do possuidor, definida e medida pelo número de filhos nasci­dos e criados até à idade adulta. Além disso, enquanto liberta o engano da nossa consideração moral, a evolução castiga aqueles que o descartam como opção estratégica quando usá-lo pode aumentar a respetiva aptidão. Em resultado disto, por muito desavergonhado e desprezível que possa parecer às nossas sensibilidades sociais huma­nas, o engano campeia no mundo biológico.

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Portanto, o engano floresce na natureza como uma consequên­cia direta da seleção natural. Menos conhecido, no entanto, é o facto de o engano ser ele próprio um potente motor da evolução. A razão é conceptualmente simples: enganar favorece o enganador e preju­dica o enganado. Assim sendo, promove a emergência de táticas antiengano, que por sua vez geram estratégias antiantiengano, ad infinitum. E enquanto decorre esta corrida ao armamento evolucio­nária, para citar Darwin, «evoluíram, e continuam a evoluir, inúme­ras espécies muito belas e maravilhosas».

Para ilustrar este ponto, peguemos no caso do engano entre as bactérias do género Rhizobium, que vivem nas raízes das plantas, especificamente das leguminosas. Estas bactérias fixam nitrogénio para as plantas, que em troca lhes proporcionam alojamento e ali­mentação, na forma de carbono. Temos, pois, uma relação suposta­mente feliz e mutualista — ou era o que pensávamos. Um exame mais atento revelou que aquilo que parecia ser um relacionamento amoroso entre as Rhizobium e as plantas hospedeiras é na realidade muito mais complicado. Algumas bactérias produzem muito pouco nitrogénio; ou seja, recorrem ao engano para obter casa e carbono da parte das plantas. É por isso que nem todas as plantas as acolhem de braços abertos. Sabe-se de algumas que contra-atacam cortando o abastecimento de nutrientes se as bactérias preguiçosas se tornam demasiado numerosas. Só as que vivem em solos pobres e precisam desesperadamente de nitrogénio toleram, de má vontade, um rela­cionamento injusto com as Rhizobium. Como em tudo o mais, a cavalo dado não se olha o dente. Isto mostra como o engano pode desencadear uma cascata de outras manobras e contramanobras, enquanto bactérias e anfitriãs tudo tentam para ficar na mó de cima.

Intrigado pelas complexas estratégias que emergem do jogo evolucionário entre bactérias e plantas? É apenas um caso simples que ilustra a maneira como o engano pode levar a uma corrida ao armamento evolucionária e tornar-se um poderoso catalisador da criação de diversidade, complexidade, e até beleza, como veremos nos capítulos seguintes.

Infelizmente, o papel do engano na evolução continua a ser menosprezado por duas razões essenciais. Uma delas é histórica. O próprio Darwin não o considerava uma força importante na evo­lução por seleção natural. A Origem das Espécies nunca menciona a palavra «engano», mas, em contrapartida, usa sete vezes o termo «ilu­dir» — só três dessas vezes em relação a um comportamento ani­mal e todas elas referentes a formas de mimetismo, a disfarces protetores utilizados por vermes suculentos para enganar os seus pre­dadores. Muito claramente, a maneira como o engano se relaciona com a evolução e a biodiversidade não era coisa que ocupasse o espí­rito de Darwin — ou pelo menos que tivesse uma prioridade elevada na hierarquia das suas muitas ideias.

A omissão de Darwin implica a segunda razão da pouca impor­tância que damos ao engano. É fácil ver a seleção natural em termos de uma perpétua e mortífera competição por recursos entre rivais, ou em termos de sobreviver aos ataques de predadores, parasitas e patógenos. Por causa disto, a evolução tem sido popularmente este­reotipada como a «sobrevivência dos mais aptos» e a natureza como «impiedosa e sangrenta». Esta impressão unidimensional tende a desviar-nos a atenção do soft power [«poder suave»] dos comporta­mentos cooperativos, que em nada são menos eficazes para promo­ver a aptidão em numerosas situações e contextos, um ponto destacado por muitos cientistas durante as últimas décadas.

Para alguns animais, a inteligência social é significativamente mais importante do que a força física. Entre os bonobos, por exem­plo, o êxito em termos de aptidão baseia-se na força da rede social de cada indivíduo. Um bruto zaragateiro que confie na simples força muscular está condenado a perder quando confrontado com o esforço unido dos membros cooperantes do grupo. Sem um mínimo da tão necessária inteligência social, pode também tornar-se um objeto de manipulação, explorado pelos outros. É por isto que o engano, um catalisador de inteligência social, é tão importante na evolução.

Com a emergência da moderna inteligência humana, a corrida ao armamento entre estratégias de engano e contraengano não só se expandiu e intensificou largamente como também começou a tra­var-se a um novo nível —a arena da evolução cultural. E tal como resulta no aparecimento de novas características biológicas, o engano é uma poderosa força catalítica que acelera muitas inovações cultu­rais, que por sua vez levam à diversidade e à complexidade. Sem o engano, não haveria literatura, arte, tecnologia, negócios ou religião — e a lista alonga-se até englobar todos os aspetos das nossas vidas, da nossa sociedade e da nossa cultura. Isto pode parecer, agora, pro­fundamente contraintuitivo, mas as razões tornar-se-ão evidentes quando nos focarmos na maneira como a tecnologia e as instituições culturais modernas evoluem e se transformam em sincronia com o engano.

Não obstante a ênfase que ponho no poder catalisador do engano, não tenho o desejo nem a intenção de criar uma narrativa revisionista das virtudes da mentira. Pelo contrário, muitas formas de engano, sejam ou não consideradas crime, podem causar danos significativos a pessoas inocentes. É por isso que nenhuma filosofia moral ou religião séria aprova ou advoga a mentira. Como os cien­tistas sociais largamente mostraram, a argamassa cultural básica que nos liga, como uma sociedade humana, é a confiança. Embora possa não parecer pelo que descrevi até agora, este livro vai reafirmar esse ponto de uma perspetiva biológica. É impensável que uma sociedade consiga manter-se durante muito tempo sem ter a hones­tidade e a verdade como seus alicerces morais. É por isso que nós, os humanos, tentamos há milénios erradicar a batota e os batoteiros.

No entanto, mau grado todos os nossos esforços, o engano tem sido um problema persistente e perene em todas as sociedades humanas através da história. Nenhuma sociedade, na realidade, conseguiu alguma vez eliminá-lo por completo. Ainda por cima, como se o problema não fosse já mau que bastasse, o engano tor­nou-se percetivelmente pior na Idade da Informação. Não só todas as trapaças tradicionais continuam a existir, como o ludíbrio che­gou também ao domínio digital, onde encontrou um terreno fértil para prosperar. Está a aparecer e a evoluir com crescente sofistica­ção e alcance um vasto número de novos esquemas criminosos, do phishing à sextortion. A nível da sociedade, a ubiquidade das notí­cias falsas e das teorias da conspiração representa uma ameaça muito real para a democracia. Ao impedirem os cidadãos de obter informação correta e fiável, minam a nossa capacidade de chegar a acordo sobre a natureza básica da verdade e do facto. Que deve­mos fazer em relação ao engano, uma vez que somos incapazes de erradicá-lo?

A natureza aparentemente quixotesca e fatalista desta campa­nha não significa que não valha a pena tentar, nem que estejamos condenados a perder. Em vez disso, dá-nos uma oportunidade de repensar a nossa abordagem nesta era digital e encontrar novas maneiras de lidar com um problema que está connosco desde tem­pos imemoriais. Nesta área, a ciência evolucionária oferece-nos um manancial de sabedoria aonde podemos todos ir beber.

Este livro vai proporcionar-lhe uma excursão pelo mundo dos batoteiros, para que veja como os organismos usam um largo espec­tro de métodos para enganar, aldrabar e defraudar outros indiví­duos e, deste modo, obter vantagens para si mesmos. Mais importante, vamos procurar o modus operandi por trás da enorme diversidade de truques, esquemas e fraudes. Vamos usar a nossa recém-adquirida compreensão evolucionária de como os mentiro­sos operam para conceber novas estratégias de combate ao engano na nossa sociedade.

Especificamente, nos dois próximos capítulos, vamos analisar como os animais mentem usando duas regras que estão presentes ao longo de todo este livro. Em seguida, no Capítulo 4, descobriremos como e por que razão a honestidade pode sobreviver e florescer no meio desta inundação de mentiras e enganos. Com esta informação presente nos nossos espíritos, passaremos ao Capítulo 5, para ver como o engano pode estimular a emergência de novas características comportamentais, intelectuais e artísticas ao longo da corrida ao armamento evolucionária. Seguir-se-ão dois capítulos em que abor­daremos, respetivamente, o engano e a autoilusão nos humanos e mostraremos que as regras usadas para enganar se aplicam tanto ao domínio biológico como ao cultural. Finalmente, arriscar-nos-emos numa terra incognita filosófica e tentaremos resolver uma controvér­sia milenar: há alguma mentira que seja moralmente aceitável?

Quando acabar de ler este livro, espero que tenha ficado con­vencido pela sua premissa básica e o seu objetivo geral: o engano é um poderoso catalisador que contribuiu para a criação de diversi­dade, complexidade e beleza nos mundos cultural e biológico. Com­preendendo como funciona, é possível contê-lo na prática, por muito que pareça ser uma parte inevitável e invencível da vida.

Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.