O Noroeste dos Estados Unidos sempre teve um clima ameno. Até 2021. Imaginar ali uma onda de calor assassina parecia tão improvável como ver neve no deserto do Saara. Mas no verão desse ano, em 24 horas, a temperatura subiu dos 24,5ºC para os 45,5ºC. o que aconteceu nos três dias seguintes não pode ser contabilizado apenas em mortos, e foram mais de mil.

Árvores explodiram, frutas secaram, salmões sufocaram, o asfalto derreteu. É sobre este tipo de calor que nos fala o jornalista americano Jeff Goodell no livro O Calor é Que Te Vai Matar (edição Lua de Papel), a partir de diferentes pontos do planeta, do Ártico à Antártida. Na ilha de Baffin, o autor tem um encontro aterrador com um urso polar; no deserto de Sonora vê como a guarda fronteiriça usa as temperaturas extremas para deter a imigração clandestina. Pelo meio explica-nos a ciência do calor, como está a alterar o planeta, como afeta o nosso corpo, como nos pode matar.

O autor recusa a futurologia, limita-se a relatar factos. Recorda-nos o que está a ser feito e o que há por fazer, baseado nas mais recentes pesquisas e nas lições dos nossos antepassados. E oferece, na essência, um manual de sobrevivência. E recorda-nos que “nas nossas grandes decisões, como a compra de casa ou a cidade onde viver, precisamos mesmo de ter em conta o calor”.

Do livro, publicamos o excerto abaixo:

Ilhas de calor

Na baixa de Phoenix, num dia escaldante, quando a temperatura chega aos 46 graus, ou mais, o sol agride-nos, obriga-nos a procurar abrigo. O ar parece ser sólido, uma espécie de cortina nebulosa de calor, saturada de ozono. Sente-se como ele irradia do alcatrão do parque de estacionamento e atravessa os sapatos. Na rua Van Buren, as paragens de autocarro metálicas tornam-se autênticos fornos. O aeroporto internacional Sky Harbor começa a adiar voos, porque o ar rarefeito e quente não permite aos aviões a tração suficiente para descolarem. Na câmara municipal, cuja entrada ostenta um emblema metálico gigante do sol, os funcionários preferem comer o almoço no átrio de entrada em vez de se aventurarem ao ar livre para os restaurantes próximos. Nos arredores, os cabos de energia tremem e zumbem, sobrecarregados com eletrões à medida que a procura de ar condicionado aumenta e toda a rede é levada ao limite. No Arizona, no meio de uma onda de calor, a eletricidade não é uma comodidade. É um instrumento de sobrevivência.

As cidades modernas são impérios de asfalto, cimento e aço, materiais que absorvem o calor e ampliam o seu efeito de dia; depois, à noite, irradiam-no. Os aparelhos de ar condicionado expulsam ar quente, o que exacerba o problema da acumulação de calor urbano. Na baixa de Phoenix podem estar mais 11 graus do que na área em redor. Em Nova Iorque, de dia, a cidade está 2 a 3 graus mais quente do que os subúrbios arborizados – e, à noite, a temperatura pode ser 10 graus superior. Este fenómeno, que urbanistas e investigadores do calor conhecem como o efeito da ilha de calor urbana, é tão generalizado que os céticos sobre as mudanças climáticas chegaram a afirmar que elas não passam de uma ilusão criada por milhares de estações meteorológicas que em tempos ficavam no campo, mas que o desenvolvimento urbano, entretanto, cercou (este argumento, como a maior parte dos apresentados pelos céticos, foi completamente desmontado).

“Nas cidades, o efeito da ilha de calor urbana tem tido um impacto muito maior nas temperaturas locais do que as próprias alterações climáticas”, afirmou David Hondula, cientista na Universidade do Arizona e diretor do programa de resposta e mitigação do calor da cidade de Phoenix.

Jeff Goodell no livro O Calor é Que Te Vai Matar
Jeff Goodell no livro O Calor é Que Te Vai Matar créditos: Wikimedia Commons

Em 2021, houve 339 mortes relacionadas com o calor no condado de Maricopa, a que Phoenix pertence. Pode não parecer muito, em especial em comparação com as 70 mil pessoas que morreram em 2003 numa onda de calor na Europa em apenas alguns dias, mas foi mais do triplo de uma década antes, quando a cidade ainda não tinha começado a tomar ações deliberadas contra o calor. A tendência está na linha do número crescente de mortes nas cidades relacionadas com o calor. Um estudo recente da Academia Nacional das Ciências dos Estados Unidos afirma que, globalmente, o risco do calor em áreas urbanas triplicou nos últimos quarenta anos, pondo em risco 1700 milhões de pessoas. Sem ações radicais para reduzir a poluição por CO2 e mudar a maneira como vivemos, o número de pessoas em risco crescerá exponencialmente. No ano 2050, 70 por cento da população mundial viverá em cidades.

Só agora começam a ser compreendidos os perigos em cascata do calor extremo em áreas urbanas, mesmo em lugares como Phoenix, que é há muito tempo uma das cidades mais quentes dos Estados Unidos. Para Mikhail Chester, diretor do Centro Metis para Infraestruturas e Engenharia Sustentável na Universidade do Arizona, todos os anos aumenta o risco de uma catástrofe gerada pelo calor. “Como será um furacão Katrina de calor extremo?”, perguntou-me quando, há uns anos, nos sentámos a conversar num café perto do campus. O Katrina, que atingiu Nova Orleães em 2005, causando perto de duas mil mortes e deixando mais de cem mil milhões de dólares em prejuízos, demonstrou até que ponto uma cidade pode não estar preparada para acontecimentos climáticos extremos.

“O Katrina provocou uma falência em cascata das infraestruturas urbanas em Nova Orleães que, na verdade, ninguém previu”, explicou Chester. “Os diques rebentaram. As pessoas ficaram bloqueadas. As operações de salvamento falharam. Em Phoenix, o calor extremo pode conduzir a uma falência em cascata semelhante, expondo vulnerabilidades e fraquezas na infraestrutura da região que são difíceis de antecipar.”

Na visão de Chester, uma catástrofe provocada pelo calor em Phoenix começa com um apagão. As causas podem ser muitas. Num dia quente, um incêndio derruba uma linha de energia importante. Há uma explosão numa subestação. Um pirata informático russo provoca um crash na rede. Em 2001, um funcionário que procedia a uma manutenção de rotina perto de Yuma desligou inadvertidamente uma linha de 500 kilovolts, o que, por sua vez, desencadeou um apagão em cascata que deixou doze horas sem energia sete milhões de pessoas, incluindo quase toda a cidade de San Diego e provocando prejuízos económicos avaliados em cem milhões de dólares. “Um apagão de grandes dimensões em Phoenix poderia facilmente custar milhares de milhões”, calculou Chester.

Jeff Goodell

Formado na Universidade da Califórnia, Berkeley, e na Universidade da Columbia (onde concluiu o mestrado), o jornalista Jeff Goodell é editor na revista Rolling Stone, onde escreve sobre alterações climáticas há mais de uma década. Recebeu numerosas distinções pelos seus trabalhos, incluindo o Grantham Prize.
Enquanto comentador de questões relacionadas com a energia e o ambiente, tem sido presença assídua em canais de televisão norte-americanos, como CNN, ABC, NBC ou Fox News.
É membro do think tank Atlantic Council e bolsista da Fundação Guggenheim. O Calor é Que Te Vai Matar é o seu sétimo livro.

Quando uma cidade como Phoenix fica às escuras, desaparecem os confortos e o bem-estar da vida moderna. Sem ar condicionado, as temperaturas nas casas e nos escritórios disparam. (Ironicamente, os novos edifícios de alta eficiência e com certificação LEED são hermeticamente selados, o que os torna armadilhas de calor perigosas em caso de perda de energia.) Os semáforos não funcionam. As autoestradas ficam engarrafadas por causa da quantidade de pessoas em fuga da cidade sobreaquecida. Sem energia, os postos de abastecimento não funcionam – e os veículos param, com os tanques vazios. No subsolo, rebentam canalizações de água por causa do calor e as bombas de água deixam de funcionar, obrigando as populações a procurarem água engarrafada. Os hospitais ficam sobrelotados com vítimas de exaustão pelo calor e insolações. Se deflagrarem incêndios em montanhas próximas, o ar ficará enevoado e difícil de respirar. Se o apagão se prolongar por mais de trinta e seis horas, a Guarda Nacional será provavelmente chamada para manter a ordem e controlar pilhagens generalizadas e o caos total. E as pessoas começarão a morrer. Quantas? “Números parecidos com os do furacão Katrina”, previu Chester. Ou seja, na ordem dos milhares.

Sentado à minha frente, no café, Chester descreveu-me tudo isto com uma calma extrema, como se um apocalipse de calor em Phoenix fosse uma questão assente, não uma hipótese.

“Qual é a probabilidade de isto acontecer?”, perguntei-lhe. “Diria que as probabilidades são as mesmas de um outro grande furacão atingir Nova Orleães”, explicou Chester. “É mais uma questão de quando vai acontecer – não é se vai acontecer.”

Uma cidade quente é diferente de uma selva quente ou de um deserto quente. O calor urbano transmite uma sensação mais cruel e mais íntima do que o calor que se sente na natureza. Apesar de as cidades estarem cheias de pessoas, o calor urbano tem o efeito perverso de criar ilhas de isolamento e grandes dificuldades para quem não tiver os meios ou as ligações sociais para aceder a espaços frescos. Agrava ainda mais as vicissitudes da pobreza e transforma em aventuras arriscadas até as tarefas mais simples da vida quotidiana.

“Os relatos sobre a mudança climática enchem livros, documentários, podcasts, jornais, filmes. Então, porquê tão pouca ação?” - Nouriel Roubini, “Dr. Catástrofe”
“Os relatos sobre a mudança climática enchem livros, documentários, podcasts, jornais, filmes. Então, porquê tão pouca ação?” - Nouriel Roubini, “Dr. Catástrofe”
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Veja-se o caso de Anjalai (ela pediu que o apelido não seja divulgado), que tem 39 anos, ombros largos e uma espécie de inquietude nos olhos que sugere que está sempre a pensar na pergunta que vai fazer a seguir. Usa uma argola de ouro na narina direita e costuma andar com brincos de ouro com uma pequena pérola pendurada de uma pequena cadeia também dourada. Vive com a filha de 17 anos e o marido de 49 anos numa barraca com telhado de folhas de palmeira no bairro de Ramapuram, na cidade de Chennai, no sul da Índia, que tem uma população de 11 milhões de pessoas. Chennai é onde vivem alguns dos empresários e homens de negócios mais ricos da Índia; e também mais de um milhão de pessoas como Anjalai, que habitam em bairros de lata que são lugares inóspitos de plásticos descartados e cães famintos.

A barraca de Anjalai é pequena, tem menos de 30 metros quadrados. Está arrumada e limpa, com uma ventoinha a girar no teto. A cidade, que não fica longe do equador,

é quente e húmida na maior parte do ano. Mas maio é especialmente inclemente. De dia, a temperatura está sempre nos 32 graus ou mais e de noite quase não arrefece. Não há comparação com o calor seco do deserto de Phoenix. Em Chennai, a transpiração não evapora, acumula-se. É um calor de selva, espesso e pesado, embora a selva que em tempos cobriu esta paisagem não passe agora de uma recordação, pois foi há muito coberta de cimento e alcatrão. As grandes árvores de tamarindo, os coqueiros, as bananeiras, as margosas com as suas folhas compridas e elegantes quase desapareceram. A percentagem de cobertura por árvores em Chennai é hoje quase a mesma de Phoenix.

Em maio, quando conheci Anjalai, as suas rotinas diárias eram definidas e ditadas pelo calor. De manhã, comia papas de arroz frias, por acreditar que isso arrefecia o corpo. Todos os dias, antes de sair para trabalhar, molhava o telhado da barraca e a seguir espalhava água pelo chão à volta. Dizia que a humidade ajudava a absorver o calor. Os seus movimentos eram lentos, guardava forças para o dia.

Estava sempre a perguntar ao marido: “Como te sentes, Anan?” O marido era uma grande preocupação para Anjalai: ele tem problemas cardíacos e as dificuldades aumentam com o stress do calor. Trabalha na construção, o que significa que passa a maior parte do dia ao ar livre, sem água fresca para se arrefecer. Ela preferia que ele ficasse em casa, mas precisam do dinheiro, e por isso, geralmente, ele trabalha uns dias por semana para ajudar a pagar as despesas. Como não têm dinheiro para comprar um telemóvel, Anjalai receia que, se ele tiver algum problema, ela não saiba de nada a não ser muitas horas depois. Um dia, ela disse-me: “Ele hoje ficou em casa.” E eu senti o alívio na sua voz.

Todos os dias menos ao domingo, pelas 11 horas da manhã, ela sai para ir limpar casas. Desloca-se pela cidade na sua bicicleta ferrugenta sem mudanças e com os pneus já desbotados pelo sol. Tem cinco ou seis casas para limpar por semana, numa rotação aleatória. Diz que são casas de ricos – que é a maneira de ela dizer que são casas de pessoas com empregos e, por isso, belas janelas, divisões grandes e ar condicionado. Para ela, trabalhar dentro de casa é um alívio. Pensa muitas vezes no marido e sente-se culpada por poder estar ao fresco e ele não. Mas esse sentimento não se prolonga muito tempo. Inevitavelmente, Anjalai tem de subir ao terraço para limpar (muitos terraços em Chennai funcionam como divisões para habitação). O sol queima e o ar é espesso e pesado. “Estar lá em cima quase provoca dor”, disse-me. Às vezes, quando trabalha nos terraços, pensa na aldeia onde cresceu, numa zona rural fora da cidade, onde havia árvores debaixo das quais podia sentar-se à sombra, a observar os ramos a agitarem-se ao vento e a comer pedaços de coco fresco. Casou com 20 anos e a família mudou-se para a cidade à procura de emprego e de uma vida melhor.

Em 2004, quando chegaram, Chennai vivia uma fase de grande expansão, com as indústrias automóvel, de cuidados de saúde, tecnologia e cinema a prosperarem. Subsistiam ainda uns sinais da velha Madrasta, como a cidade era conhecida nos tempos coloniais, como a Casa do Gelo, construída em 1842 pelo empresário norte-americano Frederic Tudor. Ele cortava blocos de gelo de lagos da Nova Inglaterra, envolvia-os em serradura e enviava-os para todo o mundo. O gelo da Nova Inglaterra era tremendamente popular entre os britânicos que viviam em Madrasta e adoravam beberricar o seu gin com água tónica à sombra das bananeiras.

O negócio de Tudor faliu com o advento das máquinas de fazer gelo e outras invenções, mas a Casa de Gelo continua de pé, ao pé da praia.

Nesses tempos, Chennai era uma cidade menos agressiva. As estradas eram de terra, ainda ladeadas por pedaços de selva. As casas e os edifícios tinham telhados grossos, em tijolo, madeira e gesso, conhecidos de resto como telhados de Madrasta, que ajudavam a manter a frescura. As ruas eram desenhadas para apanhar os ventos que sopram da baía de Bengala. Os edifícios eram propositadamente construídos com espaço entre eles, para o ar circular. Havia bastante água, quase toda de poços na vizinhança. Fazia calor, mas bebia-se leite desnatado – ou, no caso dos mais afortunados, gin tónico. Andava-se devagar e suportava-se o calor. A vida nos trópicos era assim.

Mas na década de 1970 começou a grande urbanização da Índia. Ao contrário de Deli e de outras cidades, que cresceram em altura, a expansão de Chennai foi na horizontal. As terras de cultivo e os pântanos foram cobertos. Com ar condicionado à disposição, os construtores e os responsáveis pelo urbanismo deixaram de se preocupar com as brisas vindas do mar ou com a circulação de ar. Os poços tradicionais foram substituídos por furos em profundidade, dependentes dos recursos aquíferos, que, entre outros problemas, eram constantemente ameaçados por intrusões de água salgada que tornavam a água imprópria para consumo.

o calor é que te vai matar
créditos: Lua de Papel

Chennai é hoje a sexta maior cidade da Índia, com uma população cinco vezes maior do que Paris. Foram alcatroados e urbanizados quase 260 quilómetros quadrados. Oitenta por cento das zonas húmidas desapareceram. O preço deste desenvolvimento tornou-se uma evidência – e não apenas através do calor, mas da água. Em 2015, ao fim de dias consecutivos de precipitação violenta, o cimento e o asfalto canalizaram toda a água para a cidade e quase a submergiram. Em 2019, quando uma boa parte da Índia cozeu sob temperaturas que chegaram aos 50,5 graus, a vaga de calor teve uma violência ainda maior em Chennai, porque a cidade estava a ficar sem água. Num ano típico, a precipitação fica perto dos 1400 milímetros, mais do dobro da de Londres. Mas em 2019, por causa de deficiências no armazenamento, os habitantes da cidade não tinham água suficiente para beber. Até o calor abrandar, foram transportados todos os dias de camião cerca de dez milhões de litros. Um jornalista assinalou: “O velho porto do sul da Índia tornou-se um estudo de caso sobre o que pode correr mal quando há uma convergência de industrialização, urbanização e clima extremo e uma metrópole em expansão pavimenta todas as suas planícies de cheia para satisfazer a procura de novas casas, fábricas e escritórios.”

Quando acabou a limpeza do terraço, Anjalai fez mais uns quilómetros na bicicleta, por ruas cheias de pessoas e veículos, até à escola Pudiyador, uma instituição privada fundada há quase vinte anos por um professor universitário para ajudar jovens de bairros pobres a prepararem-se para o acesso à faculdade. Anjalai começou por trabalhar lá há uns anos a ajudar nas limpezas. Mas os responsáveis pela escola repararam que ela tinha jeito com crianças e gostava de aprender, por isso deram-lhe emprego como professora em part-time. Resultou de tal maneira que ela ficou como professora a tempo inteiro, o que significa que trabalha todos os dias das 16 às 20 horas com crianças de 7 e 8 anos – e é compensada com um salário equivalente a quase 70 euros mensais.

Anjalai pedalava pela cidade num dia de fim de maio, com o sari dourado a flutuar atrás de si, abrindo caminho pelo calor da tarde como se fosse água. O mês de maio é o Agni Nakshatram (estrela incandescente), uma celebração do começo do verão e de lorde Murugan, uma divindade hindu e deus da guerra. Às vezes, quando este calor de maio é intenso, ganha um nome: Kathiri Veyil (véu tesoura), porque os raios do sol parecem tesouras afiadas na pele. Por tradição, neste período os habitantes de Chennai evitam festas de mudança de casa, casamentos e outros ajuntamentos.

Deixam de comer carne e de beber água refrigerada, que substituem por água morna adoçada e sumo de limão ou água com sementes de cominho. Um médico com quem falei recomendou banhos com óleo duas vezes por semana e água de funcho (receita: deitam-se à noite, num copo de água, quinze sementes de funcho – cheira como xarope de ácer e é usada há muito na Índia como erva medicinal – e bebe-se na manhã seguinte).

Quando finalmente parou a sua bicicleta em Pudiyador, Anjalai transpirava e tinha o rosto afogueado, mas não se queixou. Por causa da pandemia de Covid-19, a sala de aulas estava vazia – para ela, como para muitos outros professores no mundo, ensinar tornara-se um exercício virtual. Abriu um armário fechado à chave, tirou um computador portátil e sentou-se num tapete no chão da sala pintada de cor-de-rosa, de pernas cruzadas. No teto, girava uma ventoinha. Os administradores da escola recusaram instalar ar condicionado, dizendo que isso estragaria os alunos e lhes dificultaria lidarem com o calor quando estivessem em casa.

Anjalai passou as quatro horas seguintes sentada no chão a olhar para o computador, a falar com crianças, em língua tâmil, sobre os trabalhos de matemática e geografia. As luzes piscavam. A ligação à Internet foi abaixo várias vezes e ele teve de se ligar de novo.

Acabou um pouco depois das 20 horas. Fechou o portátil e guardou-o no armário. Depois foi para casa, de bicicleta, atravessando uma noite quente e húmida. Havia cães a ladrar. Homens agachados num círculo na rua, a conversar calmamente. O ar cheirava a podre, a roupa a secar, a jasmim, a água estagnada. A escuridão não ia aliviar o calor; o seu peso imenso ia manter-se toda a noite, até o sol se levantar e o dia começar.