Carne: A Pegada Insustentável é, nas palavras dos seus criadores, “o primeiro documentário português a abordar a urgência de uma mudança nos padrões de alimentação da população mundial, privilegiando uma dieta plant-based, de origem vegetal, em detrimento de uma dieta assente em proteína animal”. O eurodeputado independente Francisco Guerreiro, do Grupo Parlamentar Europeu Verdes/Aliança Livre Europeia, juntou-se ao realizador Hugo Almeida para desenvolver um filme baseado em entrevistas feitas a diversos especialistas, nacionais e internacionais. Carne: A Pegada Insustentável, contou com estreia em novembro de 2023 e mantém por estes dias um ciclo de apresentações em diferentes pontos do país. Já este mês de março contou com exibição no Fantasporto. Um documentário que, apesar de se centrar na realidade nacional, é filmado em países terceiros, como o Líbano, Reino Unido, França e Bélgica, e a participação, entre outros, do biólogo, escritor e cronista regular no jornal The Guardian, George Monbiot, tal como do professor, Gabriel Mateus, e dos fundadores do santuário animal localizado em Paredes de Coura, a Quinta das Águias, Ivone e Joep Ingen Housz. A propósito das questões atuais e com repercussão futura apontadas em Carne: A Pegada Insustentável, conversámos com Francisco Guerreiro.
Não é a primeira vez que o Francisco Guerreiro se une ao realizador Hugo Almeida na produção de um documentário. Fê-lo antes com a websérie RBI - Um Caminho de Liberdade, a propósito da instituição de um Rendimento Básico Incondicional. Quer contar-nos como decorreu a rodagem deste novo documentário? Contavam com um orçamento de 50 mil euros.
Sim. Tivemos, por exemplo, a oportunidade de ir ao Líbano, a França, ao Reino Unido, realmente com um orçamento ‘exprimido’, mas muito bem utilizado. O Hugo Almeida é um realizador com uma grande capacidade de trabalho. Conseguiu transmitir não só a informação e a cientificidade necessárias num documentário como este, mas também uma parte muito emocional e societária dos problemas. Estas, são matérias que, pela sua natureza, geram choque. Apesar de ter algumas imagens fortes, o documentário procura essencialmente apresentar dados, a ciência e as experiências e revelar uma visão positiva de que podemos fazer algo diferente. São abordadas várias perspetivas, seja no que toca à saúde, à ecologia, ao bem-estar animal. O realizador foi exímio. Por tudo isto, fomos nomeados para o Fantasporto 2024 [Secção Oficial Cinema Português] e também fomos nomeados para um festival de cinema no Sul, em Faro, o Scianema.
O vosso documentário toca na questão da degradação dos ecossistemas e da saúde pública. Para tornarmos esta conversa ilustrativa do exposto, quer dar-nos alguns números que atestem esta degradação? Há uma frase que ecoa do trailer do documentário: “nós estamos a matar animais e os animais estão a matar-nos”
Se olharmos para uma boa parte das doenças crónicas que identificamos nas sociedades contemporâneas e ocidentais, vemos que muitas estão relacionadas com os nossos estilos alimentares e, em parte, com um alto consumo de proteína animal. Quando reduzimos ou eliminamos o consumo de proteína animal, temos claramente um benefício individual de saúde, mas também nos sistemas nacionais de saúde. Um dos grandes debates em torno do SNS prende-se com a questão da prevenção da doença. Julgo que temos de ter a coragem de olhar para a realidade e falar dos factos.
Também quando olhamos para a pegada ecológica, é absurdo não contemplarmos a importância dos nossos estilos alimentares. Todos nós fazemos, pelo menos, três refeições por dia, durante toda a nossa vida, isto é um impacto gigantesco. Repare, cerca de 71% da área agrícola da União Europeia está direta e indiretamente ligada à produção pecuária. Não só para criar animais, mas para produção cerealífera para os alimentar.
Ou seja, o consumo de carne está diretamente associado à perda de biodiversidade...
Se reduzíssemos ou eliminássemos à escala mundial o consumo de proteína animal, teríamos uma área disponível para a regeneração da biodiversidade com a dimensão de uma Rússia e meia. É ilustrativo da magnitude da ocupação territorial da indústria pecuária. Também teríamos uma gestão muito mais sensata dos recursos aquíferos. Diz-nos a FAO que um quilograma de carne de vaca precisa, sensivelmente, de 14.000 litros de água para ser produzido. Um litro de leite precisa de 1.000 litros de água para ser produzido. Num país como o nosso, com uma brutal escassez hídrica, não conseguimos gerir razoavelmente as nossas florestas que são retentores de água, a que se acrescenta que 70% da água utilizada destina-se à agricultura e pecuária. Promovemos medidas como duches mais curtos, o que me parece bem, mas estamos em simultâneo a ‘atirar areia para os olhos’, quando apenas 20% da água que consumimos em Portugal é para este tipo de uso.
Não tivemos a coragem política de mostrar os factos, de apresentar soluções e, depois, de dizermos às pessoas ‘oK, em última análise, são vocês que escolhem’. Naturalmente, as políticas públicas e o dinheiro que nós investimos também influenciam. Fizemos uma sondagem no nosso site, o carnedoc, e percebemos que uma das dificuldades das pessoas para escolher mais produtos plant-based passa pelo custo. Se tivéssemos uma estratégia nacional para a implementação de uma indústria plant-based, teríamos um incentivo a que os agricultores produzissem mais neste âmbito. Se olharmos para o mar, a indústria poderia começar a produzir algas. A União Europeia importa 95% das algas que consome. Portugal podia ser pioneiro nesta cultura.
A Europa não está a debater estas questões?
A transição para a redução da produção de proteína animal não é um dos grandes debates. Há, contudo, um debate com um peso crescente na sociedade, aquele que se prende com os interesses agropecuários. Não é por acaso que vemos as manifestações de grupos organizados de agricultores, alguns deles ligados à extrema-direita, que estão diretamente ligados também à grande indústria agroalimentar e à grande indústria agroquímica. Isto é uma tentativa de manutenção do status quo de uma indústria que vive em grande parte dos subsídios. Repare, 28% do orçamento da União Europeia, cerca de 360 mil milhões de euros, divididos entre os 27 Estados membros, destinam-se à Política Agrícola Comum, um meio que ajuda os produtores, de modo direto e indireto, a produzir alimentos. Mas o mindset, as políticas estão adaptadas para incentivar a super intensificação da comida e da produção. Se olharmos, uma boa parte dos cereais que produzimos destinam-se a alimentar o gado e a ir diretamente para produtores e gado.
Se juntarmos este dinheiro público e percebemos que ele não está a internalizar todos os custos sociais das pessoas que trabalham nestas indústrias, muitas delas de modo quase escravo, que trabalham dentro dos matadouros; se internalizarmos os custos de saúde pública e ambientais, percebemos que não só estamos a desperdiçar dinheiro público como estamos a financiar uma indústria que é altamente danosa. Isto sem falar do bem-estar animal. O que queríamos é que este dinheiro fosse bem utilizado e a ajudar os agricultores e os pescadores a transitarem para modelos mais sustentáveis. No decorrer do documentário apresentamos vários exemplos de como estas indústrias, pequenas ou grandes, podem evoluir e se podem transformar, gerar mais empregos e mais riqueza, gerar mais valor acrescentando.
A transição de que fala também poderá vir por parte dos consumidores enquanto elementos ativos na sociedade? Por exemplo, nas compras que fazemos no dia a dia e no nosso estilo de vida.
Também, mas convenhamos que muitas pessoas não têm essa capacidade económica para poder, com a sua carteira, promover a mudança. Por isso, é importante termos atores políticos com a coragem de explicar o que está a acontecer e apresentar uma solução. Considero que se os pequenos e médios agricultores perceberem as vantagens de mudar para modelos de produção mais sustentáveis e também rentáveis, e se existir uma estratégia pública para ajudá-los na transição, por certo mudarão. Se percebemos que os animais também são seres sencientes, cada vez mais pessoas estarão recetiva à mudança.
Um relatório da Comissão Europeia sobre a evolução da produção e do consumo de carne na União Europeia, estima que o consumo mundial crescerá, até 2031, a uma taxa média anual de 1,4%. Presumo que este seja um número que o preocupa...
Na União Europeia há uma tendência para a estabilização do consumo de produtos de origem animal. Mas, lá está, o grande problema deste tipo de indústria é que se produz para exportar. Por exemplo, Portugal exporta porcos para a China. Nós temos um grande comércio de caprinos para o Médio Oriente. O que estamos a fazer é a criar uma indústria para fornecer estes alimentos, externalizar a nossa pegada ambiental para o estrangeiro. Não é racional de modo algum, porque esta pegada vai ter repercussões em todo o mundo.
Mais. Um relatório ligado à estratégia para o consumo de proteína na União Europeia refere que a proteína de origem animal é fundamental e essencial para a saúde de mulheres grávidas e de idosos. É uma coisa completamente estapafúrdia, que não tem sequer alguma conceção científica. Estes lobbies existem, vão continuar com grande poder na Comissão de Agricultura e Pescas e infelizmente estão ligados a muito dinheiro.
Somos consumidores, mas também somos recetores ativos de informação. Estamos cientes do que se passa no que respeita à sobre-exploração animal e, em certos casos, às condições que estes animais enfrentam. Por que nos mantemos alheados?
Sinto que uma boa parte das pessoas não tem uma opinião sobre esta matéria porque vive ‘afogada’ no seu trabalho, na gestão dos seus dias. Quando tem algum tempo livre, passa-o com os filhos ou em lazer. Mas, como refere, dispomos de mais informação. Daí, termos realizado este documentário, com toda a informação acessível. A 22 de abril, vamos libertá-lo online e qualquer pessoa poderá vê-lo, poderá consultar as fontes. No fundo, este comentário simplifica as coisas, as pessoas percebem o que está em questão, onde se podem dirigir para fazer uma transição para um estilo de vida mais sustentável. Por exemplo, disponibilizamos receitas simples e rápidas plant-based. Também disponibilizamos informação sobre ecologia e saúde. Ou seja, procuramos um caminho pedagógico.
Inclusivamente, propõem a apresentação do documentário seguida de debate...
Temos andado pelo país, sobretudo em escolas, universidades, mas também em comunidades desportivas, auditórios, até mesmo em restaurantes, porque nos convidam. Foi uma ideia que a nossa equipa teve. Em vez de estarmos a tentar ‘furar’ e a entrar nos sítios, dizemos às pessoas que nos podem chamar e assistir à visualização do documentário. Fazemos essa ligação, ajudamos no que for necessário e, como referiu, estamos disponíveis para conversar e debater.
O vosso documentário apresenta exemplos de pessoas e instituições que estão a abraçar este novo caminho mais sustentável. Quer ilustrar este facto com alguns exemplos?
Sim. Um dos exemplos que apresentamos no documentário prende-se com o Hayek Hospital, em Beirute, no Líbano, uma instituição privada que instituiu uma dieta inteiramente plant- based. Todas os pacientes neste hospital têm os cuidados médicos que encontramos em qualquer outro hospital, mas todas as refeições são plant-based, ajustadas à cultura do país. Isto revela a coragem dos gestores deste hospital e de todo o corpo técnico, das cozinheiras às enfermeiras e aos administradores. Mostra que é possível, no campo da saúde, fazer algo extremamente diferenciado.
Outro exemplo que lhe posso dar é o do pensador britânico George Monbiot, um ativista, político, jornalista muito conceituado e que aborda questões esquecidas, nomeadamente a de pensarmos que a agricultura e pecuária extensíveis são muito sustentáveis. Monbiot desmistifica esta ideia muito bucólica e idílica. Também nos traz uma visão de responsabilização, porque faz parte de uma geração, a dos meus pais. Diz-nos que somos muito poucos e não conseguimos, realmente, reverter esta maré. Pede desculpa, pede desculpa por toda uma geração e, no fundo, faz este apelo para nos mobilizarmos, para repensarmos os nossos hábitos e enfrentarmos o poder.
É frequente escutarmos a palavra “lamento” endereçada às novas gerações em relação ao que fizemos com o planeta. Olhemos para estas novas gerações há, de facto, uma mudança na forma como encaram o ambiente e como se posicionam como consumidores?
Existe um novo progressismo e um novo conservadorismo, ou seja, existem muitas pessoas a transformar e a ter uma visão muito mais holística da sociedade e a perceber os problemas que enfrentamos na economia, na habitação, na saúde, na ecologia, no ambiente, na agricultura. Tudo isto fazendo parte do mesmo paradigma que promovemos como sociedade: económico e social, cultural, de consumo constante, de alto hiperconsumo e externalização de todos os impactos. No fundo, nunca tivemos tanta tecnologia e conhecimento, mas continuamos a trabalhar mais de oito horas por dia, somos altamente manipulados pelas redes sociais. Por outro lado, temos a perceção de que muitas pessoas querem cortar com esse ciclo e outras a reforçá-lo, a manterem este status quo. Afirmam esse que só conseguimos desenvolver-nos se continuarmos a crescer ad aeternum. Quer queiramos, quer não, vamos chegar a um limite ecológico e o planeta irá responder de uma maneira ou de outra.
Vê que este novo paradigma, o que associa ao progressismo reverte para as nossas políticas ambientais?
Infelizmente, gostava de ser mais positivo. Quando olhamos para a grande estrutura de financiamento, continua a suportar modos altamente destrutivos. Por exemplo, temos na União Europeia uma estratégia do prado ao prato. Sublinha que temos de reduzir o consumo de produtos animais, temos de melhorar a produção biológica, temos de reduzir o uso de pesticidas. Só que é uma estratégia, portanto não é vinculativo. E o dinheiro que nós alocamos efetivamente à produção agrícola, como no caso das pescas diz o contrário. Tem de haver, realmente, uma vontade política forte para transformar. Por exemplo, Portugal não tem uma estratégia para o interior que chame pessoas para a agricultura. Não tem uma estratégia para o mar, capaz de captar jovens para o setor das pescas. Qual é o jovem que quer entrar numa embarcação de pesca? Se não houver uma visão de transformação, estes territórios são deixados às grandes empresas predadoras.
Findo o documentário, o que sentiu o Francisco Guerreiro?
A equipa que se formou em torno deste documentário foi fantástica. Muitas pessoas estiveram envolvidas, muitos voluntários, houve muito dinamismo e vontade de acrescentar valor a todos os espaços de elaboração do documentário. Mantemos as visitas a diferentes locais para falarmos do documentário, sempre num espírito comunitário. Há também um sentimento de esperança, porque há muitas pessoas envolvidas em projetos maravilhosos. Há inúmeras pessoas que querem também assumir esta liderança. Por mais trágica que possa parecer a nossa realidade, enquanto respirarmos há sempre esperança.
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