A abrir o seu livro escreve que “os adolescentes estão a mudar. E nós estamos distraídos em relação a eles”. Esta sua afirmação leva-me a duas perguntas. Estão a mudar em que sentido? Quando se refere à distração, fala-nos de quem, dos pais, da escola, da sociedade em geral? 

Primeiro, porque receio que quando se fala de adolescentes ou da perspetiva de os miúdos se tornarem adolescentes, os pais antecipem ou vivam esse período de uma forma um bocadinho assustada, às vezes de forma quase alarmada, como se os adolescentes fossem um produto razoavelmente explosivo, que não o são. São meninos pequenos, por vezes mais pequenos do que o que imaginamos, hoje com muito mais oportunidades de formação e muitos mais fontes informativas. São miúdos que andam muito menos distraídos em relação àquilo que se passa no mundo do que pode parecer. É uma vergonha para nós, adultos, que tenham sido os adolescentes a trazer um slogan, ainda por cima tão inteligente, como “Não há planeta B”. Foram eles que puseram esta questão na agenda e os adultos e os partidos políticos foram atrás.

E, portanto, são miúdos sensatos. São miúdos gratos e capazes de reconhecer e de admirar os adultos que eles respeitam. A relação que têm com alguns professores e mesmo a relação que mantêm com os pais é de admiração. E, repare, não estou aqui a pôr pó-de-arroz. Claro que de vez em quando pisam o risco e desafiam os pais. Porque, às vezes, é muito difícil ter um pai e uma mãe que parecem acertar em tudo e os miúdos olham para eles e pensam: ‘assim nunca mais lá chego’. É difícil este percurso, mas, de facto, eles são miúdos muito, muito atentos.

Por outro lado, não nos damos conta de como lidamos com eles, como se os adolescentes fossem invariavelmente alheados. Porque são as redes sociais, porque são as causas da adolescência, enfim, as particularidades típicas da adolescência. Criamos uma ideia ao redor dos adolescentes que não corresponde à verdade e com uma agravante.

“Os castigos não são positivos no desenvolvimento da criança” – Álvaro Bilbao, neuropsicólogo
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Que agravante?

Passamos a vida a falar de como comprometemos o planeta, das crises económicas, das crises da habitação, das crises da democracia. Quando falamos do futuro próximo só nos referimos a crises. Não nos damos conta de como estamos a dizer “sim, acreditem no futuro, mas o futuro é uma porcaria”. Considero notável como, apesar de tudo, os adolescentes não baixam os braços. Tinham todos os motivos para dizer: “Para quê andar a ‘matar-me’ a estudar?” E eles são muito determinados, sim. São leais na forma como lidam connosco.

Chega a escrever que “a adolescência parece estar em vias de extinção”. Está?

Porque os adolescentes são hoje tecnocratas de mochila. Sabe, temos esta mania um bocado tola que eles têm de crescer muito depressa. E, neste momento, a agenda de um adolescente é a de um tecnocrata. Eles trabalham assustadoramente, 12 horas por dia, às vezes mais. Acho que não estamos a medir as consequências, porque eles precisam de tempo para brincar quando são crianças. Não lhes damos tempo para serem adolescentes, para estarem uns com os outros e aprenderem naquela escola da vida. Esta é absolutamente indispensável. Às vezes estamos a dizer-lhes, “olha, espatifa a adolescência não há problema nenhum. O importante é entrares na universidade”. Como se a vida acabasse aos 18 anos. Sim, e isto é uma grande pressão. Como se, no fundo, a adolescência estivesse à beira de extinção.

Será que esta urgência que colocamos sobre os adolescentes também se prende com o desejo de os pais se concretizarem nos filhos? De quererem transferir para os filhos aquilo que não alcançaram?

Muitas vezes. Repare, não acho que seja só por si mau, pois acontece com todos. Julgo até que os pais o fazem por bondade. Ou seja, os pais, ao fim de alguns quilómetros de rodagem, têm a noção das tolices que cometeram e das escolhas erradas que não fizeram e que fizeram. Daí, percebo que os pais digam assim: “quero proteger o meu filho das escolhas que fiz ou da forma como negligenciei a escola”. Consigo perceber tudo isso. Qual é o risco? É que às vezes os pais baralham na adolescência dos filhos as suas próprias adolescências. Às vezes, quando os pais fizeram muitas asneiras enquanto eram adolescentes, acham que a adolescência é sinónimo de asneira e são muito restritivos. Por vezes, quando os pais não tiveram adolescências precipitam os filhos para adolescências precoces. É importante que os pais tenham noção de como misturam, porque às vezes criam nós quando, na realidade, queriam criar só avenidas largas.

Traz para este seu livro uma ideia que já partilhara anteriormente. Os pais na ânsia de acompanharem a adolescência dos filhos, resvalam para o campo dos melhores amigos. Isto pode inverter os papéis dentro da família, esbater a autoridade dos pais ou, como escreve, "inabilita-os como pais"?

Sim. Os pais tem de perceber que não se podem encolher perante determinadas coisas. Dou-lhe um exemplo: para efeitos daquilo que são as regras jurídicas, os miúdos são adultos aos 18 anos. Mas, às vezes, para efeitos das redes sociais, os pais quase presumem que os adolescentes são maiores aos 12 anos e que eles é que têm de fazer as escolhas e ter clarividência nos seus atos, quando são muito pequeninos, para todos os efeitos. Às vezes, os pais são muito sensíveis aos argumentos demagógicos dos filhos. E quando os filhos querem ser demagogos, ‘valha-me Deus’ dão cinco a zero a qualquer partido populista [risos]. Os miúdos chegam com o argumento de que os amigos saem até às 3h00. E os pais, a certa altura, percebem que é um exagero quando se tem 13 ou 14 anos de idade. Mas, em muitos momentos ‘vão na onda’ e de uma forma perigosa. Mesmo que os filhos tenham um metro e oitenta e até tenham boas notas, os pais têm de perceber que são uma entidade reguladora em relação a muitos aspetos. Contudo, os pais com medo que os adolescentes lhes fujam das mãos, vão sendo uns pais bonzinhos. Tenho sempre a ideia de que os pais bonzinhos são inimigos dos bons pais e, portanto, tendem a ser tão bonzinhos que se comportam como cúmplices ou como amigos dos filhos. Mas, esquecem que ser pai ou mãe é muito mais importante do que ser o melhor amigo do filho.

A nossa sociedade convive mal com a palavra autoridade?

Porque, se calhar, crescemos com escolas um bocadinho autoritárias e crescemos com pais que, apesar de serem excelentes pessoas, nalguns momentos até foram um bocadinho autoritários. Portanto, os pais hoje confundem autoridade com autoritarismo. É uma coisa trágica. Convictamente, a mãe ou o pai dizem um "não" ao filho para, depois,  os levar a um quase pedido de desculpa. É uma coisa inquietante. Perco a conta aos pais que me perguntam se os filhos ficam traumatizados pelo facto de lhes dizerem que não. E quando lhes digo que ficam muito mais traumatizados quando os pais não dizem que não, estes pais ficam quase atónitos. Porque, quando os pais desistem de ter uma opinião sobre o que é correto, mesmo que não seja decalcado para a opinião dos filhos, estes sentem-se desamparados. Pais sem uma opinião convicta, são pais que desamparam. Mesmo que isso lhes traga a ideia de que são os melhores amigos dos filhos.

“A capacidade de os nossos filhos raciocinarem sobre a informação na internet resume-se a uma palavra: desoladora” – Michel Desmurget, neurocientista
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Escreve que entre a crise da adolescência e o medo dos pais diante dela, receia mais o medo dos pais. Porquê?

Muito mais. Por vezes chamo-lhes os pais 5G. São excelentes pessoas, mas consomem muito mais redes sociais e de uma forma muito mais perigosa do que os filhos. As redes sociais são um caldo de cultura, onde há pessoas que dão palpites, opiniões, às vezes das formas mais insensatas. Há pais que me dizem: “Olhe, em relação a este problema eu já tentei tudo”. São os tutoriais, são os influenciadores, são os livros de autoajuda. E, de repente, os pais, nesta espécie de floresta de opiniões, esquecem-se que têm um sexto sentido apuradíssimo. Perante este tipo de informações contraditórias, o sexto sentido parece constipar-se de uma forma grave e os pais ficam sem saber o que fazer. Daí, os pais andarem muito perdidos. E quanto mais os pais andam perdidos, mais os adolescentes se sentem desamparados com tudo o que isso implica.

É lícito afirmarmos que o adolescente, na sua ansiedade de afirmação de construção do seu eu, é um ser solitário, desamparado?

Às vezes é. Há uma questão que me parece particularmente importante. Aquilo que as mães têm vindo a fazer em relação à leitura é uma revolução verdadeiramente inacreditável. Porque, hoje, percebemos que as mães, independentemente do meio socioeconómico de onde provêm, fazem questão de ler uma história todas as noites antes de as crianças adormecerem. Sem se darem conta, isso dá aos filhos uma fluência verbal absolutamente inacreditável. Quando as crianças entram na escola têm um vocabulário de uma riqueza incrível. Essas crianças mais fluentes no português são crianças com mais saúde mental. Ponto. De uma maneira hábil as editoras resgataram os livros dos Cinco, dos Sete, entre outros, e arranjaram versões adequadas a miúdos de sete e oito anos. Hoje, estes miúdos leem velozmente, de uma forma que os pais não leram, o que é uma coisa incrível. As redes sociais são um atentado à saúde mental dos adolescentes em muitos momentos. Mas, por exemplo, a maneira como os adolescentes consomem hoje livros por influência das redes sociais é incrível e, portanto, eles leem muito mais do que leram os seus pais e os professores. Daí têm uma riqueza de vocabulário incrível. E esta riqueza de vocabulário torna-os potencialmente mais saudáveis. Mas não basta a palavra lida, tem de se transformar em palavra falada. E, muitas vezes, as famílias não dão espaço aos adolescentes para falarem como eles precisam. E, portanto, quando nós, às vezes, diabolizamos as redes sociais ou as más influências, temos de perceber que essa influência só ganha escala quando os pais não dão espaço aos adolescentes para falarem. E, claro que os pais, à boleia do seu sexto sentido, também sejam capazes de dizer o que acham. É evidente que isto traz mais conflito. Mas, caramba, precisamos do conflito para pensar.

Nunca vi um adolescente trocar aquilo que é dito numa rede social por aquilo que os pais dizem com sensatez. De facto, e para ir ao encontro da sua pergunta, os adolescentes estão, muitas vezes, demasiado sozinhos. Porque não há espaço para conversar. Como é que se pode admitir que uma família com a mãe, o pai e o adolescente, cheguem a um restaurante e a primeira coisa que fazem seja pegar nos telemóveis? Tecnicamente estão a conviver. Na realidade, estão ali a respirar o mesmo ar.

Aliás, recorre a um neologismo, o dos smartphonianos. Os smartphones estão a mudar a adolescência?

Hoje, os pais quando têm filhos adolescentes ficam muito sem jeito, porque os filhos adolescentes saem muito menos do que os pais saíam. Os pais, se pudessem, não paravam em casa. Os filhos comunicam através das redes sociais. Compreensivelmente, com a pandemia os pais deram livre-trânsito para que isso fosse assim. Às vezes, os filhos levantam-se clicam no grupo do WhatsApp de que fazem parte e só o desligam quando vão dormir. Tecnicamente convivem. Isto introduziu diferenças profundas. Conheço namorados que discutem através das SMS. É uma coisa absolutamente incrível. Temos de ter noção que isto trouxe muitas alterações de comportamento, mas estas alterações não podem impedir os pais de definir regras claras. Quando definem regras, têm de perceber que, em vez de darem bons conselhos, têm de dar bons exemplos. E nem sempre os pais ajudam.

“Algo está a falhar quando encontro crianças que 'trabalham' mais horas diárias do que eu” – Cristina Valente, psicóloga
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Esta relação digital, tal como pormenoriza no seu livro, traz profundas alterações na forma como os adolescentes vivem a sexualidade, o amor...

Todavia, é muito importante que os pais se dêem conta, com orgulho, de que o índice de gravidez, na adolescência, não é o que era há uma geração. A sexualidade não é, seguramente, a mesma nos grandes centros urbanos, mas também fora destes. Em Portugal há, de facto, muitas diferenças. E algumas muito melhores, sem dúvida. Agora, sempre com a ideia de que nós, as pessoas crescidas, não podemos prescindir de sermos entidades reguladoras. E quando falo de pessoas crescidas, falo também do Estado. Por exemplo, quando se fala de redes sociais, há países europeus, como por exemplo a Inglaterra, que revelam preocupação. Não se trata de censura, antes preocupação em relação a alguns conteúdos que são gravíssimos. Um Estado de Direito não se pode inibir de ter uma opinião e de ter regulação.

Na escola é a mesma coisa. Os professores são importantes não porque ministram todas as alíneas dos programas. São importantes porque são exemplos preciosíssimos. Levam experiências identificatórias em relação aos adolescentes, dão-lhes exemplos de pessoas, promovem o contraditório. Se calhar temos de estar mais atentos em relação ao nosso papel. Os adolescentes hoje são muito bonitos e são-no porque nós trabalhámos para eles.

Aliás, em determinado momento escreve que os professores gostam de adolescentes que lhes deem luta. Porquê?

É verdade. São aqueles miúdos um bocadinho desafiadores que lidam com o professor numa atmosfera de o levar a demonstrar que sabe mandar. E passam a respeitar ainda mais o professor. Isto, quando um professor é capaz de lidar com os alunos de uma forma leal, franca, frontal. Agora, quando os professores lidam com os adolescentes como se estivessem a querer domesticar miúdos de 12 ou 13 anos, aí ‘está o caldo entornado’, porque os adolescentes percebem que aquele professor, um bocadinho autoritário, é uma pessoa muito insegura. Quando é assim, os miúdos pensam: “vamos lá esticá-lo mais um bocadinho”. E isso dá mau resultado.

adolescentes
adolescentes créditos: Lua de Papel

A escola é chata para os adolescentes porque não os percebe? É uma ideia que leva para o seu livro...

Tantas vezes. Percebe que os adolescentes são às vezes um bocadinho batoteiros no argumento: “Para que serve esta disciplina?” Quando eles põem as coisas assim, eles precisam de perceber a utilidade da matemática ou da física. Que alguém lhes diga: “isso serve para fazeres isto”. Um estudo de mestrado engraçadíssimo debruçou-se sobre o tempo que os professores davam aos alunos entre a pergunta e a resposta. E o tempo era ínfimo. Ou seja, os professores não punham a turma a pensar com eles. Às vezes as escolas ainda estão vocacionadas para as respostas na ponta da língua, aquelas que os professores querem ouvir. Isto não é escola. Quando neste estudo fizeram a pergunta ao contrário, ou seja, qual era a pergunta mais frequente que os alunos punham aos professores esta era: “posso ir à casa de banho?” [risos]. Quando os alunos podem, realmente, pôr perguntas revelam grande maturidade.

Hoje, encontramos novas formas de bullying. É, sobretudo, mais insinuado, mais próximo dos movimentos de exclusão dum grupo. Refere que a este propósito a escola é, “muitas vezes, encolhida e medricas”. Porquê? Porque finge atuar?

É distraída o que é mais grave. É muito curioso ver como o bullying está a mudar profundamente. Antes, era protagonizado por um adolescente, regra geral do sexo masculino, com perturbações familiares, às vezes com grandes carências socioecónomicas. O bullying traduzia-se na grande equimose que um dos nossos filhos exibia ao chegar a casa. Hoje, o bullying é praticado por um grupo de dois ou três indivíduos, com um líder e dois escudeiros que gozam, humilham, manipulam o grupo no sentido de excluir um miúdo, ou porque é dócil, ou porque é inseguro, ou porque tem muito boas notas, mas não tem competências sociais. E isto pode prolongar-se por muitos meses. Os miúdos não apresentam sinais exteriores, mas alteram o comportamento, ficam de lágrima fácil, respondem mal. Às vezes este bullying vai do espaço das escolas para as redes sociais. São, literalmente, casos de polícia protagonizados por miúdos de 13 ou 14 anos, por vezes com boas notas. A escolas olham para isto e não lhes passa pela cabeça que é bullying. Reagem e dizem que não, que é impossível. A grande diferença é que os bullies são muitas vezes grupos de raparigas com atitudes feias. Por vezes, os procuradores da república olham para os casos e dizem que é “impossível, não há crianças más”. Sim, concordo, mas às vezes aquele furor da adolescência resvala para uma maldade que não podemos ignorar. Mesmo estas crianças que protagonizam a maldade precisam de ser ajudadas. E, às vezes, não chega a mãe da vítima ligar à mãe de quem vitimiza, porque a mãe desta vai achar que é impossível. O bullying mudou muito e as escolas são muito batoteiras a lidar com isto. Porque, muitas vezes, as crianças vítimas continuam a ter bons resultados escolares.

Estamos a vender aos nossos adolescentes a ideia de que a felicidade é mais um presente e menos uma conquista?

Vivemos num mundo um bocadinho esquisito, porque parece que estar triste significa estar-se deprimido ou que ao se viver um conflito, tal significa ser-se frágil e não é nada disso. Os pais têm de saber dizer aos filhos que as pessoas saudáveis falham, engasgam-se, às vezes têm dias não, às vezes ficam à beira de um ataque de nervos, mas que o grande objetivo da vida não é entrar para a universidade, ou ter sempre grandes notas e ter a ousadia de querer ser feliz e isso dá trabalho. Como pais, temos a ideia de que quanto mais facilitarmos a vida aos nossos filhos, mais felizes ficarão e mais depressa. A função essencial dos nossos filhos é porem-nos os problemas e é assim que aprendemos a ser melhores pais, a responder de forma mais simples, por ensaio/erro. Por vezes, confundimos a felicidade com o sucesso dos nossos filhos e, às vezes, confundimos o sucesso com o ganharem muito dinheiro.

Há famílias que educam os adolescentes para a depressão?

Sim, e sabe quais são? Aquelas que não lhes dão a oportunidade de estarem tristes mais vezes. Basta, por vezes, deixá-los serem tristonhos, lamuriarem-se. Quantas vezes, assim que os nossos filhos vivem uma atmosfera de tristeza, lhes dizemos de imediato: “não fiques assim”. Porque eles às vezes só precisam de colo. O colo é preciso, mas para isso nós temos de escutar.