Num mundo que teima em apartar a natureza do nosso quotidiano, António Bagão Félix convida-nos a uma reaproximação, propondo-nos uma reflexão sobre a importância das árvores. “Este livro é um testemunho senciente sobre seres igualmente sencientes, um preito singelo de quem sempre encontra nas árvores beleza, delicadeza, paz, ágape, sensualidade”, escreve o autor na introdução a Quarenta árvores em discurso direto (edição Porto Editora). Nas mais de 300 páginas do presente título, o autor dá voz, em discurso direto, a quatro dezenas de espécies arbóreas, permitindo-lhes narrar as suas histórias, características e a sua intrínseca ligação à cultura e à sociedade.​

“De uma maneira simples, as quarenta árvores são descritas de modo a proporcionar ao leitor um pedido de amizade que possa durar no coração. E também diminuir o sentimento, que amiúde compartilho, de ver as árvores ignoradas, menosprezadas por quem por elas passa, como se fossem seixos inertes”, destaca António Bagão Félix em jeito de manifesto endereçado ao leitor, para juntar: “O jogo de vida e de morte da árvore é diferente do nosso, com formas silenciosas e revivescência. O tempo das árvores não é o nosso tempo. Tem outra medida que vai além do kronos”.

A obra que chega agora aos escaparates nacionais é uma versão ampliada e atualizada de Trinta Árvores, lançada em 2013. Cada capítulo é dedicado a uma árvore específica, que, sem restrições, se apresenta ao leitor, descrevendo a sua forma, essência e contexto. Bagão Félix entrelaça informações botânicas com referências à cultura popular, arte, literatura, religiões, tradições e história, evidenciando como cada árvore é um microcosmo de significados e simbolismos.​

Sobre a seleção de árvores que traz para o seu livro, escreve o autor: “Selecionar árvores sempre foi para mim uma delícia e uma dor. Delícia porque vou ao encontro das que mais me seduzem, das que mais me dão azo ao espanto e ao sereno desassossego. Dor, porque implica renunciar a muitas mais. Neste renovado e acrescido livro, tive a possibilidade de juntar mais dez árvores (...) O ailanto, a albízia, a paineira e o sabugueiro fazem-lhes companhia”.

A parte final do livro reserva algumas páginas ao sumário das árvores que, em Portugal, estão classificadas legalmente como de interesse público ou mesmo como monumentais. “O livro contém também um curto glossário botânico, que quase procura sugerir ao leitor mais esquecido o que tanto me seduz na memória do passado”, acrescenta o leitor ainda na introdução à obra.

António Bagão Félix, nascido em Ílhavo em 1948, é uma figura multifacetada no panorama português. Economista de formação, desempenhou cargos como Ministro das Finanças e Ministro da Segurança Social e do Trabalho em vários governos. Além da sua carreira política, foi vice-governador do Banco de Portugal e administrador em diversas instituições financeiras. A sua paixão pela escrita reflete-se numa obra que abrange temas técnicos, profissionais e religiosos, destacando-se títulos como Do lado de cá, ao deus-dará (2002), O cato e a rosa (2010) e Palavras descruzadas (2022).​

Do livro, publicamos o excerto abaixo:

Jacarandá

Nome Botânico do Género
Jacaranda Juss

Cheguei a Portugal há para aí uns cento e cinquenta anos. Vim do Brasil, onde passei a minha infância perto da família que se estende até às florestas húmidas da Argentina, da Bolívia e do Peru. Quando fiz a longa travessia achei, talvez precipitadamente, que não me iria dar bem com os ares de Lisboa. Não porque a cidade não me interessasse. Pelo contrário, tinha a informação de parentes de lá que me diziam que a terra era mansa, o sol magnânimo e as gentes respeitosas. Mas o meu receio estava mais ligado ao facto de saber que, nesta ponta da Europa, se falava meticulosamente em duas de quatro estações anuais: uma penosamente fria e chuvosa, a que chamavam Inverno, e outra, triste e apagada, a que chamavam Outono. A minha preocupação avolumou-se pela tenra idade com que me trouxeram do continente sul-americano. Nessa altura, olhava-me e comparava o meu porte com o dos meus progenitores: eles, com o seu ritidoma castanho-escuro, retorcido e rugoso, a não disfarçar a idade adulta que não lhes anunciava o fim mas a força e resistência que o tempo lhes havia dado; e eu, habituado ao calor tropical em que nascera e ainda de casca luminosa- mente clara e lisa, receando o frio das tais estações lusas.

Depois deste introdutório quase me esquecia de me identificar. Sou uma árvore que pertence a um género conhecido por Jacaranda, assim baptizado em homenagem aos índios tupi-guarani. Fui registado na "Conservatória do Registo Vegetal" por um dos seus pioneiros, Antoine Laurent de Jussieu (1748-1836) que, segundo as regras da taxonomia botânica, passou a acompanhar o meu género sempre com a sua abreviatura: Jacaranda, Juss.

Pertenço à família das Bignoniáceas (nome dado por Lineu em homenagem ao clérigo e bibliotecário de Luís XIV, Jean-PaulBignon) com mais de cem géneros concentrados em zonas de clima tropical ou subtropical (uma das mais frequentes emPortugal é a Catalpa bignonioides, que, neste livro, também dá o seu testemunho). No meu género, tenho cerca de cinquenta parentes próximos, o que, na penúria demográfica em que vivemos, se pode considerar uma prole numerosa. Para me distinguirem de entre todos, acrescentaram-me um nome: mimosifolia, que quer dizer de folhas parecidas com uma leguminosa que viria, aliás, a encontrar em Portugal, a Acacia mimosa. Devo este «apelido» a um botanista escocês, David Don (1799-1841). Também me reconheço por Jacaranda ovalifolia, por ter folhas tendencialmente ovais e sou muitas vezesconfundido com o Jacaranda acutifolia, que quer dizer de folhas pontiagudas.

Jacarandás de Lisboa. Uma história de exuberância, presença e pertença. A árvore urbana vista por António Bagão Félix
Jacarandás de Lisboa. Uma história de exuberância, presença e pertença. A árvore urbana vista por António Bagão Félix créditos: Wikimedia Commons

Faço parte do grupo de árvores (poucas) em que o nome científico de baptizado permaneceu como nome vernáculo. Estará aqui uma das razões por que sou uma árvore de que muita gente sabe o nome, mesmo fora dos círculos mais restritos dos botânicos. A isso,por certo, também não será alheia a musicalidade aberta das sílabas herdadas dos índios tupi. Pergunto-me se será por essa razão que sou também uma excepção na diversidade linguística dos nomes comuns das árvores, pois que nos mais correntes idiomas sou sempre o Jacarandá (embora em Espanha e Itália também seja reconhecido esporadicamente por Palisandro por causa da madeira).

Ainda a propósito do meu nome, sou o Jacarandá. Não a Jacarandá. Tratam-me pelo masculino, vá lá saber-se porquê… É claro que se fosse por simpatia à grande família das árvores, seria do género feminino. A complicar ainda mais a resposta, está a expressão da natureza que me pôs a conceber flores hermafroditas.

Nos tempos que correm, sei que há uma acesa discussão a propósito de um tal portuguesíssimo TLEBS (Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário) com que querem pôr as crianças a fixar as regras gramaticais. Não opino sobre tal, mas ao menos deixem-me dizer que com as novas regras me atrevo a forçar a solução definitiva para o problema do meu género gramatical: entre os agora chamados pomposamente nomes epicenos, sobrecomuns e comuns de dois, é o género epiceno que escolho. É que a nova cartilha diz que se classificam como tal os nomes que dispõem de um único valor de género, qualquer que seja o sexo da entidade referida. Assunto arrumado!

Reconheço que sou vaidoso quanto baste. Quero dizer, gosto de me engalanar com exuberância, mas não sou emproado. Em Portugal tenho um calendário muito pessoal. Não sigo a regra geral de me desnudar no Inverno. Sou caducifólio (ou quase) como a maioria das árvores companheiras de parques e ruas mas, ao contrário destas, não perco as folhas a partir do Outono, mas mais lá para afrente. Aliás, não me dispo completamente, por uma questão de pudor e pelo costume que adquiri na terra natal. As minhas folhas são, em parte, marcescentes, o que significa que não se soltam dos ramos quando estiolam e secam, mas quando surge a nova rebentação.

Gosto de me olhar nos olhos de quem me vê quando exibo exuberantemente os cachos de flores. Acontece lá para Maio e Junho, ainda sem folhas, quando o azul violáceo das panículas terminais trombetadas surge em todo o seu esplendor por cima do castanho dos ramos desengonçados que lhes dão maternidade e amamentação. As minhas perfumadas e viscosas flores duram muito tempo antes de cair, formando tapetes à volta do perímetro da copa, sempre irregular. Há, porém, quem, menos sensível à minha prodigalidade e beleza, fique zangado comigo por achar que sujo e danifico os passeios e automóveis!

A propósito da cor das minhas corolas bilabiadas, permitam-me uma confidência. Gosto de perceber que à sua volta há sempre dúvidas, hesitações, até querelas cromáticas. Por um lado, porque me sinto importante perante outras árvores amigas que, coitadas, não suscitam tal tipo de abordagem e, por outro, porque me delicio a ver como as pessoas têm dificuldade em distinguir as cores que, em mim, oscilam entre o azul e o vermelho. Por isso, por ligeireza, confusão ou desconhecimento, me vestem de rox
A propósito da cor das minhas corolas bilabiadas, permitam-me uma confidência. Gosto de perceber que à sua volta há sempre dúvidas, hesitações, até querelas cromáticas. Por um lado, porque me sinto importante perante outras árvores amigas que, coitadas, não suscitam tal tipo de abordagem e, por outro, porque me delicio a ver como as pessoas têm dificuldade em distinguir as cores que, em mim, oscilam entre o azul e o vermelho. Por isso, por ligeireza, confusão ou desconhecimento, me vestem de rox créditos: Porto Editora

Sei que é pelas flores que mais me conhecem e estimam. Por isso me aprimoro na forma, no cheiro e na cor. Ouço pessoas, que por mim passam, dizer sobre as suas vidas, às vezes com azedume, que mais vale só que mal acompanhado. Pois cá estou eu para provar que comigo é o inverso: mais vale acompanhado do que apartado. Olhem, em Lisboa, para a Avenida 5 de Outubro, para a Rua Castilho ou para a Avenida D. Carlos, em fileira, ou para o parque Eduardo VII, em conjunto, e percebem claramente o que quero dizer. O resultado é maior do que a soma das parcelas e varia em função da luz de cada dia. Nos dias mais sombrios surjo com uma cor mais intimista numa junção, às vezes algo atormentada, com o tom mais ou menos plúmbeo do céu. Nos dias de sol luzidio e mediterrânico de uma Lisboa meio arabizada deixo-me observar em tons de pigmentos mais azuis do que magenta. É o triplo holismo da passagem de uma das minhas singelas flores para o conjunto de uma inflorescência, de todas estas inflorescências para a árvore e de cada uma destas para o conjunto de árvores, que me faz ser feliz e sorrir dedicadamente entre a Primavera e o Verão.

A propósito da cor das minhas corolas bilabiadas, permitam-me uma confidência. Gosto de perceber que à sua volta há sempre dúvidas, hesitações, até querelas cromáticas. Por um lado, porque me sinto importante perante outras árvores amigas que, coitadas, não suscitam tal tipo de abordagem e, por outro, porque me delicio a ver como as pessoas têm dificuldade em distinguir as cores que, em mim, oscilam entre o azul e o vermelho. Por isso, por ligeireza, confusão ou desconhecimento, me vestem de roxo, lilás, violeta, púrpura, magenta e até índigo! Confesso que até eu às vezes me baralho! Um daltonismo muito meu… convenhamos!

Mas se é por causa das flores que sou mais reconhecido, as minhas folhas também me têm dado uma grande razão para viver com muita alegria. São de um verde vivo e vibrante, grandes, opostas, recompostas e imparipinuladas. Podem atingir quase 50 centímetros de comprimento, com múltiplos pares de folíolosovado-acuminados, que fazem lembrar a frescura e delicadeza de certos fetos. Por isso é que na Grã-Bretanha – onde pouco habito por causa do frio – me conhecem também por fern tree (árvore dos fetos).

Jacarandás de Lisboa. Uma história de exuberância, presença e pertença. A árvore urbana vista por António Bagão Félix
Jacarandás de Lisboa. Uma história de exuberância, presença e pertença. A árvore urbana vista por António Bagão Félix créditos: Wikimedia Commons

Embora originária da América do Sul, sou hoje uma árvore disseminada em regiões que me oferecem atenção e amenidade. De Portugal à Nova Zelândia e Austrália, do México ao Zimbabué, da Califórnia a Israel, encho de cor e fantasia ruas, alamedas, jardins e parques. Na África do Sul obtive mesmo o título honorífico de árvore nacional. A sua capital, Pretória, é a minha cidade preferida porque me seduz, acolhendo-me aos milhares pelas suas artérias, parques e jardins. O tempo de floração coincide, nesta cidade, com o período universitário de exames, dando origem a uma curiosa tradição: sempre que uma flor cai em cima da cabeça de um estudante, certo é que passará nos seus exames. Infelizmente, nem sempre se concretiza esta lenda, mas a culpa, por certo, não é minha. Não posso fazer tudo…

Os meus frutos – verdes de início – amadurecem e secam em tons de castanho. São, botanicamente falando, cápsulas de 5 a 8 centímetros, com uma forma imperfeitamente oval e uma textura algo carnosa e lenhosa, ainda que achatada. No Outono, porque deiscentes, abrem-se como um bivalve e deixam cair em suaves e alegres movimentos as minúsculas e numerosas sementes de cor de café com asas membranosas.

De Castela dizem-me que os meus frutos fazem lembrar as castanholas e o seu salero. Em Portugal ligam-me a conchas, não fosse um país de mar pela terra dentro. Em França associam-me a ostras, numa antecipação da sofisticada "nouvelle cuisine". É, aliás, por esta última parecença que também alguns gauleses me tratam por arbre à huîtres.

Não sou exigente em excesso. Certo que me horrorizam as frias geadas matinais, sobretudo na infância. A minha inflorescência na puberdade é precoce: com pouco mais de 1 metro de altura (eu que antes da reforma por velhice posso atingir os 15 metros), dou à luz as minhas primeiras flores perfumadas. Não sou ansioso por podas regulares e até me dou bem sem essa cirurgia dos excessos. Tenho uma raiz direita e vertical sem divagações adventícias, pelo que sou cuidadoso com os passeios e alamedas que me acolhem na cidade. Resisto estoicamente à poluição urbana. Tenho uma esperança de vida que me faz conviver com sete ou oito gerações das pessoas que me dão atenção. Só peço para não me aproximarem muito da costa marítima por causa da salinidade, nem me submeterem à tortura da seca prolongada.