A Mercearia do Mundo remete-nos para as lojas tradicionais que, levando-nos ao fim da rua, nos transportam ao fim do mundo. E é essa a intenção de Pierre Singaravélou e Sylvain Venayre, responsáveis pela direção desta viagem através dos produtos alimentares. O livro, editado pela Quetzal e com publicação a 21 de março, faz uma incursão pelos paladares do século XVIII aos nossos dias. Do sushi ao ramen, passando pelo vinho do Porto, as ostras, o sal e os temperos, sem esquecer os hambúrgueres, as pizzas e o chili con carne, ao todo são 88 produtos que fazem parte da nossa vida e cuja história mostra como a globalização dos alimentos, dos sabores e da política é um corpo volátil, que tanto se explica como surpreende.
Todas as primeiras frases de cada capítulo incluem uma data e um lugar: são o ponto de partida para explicar os segredos de cada ingrediente e o modo como cada prato nos chegou à mesa. Pierre Singaravélou (1977) é um professor francês (na Sorbonne e no King’s College) que se tem dedicado aos impérios coloniais e à história da globalização. Sylvain Venayre (1970) é historiador, especialista no século XIX e na representação do tempo e do espaço nas viagens (tendo estudado com Alain Corbin, autor da História do Repouso), é professor em Grenoble, Paris e em Nova Iorque. Em 2020 publicaram Le Magasin du Monde, uma história do mundo através dos objetos.
De A Mercearia do Mundo publicamos o excerto abaixo.
O Chá
Em 1842, foi assinado o Tratado de Nanquim, o mais célebre dos "tratados desiguais", de acordo com a expressão de Sun Yat-sen, imposto pelas potências ocidentais à China. Com o fim da Primeira Guerra do Ópio, iniciada em 1839, o Reino Unido obtém o livre comércio com o Império Qing e a abertura de quatro novos portos, para além de Cantão e Amoy. O botânico Robert Fortune percorre então a China para recolher novas plantas. No fim de uma expedição efetuada em 1848 em nome da Companhia Britânica das Índias Orientais, Fortune introduz na Índia 20 mil pés de plantas de chá. A China deixa de ter o quase-monopólio da exportação de chá. Os europeus, em particular os britânicos, que o consomem cada vez mais desde o final do século xvii, assim como as antigas colónias da América, podem agora cultivá-lo e difundi-lo, a ponto de o tornarem a bebida mais consumida no mundo, a seguir à água.
Esta globalização sobrepõe-se a um processo de difusão mais antigo. A preparação de bebidas a partir de folhas de Camelia sinensis por infusão, decocção ou maceração já se fazia na China mil anos antes da nossa era. A produção e a cultura do chá foram introduzidas na Coreia e no Japão no século VI. A oeste, através das rotas da Eurásia, conhecidas como Rotas da Seda, o chá foi introduzido na Ásia Central no primeiro milénio da nossa era, antes de chegar à Pérsia e depois à Rússia. Os caravaneiros mongóis inventaram o samovar, utensílio que os russos transformaram em objeto identitário. Mais a oeste, a difusão do chá é travada por outra bebida quente mais recente: o café. Este concorrente torna-se uma prática social do Império Otomano, que copia os objetos rituais do chá: a cafeteira deriva da chaleira, e a taça de gaiwan, do bule de chá chinês.
Porém, os europeus não entraram em contacto com o chá através da Rota da Seda. O chá só é trazido da China no início do século XVII pelos portugueses, seguidos dos neerlandeses e, mais tarde, dos ingleses e franceses. As Companhias das Índias começam por abordar o Império do Meio marginalmente, pelo sul. Por conseguinte, foi através do termo malaio "te", importado do min nan, a língua falada no Sudeste da China, que os europeus entraram em contacto com a infusão de Camelia sinensis. É por essa razão que os franceses bebem thé, os britânicos, tea, os alemães, tee, os espanhóis, té... Em contrapartida, as sociedades mais orientais, que tiveram contacto com a bebida através das antigas rotas euroasiáticas, utilizam o termo chai, derivado do mandarim e de outras línguas chinesas setentrionais. Assim, os russos e os árabes, tal como os turcos e os checos, bebem chai. A geografia linguística do chá opõe o Leste e o Oeste, espelhando duas fases históricas distintas da sua globalização. A palavra portuguesa «chá» é uma curiosa exceção: os primeiros europeus a entrar em contacto direto com a China, no século xvi, foram, efetivamente, os súbditos do rei de Portugal, que chegaram à corte de Pequim, onde o chá era designado por "chai".
Embora no século XVII as Companhias das Índias tenham começado a importar chá para a Europa, assim como serviços de porcelana para o beber, este não veio acompanhado de um manual de instruções. Por conseguinte, instalam-se as práticas de consumo que apenas reforçam a convicção dos chineses de estar a lidar com selvagens, como adicionar açúcar a esta delicada bebida ou, pior ainda, leite! É certo que o chá importado pela Europa era de má qualidade: um chá preto muito fermentado e comprimido em blocos, para suportar a longa viagem marítima de Cantão a Londres. Assim, não há motivos para acreditar na história que atribui a adição de leite à animadora de um dos mais célebres salões literários da época de Luís XIV, a marquesa de Sablière, que o teria feito para proteger as suas preciosas chávenas chinesas.
No século XVIII, o consumo de chá na Europa, até então irrisório, aumenta significativamente. A partir da década de 1720, com o estabelecimento de rotas regulares das frotas das Companhias das Índias, instala-se o hábito de beber chá várias vezes ao dia — primeiro, entre as classes mais abastadas, mas rapidamente por toda a sociedade britânica. Surge então o breakfast, que só se estenderá a todos os grupos sociais no século xix, e também o five o’clock tea. Inventam-se novos acessórios, como os talheres de prata e os pratos de porcelana, que contribuem para a definição do estilo de vida tipicamente britânico. Porém, no continente, o café continua a ser a bebida mais consumida, ao pequeno-almoço ou no fim da refeição, e o chá continuará, por muito tempo, associado à prática burguesa e feminina dos salões de chá.
Em compensação, o modelo inglês difunde-se amplamente por todo o império britânico. O consumo de chá atinge números tão significativos nas treze colónias inglesas da América que a subida dos impostos sobre este produto, decretada por Jorge III, depauperado com a Guerra dos Sete Anos, desencadeia o primeiro movimento da Revolução Americana, em 1773, conhecido como The Boston Tea Party. Todavia, o aumento da procura ocidental de chá depara-se com um estrangulamento: a China deixa de importar, em troca do chá, os produtos fornecidos pela East India Company. Os comerciantes ingleses acabam por encontrar um produto que, embora proibido pelo Estado chinês, era muito procurado na China: o ópio. Foi para satisfazer o apetite crescente dos ocidentais por chá que a Companhia Britânica das Índias Orientais se tornou traficante de droga. Quando Lin Zexu, comissário imperial em Guandong, ordena a destruição dos carregamentos de ópio armazenados em Cantão e a fiscalização de todos os navios estrangeiros, o Parlamento inglês declara guerra à China, conflito que terminará três anos depois, com o Tratado de Nanquim.
Em poucas décadas, a produção inglesa de chá dispara no oceano Índico. Em 1903, inicia-se o cultivo das primeiras plantas de chá no Quénia, no Uganda, em Moçambique, em Madagáscar e na ilha Maurícia... As terras altas, com as suas noites amenas, são o lugar perfeito para estas plantações, que se adaptam bem às estâncias coloniais de altitude. As belas paisagens com fileiras de arbustos de Camelia sinensis podados regularmente surgem em Nuwara Eliya, no centro do Sri Lanka, em Darjeeling, no sopé de Sikkim, ou em Kericho, nas margens do lago Victoria. Estas plantações são quase exclusivamente de culturas de chá preto para os consumidores britânicos. A rápida difusão destas plantações, geridas pelas grandes companhias comerciais de Londres (como a Twinings, a marca do Earl Grey, criada em 1706), exige muita mão de obra dedicada: os coolies. Oriunda sobretudo do Sul da Índia, esta emigração forçada, semelhante a um tráfico de escravos, envolve cerca de 8 milhões de trabalhadores até 1938, data da sua abolição definitiva. Este lado sombrio da história do chá influencia a vertente do consumo. De prática aristocrática no início do século XVIII, o chá torna-se uma bebida popular na Inglaterra vitoriana. Adoçado com melaço, assegura 20 por cento da ingestão calórica quotidiana dos operários, constituindo um carburante essencial da industrialização.
Atualmente, o Quénia é só o terceiro maior produtor de chá, depois da China e da Índia, mas o maior exportador. A China consome praticamente toda a sua produção, bem como a Índia, ainda que há menos tempo. Os nacionalistas hindus reivindicam a antiga tradição do chá, garantindo que foram eles quem ensinou os britânicos a apreciá-lo, mas foi apenas com a introdução dos bules chineses, no fim da Guerra do Ópio, que o chá se tornou uma bebida nacional. Além disso, o chá indiano é bebido com leite (misturado diretamente no bule) e com especiarias (daí o nome massala chai). Os britânicos também foram responsáveis por outra inovação, que mais tarde se tornou uma tradição marroquina: o chá de menta. As companhias de chá inglesas que importavam chá para a Rússia depararam-se com carregamentos inutilizados, em 1855, devido à Guerra da Crimeia, especialmente em Gibraltar. O Magrebe, que ficava muito próximo, tornou-se rapidamente um novo mercado quando se criou o hábito de acrescentar chá à tradicional bebida doce de menta.
A divergência à escala mundial das palavras "te" e "chai" remete não apenas para duas etapas da sua difusão, mas também para duas bebidas bastante diferentes. Atualmente, a cultura chinesa do chá também se globalizou, bem como algumas práticas dos países que a adotaram há muito tempo: o matcha japonês ou o bubble tea taiwanês. Saborear a complexidade cultural das práticas chinesas, que exploram a variedade e a subtileza das plantas e das plantações, dos tipos de folhas e a diversidade de técnicas de fermentação, tornou-se, no Ocidente, uma prática sofisticada e, também ela, globalizada. O chá está longe de perder o seu lugar de bebida mais consumida no mundo.
Christian Grataloup
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