Comer menos, viver mais? A ciência da fome e da saúde

"Os cientistas que jogam pelas regras de outros não têm grandes hipóteses de fazer descobertas".
 JACK HORNER

No outono de 2016, encontrei-me com três amigos no George Bush Intercon­tinental Airport em Houston para partir numas férias um tanto ou quanto invulgares. Voámos onze horas, de noite, até Santiago, Chile, onde bebemos café e tomámos o pequeno-almoço antes de embarcarmos noutro avião para mais seis horas de voo em direção a oeste, sobre 4 mil quilómetros de oceano, até à Ilha de Páscoa, o pedaço de terra mais isolado do mundo habitado por humanos. Éramos todos homens na casa dos quarenta, mas aquilo não era o típico “fim de semana de rapazes”.

A maior parte das pessoas conhece a Ilha de Páscoa por causa das cerca de mil misteriosas e gigantescas cabeças de pedra, chamadas moai, que salpicam a orla costeira, mas há muito mais do que isso. A ilha foi batizada por explo­radores europeus que lá desembarcaram no domingo de Páscoa de 1722, mas os nativos chamam-lhe Rapa Nui. É um lugar extremo, isolado, espetacular. De forma triangular e com cerca de cento e sessenta e três quilómetros qua­drados, é o que resta de três antigos vulcões que se ergueram três mil e duzen­tos metros desde o fundo do mar, há milhões de anos. Um dos extremos da ilha é rematado por uma orla de altíssimas falésias que mergulham a pique no esplendoroso oceano azul. A povoação mais próxima fica a mais de mil e seis­centos quilómetros de distância.

Não estávamos ali como turistas. Estávamos numa peregrinação à fonte de uma das mais intrigantes moléculas conhecidas da medicina e de que a maior parte das pessoas nunca ouviu sequer falar. A história de como foi descoberta, e de como revolucionou o estudo da longevidade, é uma das sagas mais incrí­veis da biologia. Esta molécula, que se tornou conhecida como rapamicina, tinha também revolucionado a medicina de transplantes, dando a milhões de pacientes uma segunda oportunidade de vida. Mas não fora por isso que tínha­mos viajado dezasseis mil quilómetros até àquele remoto lugar. Estávamos ali porque a rapamicina provara ser capaz de fazer aquilo que nenhuma outra substância tinha até então conseguido: prolongar o tempo máximo de vida num mamífero.

A descoberta aconteceu pelo menos em parte graças ao trabalho de um dos membros do nosso grupo, David Sabatini, que na altura era professor de Biologia no Whitehead Institute do MIT. David tinha ajudado a descobrir o caminho celular sobre o qual a rapamicina atua. Havia um outro biólogo chamado Navdeep Chandel (Nav para os amigos), um amigo do David que estuda metabolismo e mitocôndrias, os pequenos organelos que produzem energia (e fazem muito mais) nas nossas células, da Universidade de North­western. O quarteto era completado pelo meu amigo chegado Tim Ferris. Tim é um empresário e autor, não um cientista, mas tem um talento especial para fazer as perguntas certas e oferecer uma nova perspetiva sobre o que quer que seja. Além disso, sabia que ele estaria disposto a nadar comigo no oceano todos os dias, reduzindo em cerca de 50% a probabilidade de eu ser comido por um tubarão.

Um dos objetivos da nossa viagem era dar uma vista de olhos ao lugar onde iria decorrer uma conferência científica totalmente dedicada à pesquisa desta espantosa substância. Mas queríamos sobretudo fazer uma peregrinação ao local de onde era oriunda a extraordinária molécula e prestar homenagem à sua quase acidental descoberta.

Comer menos, viver mais? A ciência da fome e da saúde vista pelo médico Peter Attia
Peter Attia, autor do livro “A Ciência e a Arte da Longevidade”. créditos: Página pessoal de Peter Attia

Deixámos as malas no pequeno hotel turístico onde ficaríamos instalados e arrancámos para Rano Kau, o vulcão extinto com trezentos metros de altura que domina o canto sudoeste da ilha. O nosso objetivo era o centro da cratera ocupado por um grande lago pantanoso, com mais de quilómetro e meio de comprimento, que tinha uma certa mística entre a população local. De acordo com uma lenda autóctone de que tínhamos ouvido falar, as pessoas que se sentiam doentes desciam até ao fundo da cratera e passavam talvez uma noite nas entranhas do vulcão, que se acreditava ter poderes curativos especiais.

É aqui que começa a história da rapamicina. Em finais de 1964, uma expedição médica e científica canadiana chegou à Ilha de Páscoa, depois de viajar de barco desde Halifax. Passaram várias semanas a fazer pesquisa e a prestar cuidados médicos à população necessitada, além de recolherem nume­rosos espécimes da invulgar fauna e flora da ilha, incluindo amostras de terra da área da cratera. É possível que tenham ouvido a mesma lenda a respeito das suas propriedades curativas que nós ouvimos.

Alguns anos mais tarde, um frasco contendo terra da Ilha de Páscoa foi parar à bancada do laboratório de um bioquímico de Montréal chamado Suren Sehgal, que trabalhava para uma empresa farmacêutica canadiana então deno­minada Ayerst. Sehgal descobriu que aquela amostra de terra estava saturada com um poderoso agente antifúngico aparentemente produzido por uma bac­téria do solo chamada Streptomyces hygroscopicus. Curioso, isolou a bactéria e reproduziu-a num meio de cultura, após o que começou a testar o misterioso composto no seu laboratório. Chamou-lhe rapamicina, de Rapa Nui, o nome nativo da Ilha de Páscoa (micina é o sufixo tipicamente aplicado aos agentes antimicrobianos). Mas então a Ayerst encerrou abruptamente o seu labora­tório de Montréal, e os patrões de Sehgal ordenaram-lhe que destruísse todos os compostos que estava a investigar.

Sehgal desobedeceu à ordem. Um dia, levou para casa um frasco com rapamicina. O filho, Ajai, que originalmente esteve para ser o quinto membro da nossa peregrinação, lembra-se de, quando era um rapazinho, ter aberto o frigorífico da família à procura de gelado e ver um recipiente muito bem embrulhado com a indicação NÃO COMER. O frasco sobreviveu à mudança da família para Princeton, New Jersey, para onde Sehgal foi finalmente trans­ferido, e quando, em 1987, a gigante farmacêutica Wyeth comprou a Ayerst, os novos patrões perguntaram-lhe se tinha alguns projetos interessantes que gostasse de prosseguir. Sehgal tirou o frasco de rapamicina do frigorífico e voltou ao trabalho.

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Sehgal acreditava ter encontrado a cura para o pé de atleta, o que já teria sido importante que bastasse. A dada altura, recorda Ajai, preparou um unguento caseiro contendo rapamicina para uma vizinha que desenvolvera uma estranha micose; a micose desapareceu quase instantaneamente. Mas a rapamicina revelou ser muito mais do que o próximo spray para os pés do Dr. Scholl’s. Provou ter potentes efeitos no sistema imunitário, e em 1999 foi aprovada pela US Food and Drug Administration (FDA) para ajudar o orga­nismo dos pacientes transplantados a aceitar os novos órgãos. Como interno de cirurgia, costumava distribuí-la como rebuçados a pacientes com transplan­tes dos rins e do fígado. Por vezes referida como sirolimus, a rapamicina é também usada nos stents arteriais porque impede que os vasos alargados voltem a ocluir. Os êxitos sucederam-se, mesmo depois de Sehgal ter morrido em 2003. Em 2007, foi aprovado, para uso contra um tipo de cancro renal, um análogo da rapamicina chamado everolimus

Uma droga análoga é um composto com uma estrutura molecular semelhante mas não idêntica; por exemplo, a oxicodona é um análogo da codeína.

O composto foi considerado tão importante que no início da década de 2000 a Wyeth-Ayserst colocou uma placa na Ilha de Páscoa, não muito longe da cratera do vulcão, para assinalar o local onde a rapamicina tinha sido encon­trada. Mas quando fomos procurá-la, descobrimos com espanto e consternação que fora roubada.

A razão por que a rapamicina tem tantas e tão diversas aplicações reside numa propriedade que Sehgal tinha observado, mas nunca explorado, que é tender a abrandar o processo de crescimento e divisão celular. David Sabatini foi um do punhado de cientistas que pegaram no testemunho depois de Sehgal e procuraram explicar este fenómeno. Compreender a rapamicina tornou-se o trabalho da sua vida. Tendo começado, quando ainda estava no início do internato, a trabalhar com uma pilha de comunicações científicas que o pró­prio Sehgal tinha fotocopiado, Sabatini ajudou a explicar como este composto único funcionava na célula. No fim, ele e outros descobriram que a rapamicina atuava diretamente sobre um composto proteico intracelular chamado mTOR (pronuncia-se éme-tor) ou mechanistic target of rapamycin.

É aqui que a nomenclatura se torna um pouco confusa. Em resumo, a droga rapamicina bloqueia ou inibe a atividade do mTOR, ou mechanistic target of rapamycin, o complexo proteico que se encontra nas células. Para aumentar a confusão, o mTOR era originariamente chamado mammalian target of rapamycin, para o distinguir de uma versão de target of rapamycin, ou TOR, que tinha sido descoberta em leveduras. TOR e mTOR são essencialmente a mesma coisa, o que significa que este mesmo mecanismo básico é encontrado de alto a baixo na árvore da vida, através de mil milhões de anos de evolução. [Embora as siglas inglesas sejam usadas pelos nossos médicos, o que representam pode e deve ser traduzido. Temos, assim, alvo de rapamicina em mamíferos (mTor) e alvo de rapamicina (TOR).

comida saudável
créditos: Louis Hansel/Unsplash

E porque nos interessa o mTOR? Porque este mecanismo revelou ser um dos mais importantes mediadores de longevidade a nível celular. Além disso, é também altamente “conservado”, o que significa que se encontra em prati­camente todas as formas de vida, desde moscas a leveduras, vermes e por aí fora até aos seres humanos. Em biologia, «conservado» significa que uma coisa foi transmitida, através da seleção natural, ao longo de muitas espécies e orga­nismos — um sinal de que a evolução a considera ser muito importante.

Era estranhíssimo: esta molécula exótica, que só pode ser encontrada num remoto pedaço de terra no meio do oceano, atua quase como um interruptor capaz de inibir um mecanismo celular muito específico que existe em quase tudo o que vive. Era um encaixe perfeito, e este facto continua a deixar-me estupefacto cada vez que penso nele.

A função do mTOR é basicamente estabelecer um equilíbrio entre as necessidades que um organismo tem de crescer e de se reproduzir contra a quan­tidade de nutrientes disponíveis. Quando a comida é abundante, o mTOR é ativado e a célula (ou o organismo) entra em modo de crescimento, produ­zindo novas proteínas e acelerando a divisão celular, como se o seu fim último fosse a reprodução. Quando os nutrientes escasseiam, o mTOR é suprimido e as células entram numa espécie de modo de «reciclagem», desmontando os componentes celulares e fazendo, de um modo geral, uma «limpeza à casa». A divisão celular abranda ou para, e a reprodução é suspensa para permitir ao organismo conservar energia.

“Em certa medida, o mTOR é o responsável pela manutenção da célula”, explica Sabatini. Situa-se no nexo de uma longa e complexa cadeia de trilhos ascendentes e descendentes que basicamente funcionam em conjunto para regular o metabolismo. Deteta a presença de nutrientes, em particular certos aminoácidos, e ajuda a montar proteínas, os constituintes essenciais das célu­las. Como Sabatini diz, “o mTOR tem basicamente um dedo em todos os processos principais da célula”.

Em 9 de julho de 2009, foi publicado no New York Times um curto mas importante artigo: “Antibiótico Atrasa Envelhecimento em Experiências com Ratinhos”, rezava o cabeçalho. O “antibiótico” era a rapamicina (que não é na verdade um antibiótico) e, de acordo com o estudo, os ratinhos a que fora dada a droga viveram em média significativamente mais tempo do que os do grupo de controlo: 13% mais para as fêmeas, 9% para os machos.

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O artigo apareceu enterrado na página 20, mas teve um resultado surpreen­dente. Apesar de a droga ter sido ministrada numa fase tardia da vida, quando os ratinhos já eram “velhos” (seiscentos dias, mais ou menos o equivalente a humanos na casa dos sessenta), prolongara o que restava da esperança de vida dos animais em 28% no caso dos machos e 38% no das fêmeas. Era o equiva­lente a um comprimido que conseguisse fazer uma mulher de sessenta anos viver até aos noventa e cinco. Os autores do estudo, publicado na Nature, especulavam que a rapamicina podia prolongar o tempo de vida “adiando a morte por cancro, retardando os mecanismos do envelhecimento, ou ambos”. A verdadeira notícia, porém, era que nenhuma molécula tinha até então con­seguido prolongar comprovadamente o tempo de vida num mamífero. Nunca.

Os resultados foram mais convincentes porque a experiência fora condu­zida por três equipas de investigadores diferentes em três laboratórios separa­dos, usando no total 1901 animais geneticamente diversos, e tinham sido consistentes em toda a linha. Melhor ainda, outros laboratórios reproduziram­-nos rápida e facilmente, o que é uma relativa raridade, mesmo com descober­tas muito apregoadas.

Talvez isto lhe pareça surpreendente, mas muitos dos estudos mais sensa­cionais, os que lê no jornal ou vê nos noticiários, nunca são repetidos. Um caso exemplar: a muito publicitada descoberta em 2006 que uma substância encontrada na pele das uvas (e no vinho tinto), o resveratrol, prolongava o tempo de vida de ratinhos obesos. Isto gerou inúmeros artigos nos media e teve até direito a um longo segmento em 60 Minutos a respeito dos benefícios desta espantosa molécula (e, por extensão, do vinho tinto). As vendas de suple­mentos com resveratrol dispararam. Mas nenhum outro laboratório conseguiu reproduzir as descobertas iniciais. Quando o resveratrol foi sujeito ao mesmo género de experimentação rigorosa que a rapamicina no âmbito do programa do National Institute on Aging para testar potenciais intervenções antienve­lhecimento, não prolongou o tempo de vida numa população igualmente diversa de ratinhos normais.

O mesmo é verdade no caso de outros suplementos muito badalados como o ribosídeo de nicotinamida (RN), que se mostrou também incapaz de pro­longar consistentemente o tempo de vida em ratinhos. Não há, claro, dados que mostrem que qualquer destes suplementos tenha a capacidade de aumen­tar o tempo de vida ou melhorar a saúde em humanos. Mas estudos sucessivos desde 2009 têm confirmado que a rapamicina consegue fazê-lo de uma forma bastante fiável em ratinhos. Também se provou que tem o mesmo efeito em leveduras e moscas-da-fruta, por vezes em simultâneo com manipulações gené­ticas que reduzem a atividade mTOR. Assim sendo, qualquer pessoa razoável chegaria à conclusão de que há vantagem em desligar o mTOR, pelo menos temporariamente — e que a rapamicina talvez tenha potencial como droga promotora da longevidade.

Para os cientistas que estudam o envelhecimento, o efeito prolongador da vida da rapamicina foi muito excitante, mas não exatamente uma surpresa.

Parecia o culminar de décadas, se não de séculos, de observações sobre como a quantidade de comida que ingerimos está de algum modo correlacionada com os anos que vivemos. Esta ideia remonta à época de Hipócrates, mas experiências mais recentes demonstraram, uma e outra vez, que reduzir a inges­tão de alimentos em animais de laboratório podia dilatar-lhes o tempo de vida.

A primeira pessoa que pôs verdadeiramente em prática, de uma maneira rigorosa e documentada, a ideia de comer menos, não foi um grego da Antigui­dade Clássica nem um cientista moderno, mas um homem de negócios ita­liano do século XVI chamado Alvise Cornaro. Cornaro (a quem os amigos chamavam “Luigi”), um promotor imobiliário, self-made man, tornara-se imensamente rico a drenar pântanos e a transformá-los em terra agrícola. Tinha uma esposa jovem e bonita e uma villa nos arredores de Veneza com um teatro privado. Adorava dar grandes festas. Contudo, à medida que se aproximava dos quarenta, deu por si a sofrer de «uma carrada de doenças», como dizia: dores de estômago, aumento de peso e uma sede constante, sintoma clássico de uma diabetes incipiente.

A causa era óbvia: demasiados festins. E a cura não menos óbvia: acabar com os opíparos banquetes e as festas, disseram-lhe os médicos. O Não-Magro Luigi refilou. Não queria desistir do seu faustoso estilo de vida. Mas como os sintomas se tornavam cada vez mais intoleráveis, compreendeu que tinha de fazer uma correção radical de rumo se queria ver crescer a filha pequena. Ape­lando a toda a sua força de vontade, reduziu-se a uma dieta espartana que consistia em cerca de trezentos e quarenta gramas de comida por dia, tipica­mente na forma de um guisado à base de frango. Era nutritivo, mas não enchia. «Levanto-me sempre da mesa com disposição para comer e beber mais», escre­veria mais tarde.

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Ao cabo de um ano deste regime, a saúde de Cornaro tinha melhorado de uma forma espetacular. Segundo ele: “Dei por mim (...) completamente livre de todas as minhas queixas”. Manteve a dieta, e quando chegou aos oitentas estava tão entusiasmado por ter vivido tanto tempo com tão boa saúde que se sentiu obrigado a partilhar o seu segredo com o mundo. Escreveu um relato autobiográfico a que chamou Tratado da Vida Sóbria, que estava longe de ser a arenga de um abstémio, uma vez que acompanhava o seu guisado da longevidade com dois generosos copos de vinho por dia.

A dieta de Cornaro sobreviveu muito além da sua morte, em 1566. O livro foi reimpresso em várias línguas ao longo dos séculos seguintes, louvado por Benjamin Franklin, Thomas Edison e outras luminárias, o que fez dele talvez o primeiro bestseller de dieta da História. Mas foi só em meados do século XX que os cientistas começaram a testar com rigor e ideia de Cornaro de que comer menos pode aumentar o tempo de vida de uma pessoa (ou, pelo menos, o tempo de vida de animais de laboratório).

Não estamos a falar de simplesmente inscrever ratinhos no Wheigh Wat­chers. A restrição calórica sem desnutrição, comummente abreviada para RC, é um método experimental rigoroso em que um grupo de animais (o grupo de controlo) é alimentado ad libitum, ou seja, comem tanto quanto quiserem, enquanto o grupo ou grupos experimentais recebem uma dieta semelhante que contém todos os nutrientes necessários, mas 25 ou 30% menos calorias totais (aproximadamente). Os animais sujeitos a restrição são então comparados com os do grupo de controlo.

Os resultados têm sido notavelmente consistentes. Estudos que remon­tam aos anos 1930 descobriram que limitar a ingestão de calorias pode aumentar o tempo de vida de uma ratazana ou de um rato entre 15 e 45%, dependendo da idade inicial e do grau de restrição. Além disso, os animais subalimentados parecem também assinalavelmente mais saudáveis para a idade, desenvolvendo menos tumores espontâneos do que os ratos alimenta­dos normalmente. A RC parece aumentar o tempo de vida saudável e o tempo de vida. Talvez pense que a fome deve ser pouco saudável, mas os cientistas descobriram que quanto menos alimentassem os animais, mais tempo eles viviam. Os efeitos parecem até um certo ponto depender da dose, quase como um medicamento.

comer saudável
créditos: Laura Mitulla/Unsplash

O efeito prolongador de vida da RC parece ser quase universal. Muitos laboratórios descobriram que limitar a ingestão de calorias prolonga o tempo de vida não só em ratazanas e ratos (habitualmente), mas também em levedu­ras, vermes, peixes, hamsters, cães e até, estranhamente, aranhas. Sabe-se que aumenta o tempo de vida em praticamente todos os modelos de organismo em que foi testado, com a curiosa exceção da mosca doméstica. Parece que, em toda a linha, os animais famintos se tornam mais resilientes e mais capazes de sobreviver, pelo menos no ambiente controlado e livre de germes de um laboratório.

Mas isto não significa que vá pôr-me a recomendar este género de restrição calórica radical como tática a todos os meus pacientes; os animais muito magros podem ser mais suscetíveis à morte por infeções ou temperaturas baixas. Para começar, a utilidade da RC fora do laboratório continua a ser duvidosa. E ainda que comer um pouco menos tenha funcionado com Luigi Cornaro, e com alguns dos meus pacientes, manter durante muito tempo uma severa restrição calórica é difícil, se não impossível, para a maior parte das pessoas.

Além disso, não há qualquer prova de que uma RC extrema maximize verda­deiramente a longevidade num organismo tão complexo como o dos humanos, que vivem num ambiente muito mais variável do que os animais referidos acima. Embora pareça provável que reduziria o risco de sucumbir a pelo menos alguns dos Quatro Cavaleiros, parece igualmente provável que o aumento da mortalidade causada por infeções, traumas e fragilidade física acabasse por anular esses ganhos.

O verdadeiro valor da restrição calórica reside nos conhecimentos com que contribuiu para a nossa compreensão do próprio processo do envelhecimento. Estudos nesta área têm ajudado a revelar mecanismos celulares críticos rela­cionados com nutrientes e longevidade. Reduzir a quantidade de nutrientes à disposição de uma célula parece desencadear um conjunto de caminhos inatos que reforçam a sua resistência ao stresse e a sua eficiência metabólica — todos eles relacionados, de uma maneira ou de outra, com o mTOR.

O primeiro é uma enzima chamada AMPQ, proteína quinase ativada por AMP. A AMPQ é como a luzinha do nível de combustível no painel de bordo do seu carro: ativa-se quando deteta níveis demasiado baixos de nutrientes (combustível) e desencadeia uma cascata de ações. Embora isto aconteça tipi­camente como resposta a uma escassez de nutrientes, a AMPQ é também ativada quando fazemos exercício, respondendo à diminuição temporária do nível de nutrientes. Tal como mudaria de itinerário se a sua luzinha do com­bustível se acendesse, dirigindo-se à estação de serviço mais próxima em vez de continuar até casa da Avó, a AMPQ incita a célula a conservar e procurar fontes alternativas de energia.

Faz a primeira destas coisas estimulando a produção de novas mitocôndrias, os minúsculos organelos que geram energia na célula, através de um processo chamado biogénese mitocondrial. Com o tempo — ou a falta de uso — as nossas mitocôndrias tornam-se vulneráveis ao stresse oxidativo e aos danos genómicos, o que leva a disfunção e falência. Reduzir a quantidade de nutrien­tes disponível, através de uma restrição dietética ou de exercício físico, desen­cadeia a produção de novas e mais eficientes mitocôndrias para substituir as velhas e danificadas. Estas novas mitocôndrias ajudam a célula a produzir mais ATP, a moeda da energia celular, com o combustível que possui. A AMPQ também incita o corpo a fornecer mais combustível a estas novas mitocôndrias, produzindo glicose no fígado (de que falaremos no próximo capítulo) e liber­tando a energia armazenada nas células adiposas.

Ainda mais importante, a AMPQ trabalha para inibir a atividade do mTOR, o regulador do crescimento celular. Especificamente, parece ser uma queda da quantidade de aminoácidos que induz o mTOR a desligar-se, e com ele todos os processos anabólicos (de crescimento) que controla. Em vez de fabricar novas proteínas e continuar a dividir-se, a célula entra num modo de eficiência energética e resistência ao stresse reforçadas, ativando um impor­tante processo de reciclagem celular chamado autofagia, que significa “alimentar­-se de si mesmo” (ou melhor ainda, “devorar-se a si mesmo”).

comer saudável
créditos: Edward Howell/Unsplash

A autofagia representa o lado catabólico do metabolismo, quando a célula deixa de produzir novas proteínas e, em vez disso, começa a decompor proteí­nas velhas e outras estruturas celulares nos aminoácidos que as constituem, usando-os para construir outras novas. É uma forma de reciclagem celular que limpa o lixo acumulado na célula, atribuindo-lhe outros usos ou eliminando-o. Em vez de ir ao armazém comprar mais barrotes e contraplacado e parafusos, o «empreiteiro» celular procura entre os destroços da casa que acabou de demo­lir materiais que possa reutilizar, seja para construir e reparar a célula, seja para queimar e produzir energia.

A autofagia é essencial à vida. Se fecha totalmente, o organismo morre. Imagine que deixava de pôr o lixo (ou o material reciclável) na rua; a sua casa depressa se tornaria inabitável. Só que, em vez de sacos de plástico, esta limpeza é assegurada por organelos especializados chamados lisossomos que juntam as proteínas velhas e outros detritos, incluindo patógenos, e os moem (através de enzimas) para reutilização. Além disso, os lisossomos também desfazem e des­troem umas coisas chamadas agregados, aglomerados de proteínas danificadas que se vão acumulando com o passar do tempo. Os agregados de proteínas têm sido implicados em doenças como a Parkinson e a Alzheimer, de modo que nos desembaraçarmos deles é bom; a autofagia deficiente tem sido impli­cada em patologias associadas à doença de Alzheimer e também à esclerose lateral amiotrófica (ELA), à doença de Parkinson e outros distúrbios neurode­generativos. Os ratinhos com falta de um gene específico de autofagia sucum­bem à neurodegeneração em dois ou três meses.

Ao limpar as nossas células de proteínas danificadas e outro lixo celular, a autofagia ajuda-as a funcionar de forma mais limpa e eficiente e torna-as mais resistentes ao stresse. Todavia, à medida que envelhecemos, a autofagia declina. Pensa-se que a autofagia deficiente é um importante vetor de numerosos fenó­tipos e enfermidades relacionados com o envelhecimento, como a neurodege­neração e a osteoartrite. A mim parece-me fascinante o facto de este tão importante mecanismo celular poder ser desencadeado por determinados géneros de intervenção, como uma redução temporária de nutrientes (quando fazemos exercício físico ou jejuamos) — e pela rapamicina. (O Comité Nobel partilha este fascínio, tendo atribuído o Prémio Nobel de Fisiologia ou Medi­cina de 2016 ao cientista japonês Yoshinori Ohsumi pelo seu trabalho na elucidação da regulação genética da autofagia.)

Por enquanto, o seu efeito como promotora da autofagia é apenas uma das razões por que a rapamicina pode ter um futuro como droga da longevidade, segundo Matt Kaeberlein, um investigador da Universidade de Washington. Kaeberlein, que estuda a rapamicina e o mTOR há um par de décadas, afirma que os benefícios da droga são muito mais vastos e que a rapamicina e os seus derivados têm um enorme potencial para uso em humanos, com o objetivo de prolongar o tempo de vida e o tempo de vida saudável.

Embora a rapamicina já esteja aprovada para uso humano em múltiplas indicações, são muitos os obstáculos ao lançamento de uma experiência clínica para testar o seu possível impacto no envelhecimento, nomeadamente os potenciais efeitos secundários em pessoas saudáveis, a começar pelo risco de imunossupressão.

Historicamente, a rapamicina foi aprovada para tratar indefinidamente pacientes transplantados, incluída num cocktail de três ou quatro outras drogas destinado a suprimir a parte do sistema imunitário que caso contrário atacaria e destruiria o novo órgão. O efeito imunossupressor explica a razão por que houve alguma relutância em considerar o uso (ou até o estudo) da rapamicina num contexto de retardamento do envelhecimento em pessoas saudáveis, não obstante a abundância de dados que sugerem a sua capacidade de prolongar o tempo de vida e o tempo de vida saudável em animais. Os seus alegados efei­tos imunossupressores eram aparentemente demasiado assustadores para serem ultrapassados. Por isso parecia improvável que a rapamicina viesse algum dia a cumprir a sua promessa de droga promotora da longevidade em humanos.

Mas tudo começou a mudar em finais de dezembro de 2014 com a publi­cação de um estudo que mostrava que o análogo da rapamicina everolimus na realidade reforçava a resposta imunitária adaptativa a uma vacina num grupo de pacientes mais idosos. No estudo, dirigido pelos cientistas Joan Mannick e Lloyd Klickstein, que na altura trabalhavam na Novartis, o grupo de pacientes que recebia semanalmente uma dose moderada de everolímus parecia ter a melhor resposta à vacina da gripe, com menos efeitos secundários comunica­dos. Este estudo sugeria que a rapamicina (e os seus derivados) pode na verdade ser mais um imuno-modulador do que um “imunossupressor”: ou seja, em certos regimes de dosagem pode reforçar a imunidade, enquanto noutros com­pletamente diferentes pode inibi-la.