A Mercearia do Mundo remete-nos para as lojas tradicionais que, levando-nos ao fim da rua, nos transportam ao fim do mundo. E é essa a intenção de Pierre Singaravélou e Sylvain Venayre, responsáveis pela direção desta viagem através dos produtos alimentares. O livro, editado pela Quetzal e com publicação a 21 de março, faz uma incursão pelos paladares do século XVIII aos nossos dias. Do sushi ao ramen, passando pelo vinho do Porto, as ostras, o sal e os temperos, sem esquecer os hambúrgueres, as pizzas e o chili con carne, ao todo são 88 produtos que fazem parte da nossa vida e cuja história mostra como a globalização dos alimentos, dos sabores e da política é um corpo volátil, que tanto se explica como surpreende.
Todas as primeiras frases de cada capítulo incluem uma data e um lugar: são o ponto de partida para explicar os segredos de cada ingrediente e o modo como cada prato nos chegou à mesa. Pierre Singaravélou (1977) é um professor francês (na Sorbonne e no King’s College) que se tem dedicado aos impérios coloniais e à história da globalização. Sylvain Venayre (1970) é historiador, especialista no século XIX e na representação do tempo e do espaço nas viagens (tendo estudado com Alain Corbin, autor da História do Repouso), é professor em Grenoble, Paris e em Nova Iorque. Em 2020 publicaram Le Magasin du Monde, uma história do mundo através dos objetos.
De A Mercearia do Mundo publicamos o excerto abaixo.
O caril
Em 1747, a inglesa Hannah Glasse publicava num dos seus famosos livros de cozinha uma receita de intitulada “Como preparar um caril à indiana”, que faz eco de uma antiquíssima tradição. Quando os portugueses chegaram à Índia, no final do século XV, descobriram esta maneira muito típica, e muito difundida, de preparar vegetais ou carne num molho picante a que davam o nome de caril ou caree (do tâmil “kari”). A palavra evoluiu para “currey” ou “curry”, não tendo qualquer relação com a antiga palavra inglesa “cury”: o termo utilizado no título de um famoso livro de receitas do século xiv, The Forme of Cury, ou The Book of Cooking, em inglês moderno, deriva do francês médio “cuire”, ou seja, “cozinhar”.
No século XVI, o viajante neerlandês Jan Huygen van Linschoten refere a utilização do caril em Goa, em pratos de peixe, e, no século xvii, o italiano Pietro della Valle descreve-o como um caldo à base de manteiga, especiarias, gengibre, curcuma e outros condimentos. Edward Terry, capelão do embaixador Sir Thomas Roe na Índia (1615-1619), fornece mais pormenores relativos à confeção. Segundo ele, na corte do grão-mongol, a carne era cortada em pequenos cubos, cozinhada com cebola, ervas, raízes, gengibre, diversas especiarias e um pouco de molho, o que tornava o prato do agrado de todos.
Foi precisamente este molho, confecionado com uma mistura diferente de especiarias, consoante os pratos, que conquistou as papilas dos ocidentais, ao ponto de ainda subsistirem dúvidas sobre as origens indianas do curry powder (caril em pó) atualmente vendido nas mercearias. Será esse caril em pó, realmente, como afirmam alguns chefs indianos, uma invenção dos britânicos? Ou simplesmente o resultado de uma apropriação das práticas culinárias indianas pela metrópole? Resta apenas uma certeza: indiano, britânico ou mundial, o caril sofreu tantas transformações ao longo do seu percurso gastronómico que já nada tem a ver com o molho que os mercadores portugueses descobriram em finais da década de 1490. A influência persa, através dos imperadores mogóis, e a junção de malaguetas trazidas da América do Sul enriqueceram-no. Mas, sem dúvida, foram os britânicos quem mais alterações introduziu, adaptando-o às suas papilas gustativas. O caril era muito apreciado pelos funcionários da Companhia Britânica das Índias Orientais que, no século XVIII, não hesitaram em casar com mulheres hindus ou muçulmanas e adotar alguns dos seus costumes, quer na indumentária quer na culinária. Esta mistura de especiarias em pó transforma-se, assim, numa mercadoria para exportação: ao regressar a Inglaterra, os nababos — nome dado aos britânicos que tinham vivido e trabalhado na Índia —, saudosos dos sabores indianos, são dela grandes consumidores. Todavia, a conquista dos paladares não foi linear. A grande revolta [dos Cipaios] de 1857 contra a Companhia Britânica das Índias Orientais põe bruscamente fim ao bom entendimento entre britânicos e indianos. Os colonizadores ficam reduzidos aos enlatados de salmão, aos frascos de ervilhas e à insipidez da comida inglesa.
Não conseguem, contudo, afastar-se do caril por muito tempo. Doravante, o caril integra dois mundos culinários com trajetórias distintas. Quando os britânicos adicionam caril em pó aos seus chutneys e picles, a reação dos indianos a estas novas práticas culinárias é ambivalente. Em Bengala, a primeira região colonizada, o surgimento dos restaurantes e dos novos pratos ingleses faz com que os indianos saiam em defesa dos pratos tradicionais; porém, aqueles novos horizontes culinários também lhes despertam curiosidade. Datam dessa altura os primeiros livros indianos com receitas de caril. Em 1889, Bipradas Mukhopadhyay, um especialista na matéria, afirma, numa das suas publicações, que aquilo a que os britânicos chamam Calcutta curry powder — uma mistura de café, sementes de papoila, curcuma, malagueta, cominhos e sal — nada tem de indiano. Segundo Mukhopadhyay, os europeus aprenderam a cozinhar o caril com os judeus, e os judeus com os muçulmanos. O que não o impede de apresentar pratos de caril com borrego, ovo, camarão e outras receitas de firangi curry (caril estrangeiro). O seu uso indiscriminado é manifestamente contrário à delicadeza dos pratos bengális. O caril em pó não deixa, por isso, de se tornar o elemento essencial de algumas receitas anglo-indianas como a mulligatawny soup, um caldo de galinha engrossado com arroz, ou o arroz de caril (rice curry), muito apreciado pelos colonos britânicos.
Os indianos levam-no para as Caraíbas, as ilhas Fiji, a Guiana, as Maldivas, a ilha Maurícia, o Suriname, a África do Sul e Trindade. Na América do Norte, no início do século xx, a chegada dos siques do Punjab ao México e ao Sul da Califórnia deu origem ao chicken curry enchilada, um cruzamento das tradições culinárias mexicana e panjábi. Em Nova Iorque, a consagração chega quando o nome Curry Row é atribuído a uma zona de Manhattan. Na Grã-Bretanha, graças aos emigrantes bengális da região de Sylhet, o caril sai do seu pequeno círculo inicial; na década de 1940, torna-se tão popular entre os estudantes londrinos que chega a rivalizar com o fish and chips e as hot pies. Nos anos de 1960, muitos jovens consomem o arroz de caril como acompanhamento da cerveja ou depois de uma noite no pub. O Madras curry, menos sofisticado, torna-se a nova palavra de ordem. A venda de curry paste facilita a sua utilização numa grande variedade de pratos, nas batatas fritas, para perfumar frutos secos (sultanas) ou com frango frio e maionese. Muitos navios da tão tradicional Royal Navy chegam mesmo a elegê-lo como prato do almoço de domingo a bordo. Mais recentemente, a cozinha de fusão integrou-o na categoria de cozinha étnica.
O caril também passou a ser usado em muitos pratos tradicionais. A Alemanha inventou a currywurst, uma salsicha com molho de caril que se tornou um ícone da culinária berlinense; o Japão, o kare pan, uma espécie de donut frito com recheio de caril; a África do Sul, o bunny chow, um pão recheado com carne e caril; é um dos ingredientes dos noodles singapurenses. Haverá algum país do mundo que ainda não o conheça? O Sudeste Asiático tem o thai massaman curry ou a surpreendente thai curry pizza, e na Reunião, na Jamaica e na Nigéria, os pratos de caril são o orgulho nacional. No arquipélago japonês, para onde foi importado de Inglaterra, no século xix, acrescentou sabor ao arroz em pratos como o frog curry e passou a ser vendido em pequenas saquetas. Hoje em dia, a importância do caril no Japão é semelhante à do hambúrguer nos Estados Unidos.
Mais recentemente, o caril regressou à Índia, agora como produto britânico. Eis uma nova forma de imperialismo gastronómico! Em 2010, o caril foi apresentado no festival Taste of Britain, em Calcutá, como um dos cinquenta pratos tipicamente britânicos. Nessa mesma altura, na Grã-Bretanha decorria a National Curry Week, sendo o título “City of Curry” disputado por cidades como Londres, Newcastle ou Birmingham — muito orgulhosa da sua especialidade, o balti curry, um prato preparado num pequeno wok denominado balti. Ainda que não pretenda ter propriedades medicinais, o caril também pode ajudar no caso de revelações difíceis, como no filme The Fish Curry (2017), realizado por Abhishek Verma, em que um filho decide preparar o prato favorito do pai, um caril de peixe, na esperança de que isso o ajude a aceitar o seu coming out.
Face a todas estas apropriações, o caril revestiu-se de um forte sentimento nacional, para os indianos, e estes denunciam as formas de despossessão decorrentes das práticas comerciais, tais como a deslocalização do cultivo do arroz basmáti para a Califórnia ou a apropriação da curcuma pelas empresas farmacêuticas estrangeiras. Nenhum indiano que respeite as tradições utiliza o curry power industrial, clamam os chefs indianos: o verdadeiro caril é uma mistura específica, adaptada a cada prato e usada segundo métodos precisos. Por conseguinte, na Índia, há milhares de curries que em nada se assemelham ao pó genérico vendido no mundo inteiro.
Depois da Grã-Bretanha, o mundo tornou-se hoje “curryholic”, muito além do espaço imperial onde o caril se difundiu inicialmente. As inúmeras apropriações desvincularam-no das tradições nacionais, das práticas ancestrais, de um terroir. Apesar dos apelos dos chefs indianos desejosos de reivindicar a sua autenticidade para, assim, o integrar no soft power indiano, o caril encarna a miscigenação em curso num mundo pós-colonial globalizado. O seu sucesso planetário devia justificar o seu reconhecimento como Património Cultural da Humanidade.
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