Todos transportamos uma história, embora algumas entre as histórias tragam no enredo o “sumo” que tanto apreciamos, a de uma mudança de vida. No caso da história de André Nogueira, fotógrafo profissional e de Rita Parente, designer gráfica e ilustradora, a narrativa ganha outros atributos, o de se fazer a dois, melhor dizendo, a três, com o nascimento em 2019 do seu filho, o Simão.
A história de mudança de André e Rita constrói-se num percurso de sete anos. Uma cronologia de alteração não só dos hábitos alimentares, mas também dos quotidianos. Ao apontar de novos caminhos para Rita e André não foi alheia uma experiência dolorosa próxima, a doença oncológica de um familiar. Veio, depois, a informação de base para o estilo de vida que queriam inaugurar. Houve que estudar, primeiro com as leituras, depois no reaprender a comprar, a escolher, a cozinhar. Rita e André eliminaram da sua dieta os alimentos de origem animal e acolheram o estilo de vida vegan. Começaram a sentir-se melhor, com mais energia. À mesa chegavam frutas, vegetais, leguminosas, oleaginosas e sementes, cereais integrais. Uma nova vida que ganhou expressão também no digital, no blogue “Cocoon Cooks”, espaço de receitas e viagens.
Sete anos volvidos, o casal entrega-nos não só o seu segundo livro, “Vegan para a família” (edição IN), como também uma mensagem de amadurecimento das suas escolhas e de amor familiar. Um livro a três, onde não falta o filhote Simão, o “salta-pocinhas”, como carinhosamente o apelidam os pais. André e Rita não se escusam a afirmar que, para lá dos capítulos do seu livro, há um outro que preenche as suas vidas: o filho.
Obra que conta com palavras de introdução da nutricionista Sandra Gomes Silva: “uma alimentação e nutrição adequadas são especialmente importantes para a saúde dos mais pequenos e não queremos que lhes falte nada. Este livro vem mostrar que comer vegetariano não tem de ser complicado e que toda a família pode, com pequenos ajustes, comer o mesmo”.
Palavras da nutricionista corroboradas pela dupla autora de “Vegan para a família”: “o Simão come bem e cresce saudável, tudo à base de alimentos vegetais”.
A Rita e o André percorreram um caminho rumo ao estilo de vida vegano. Querem contar-nos esta vossa história partilhada a dois, à qual não são alheios os livros?
A decisão de começarmos lentamente a transitar para uma dieta vegana, e mais tarde, para um estilo de vida vegano, foi tomada a dois enquanto vivíamos uma situação de doença na família. Um familiar muito próximo batalhava contra um cancro do estômago e nós sentimo-nos na necessidade de compreender melhor os fatores que contribuem para o aparecimento de um cancro daquela natureza. Portanto, o que motivou esta mudança tão significativa na nossa vida foi a saúde.
Foi um caminho feito sobre bases sólidas de informação. O que pesquisaram e em que evidências se basearam?
Sem dúvida. Começámos por ler o “Anti Cancro”, de David Servan- Schreiber, e continuámos na descoberta com a leitura do “The China Study: The Most Comprehensive Study Of Nutrition Ever Conducted And The Startling Implications For Diet, Weight Loss, And Long-Term Health.”, de T. Colin Campbell. Estes dois livros foram absolutamente fundamentais para criar as bases sólidas para uma alimentação vegana saudável e consciente.
Reconquistámos a nossa confiança na cozinha e começámos a criar pratos e a recriar os pratos de que sempre gostámos, agora com ingredientes 100% vegetais.
Da teoria à prática, e no que toca à alimentação, foi um percurso natural reinventarem a vossa mesa?
Embora agora pratiquemos este estilo de vida de forma totalmente natural e intuitiva, no início foi tudo menos isso. De repente, deixámos de saber fazer compras, deixámos de saber o que cozinhar diariamente. E, por isso, recorremos muito a blogues de receitas, apps e livros de receitas. Rapidamente reconquistámos a nossa confiança na cozinha e começámos a criar pratos e a recriar os pratos de que sempre gostámos, agora com ingredientes 100% vegetais.
O que mudou na vossa vida?
Foi uma transição gradual que nos permitiu reparar em todas as alterações no nosso bem-estar e identificar exatamente o que havia provocado cada uma delas. A cada alimento de origem animal que ficava fora dos nossos pratos, sentiamo-nos melhor, com digestões mais fáceis e rápidas, mais energia, pele mais limpa. Ao longo do ano que se seguiu, fomos eliminando a carne, peixe, ovos e laticínios, sem nunca estabelecer metas nem prazos, até chegarmos à alimentação que praticamos ainda hoje, sete anos depois.
Abrem o vosso novo livro com o desejo de desmistificar ideias feitas como a de que precisamos de beber leite de vaca. Estamos a receber as informações nutricionais das fontes erradas ou “filtramos” aquilo que nos interessa escutar?
Achamos que é um pouco de ambos. Existem fontes a transmitir informações erradas propositadamente de maneira a atingir um objetivo comercial, outras fontes bem-intencionadas a transmitir informações erradas por falta de atualização e, muitas vezes, as informações certas são-nos entregues, mas não as aceitamos como tal porque não nos é conveniente, ou porque aceitá-las obrigar-nos-ia, moralmente, a fazer mudanças nas nossas vidas para as quais ainda não estamos preparados. Por isso, é que achamos que não existe nada mais poderoso do que procurarmos informar-nos de forma o mais imparcial, mais objetiva possível.
Nada nos traz mais certezas e segurança de que estamos no caminho certo do que esse exercício de aprendizagem. Não é fácil, nesta era em que a (des)informação nos é entregue de forma tão instantânea e tão carregada de opiniões subjetivas. Por isso, conciliamos o que aprendemos com o que observamos nos nossos próprios corpos e no desenvolvimento do nosso filho, para concluir que a dieta vegana combina connosco na perfeição.
Imaginemos uma família como a vossa que não pratica o vegetarianismo ou veganismo. Por onde começar considerando a alimentação das crianças ou jovens?
O nosso conselho é que comecem por recriar as receitas de que mais gostam, em casa. É isso que ilustramos no nosso segundo livro, que inclui várias receitas populares entre os mais novos: almôndegas com molho de tomate, panados, empadas, massas com molhos gulosos.
Estas primeiras etapas ajudam a quebrar, desde logo, a ideia de que a comida vegetariana é sensaborona, aborrecida, ou composta apenas por vegetais. À medida que forem apurando os paladares dos vossos filhos, introduzam sabores e texturas novas.
Conciliamos o que aprendemos com o que observamos nos nossos próprios corpos e no desenvolvimento do nosso filho, para concluir que a dieta vegana combina connosco na perfeição.
Ao tomarem a decisão de serem pais e querendo que o vosso filho seguisse a vossa alimentação/estilo de vida, que fatores ponderaram? Visitaram especialistas em alimentação infantil ou outros?
Não visitámos nenhum especialista em alimentação infantil aquando dessa decisão, embora sejamos, todos, acompanhados por uma nutricionista especializada em dietas vegetarianas, porque estávamos muito seguros e certos de que as nossas escolhas são saudáveis. Uma dieta 100% vegetariana bem planeada é saudável e apropriada a qualquer fase da vida, incluindo a primeira infância. Dito isto, o nosso filho é acompanhado desde o nascimento por um pediatra muito bem informado, que não só está a par da nossa dieta como nos felicitou por praticá-la. Citando-o, sabe que não tem de se preocupar com o nosso filho como se preocupa com outras crianças, pois pratica uma dieta saudável que o deixará protegido contra doenças cardiovasculares e outras doenças crónicas.
Esta é uma questão que levanta alguma polémica: a alimentação vegetariana e vegana adequa-se a crianças de tenra idade? Podem exemplificar-nos essa adequação com o vosso dia a dia?
As dietas vegetarianas e veganas são perfeitamente saudáveis em qualquer idade, desde que bem planeadas, como qualquer outra dieta, aliás. No nosso dia a dia, esse planeamento manifesta-se sob a forma de muitas frutas, vegetais, leguminosas, oleaginosas e sementes, cereais integrais, entre outros. Para dar um exemplo mais concreto: comemos papas de aveia com iogurte de soja, fruta e sementes de linhaça, logo pela manhã; lanchamos um punhado de frutos secos e/ou fruta desidratada a meio da manhã; para almoço, a refeição costuma incluir algum tipo de cereal (arroz, massa, bulgur, quinoa), uma fonte de proteína (leguminosas, tofu, soja, tempeh, seitan), muitos vegetais frescos ou cozinhados num estufado/salteado/assado; o lanche da tarde pode ser um batido de fruta e ao jantar comemos uma sopa seguida de um prato como tofu mexido servido sobre torradas.
Na realidade, quando nos referimos a crianças veganas, será mais correto referir crianças que seguem uma alimentação vegana. Há diferenças, certo?
Há diferenças significativas. O veganismo é uma filosofia ou estilo de vida que engloba um conjunto de princípios e valores éticos e morais, que nos levam a optar conscientemente por não consumir alimentos de origem animal, não comprar artigos de vestuário com tecidos e fibras de origem animal, artigos de cosmética e higiene pessoal e do lar testados em animais, e também por não frequentar nem apoiar serviços que façam uso de animais como forma de entretenimento, como o circo ou o jardim zoológico.
Sobre o nosso filho Simão, com dois anos, dizemos que come vegano, mas não é vegano, pois não tem ainda consciência destes valores e do impacto das nossas escolhas. Se e quando, um dia, o Simão se identificar com o veganismo com intenção e conhecimento, ficaremos muito felizes. Até lá, continuará a alimentar-se exclusivamente de comidas 100% vegetais e faremos questão de lhe ensinar tudo sobre a origem dos alimentos. Chegará o dia em que lhe explicaremos a razão pela qual não comemos animais, e acreditamos que quererá manter-se neste caminho.
Todas as crianças gostam de animais e querem salvaguardá-los, e é por isso que tantas narrativas infantis têm uma mensagem inerentemente vegana, embora não o admitam: “À procura de Nemo” (os peixes devem viver no mar e não num aquário), “Um porquinho chamado Babe” (não queremos comer o porquinho protagonista), “101 dálmatas” (matar animais para utilizar a sua pele/pelo é errado) e por aí fora.
Praticam com o pequeno Simão o método Baby Led Weaning (BLW). Querem pormenorizar para leitores menos familiarizados com o método?
Com todo o gosto. O Baby Led Weaning traduz-se literalmente para “desmame conduzido pelo bebé” embora, na prática, seja um “percurso de introdução alimentar guiado pelo bebé”, sem particular preocupação pelo desmame em si. Neste método, são servidos ao bebé os alimentos sólidos, confecionados e cortados em formas e com consistências apropriadas, desde que este apresente todos os sinais de prontidão para iniciar esta jornada (por volta dos seis meses). O BLW faz do bebé um sujeito ativo, torna a refeição num momento de aprendizagem e brincadeira sensorial e tem vários benefícios para toda a família. Para o bebé, é a promoção da sua autonomia e de uma relação saudável com a comida desde tenra idade, e para os pais, a possibilidade de toda a família desfrutar da hora da refeição em simultâneo, sem ter de preparar duas comidas [uma para os adultos e uma para o bebé]. Falamos em maior detalhe sobre as particularidades do BLW e sobre a nossa experiência pessoal num capítulo dedicado a este tema no livro “Vegan para a família”, e todas as receitas do livro refletem também esta realidade.
O veganismo é uma filosofia ou estilo de vida que engloba um conjunto de princípios e valores éticos e morais.
Na vossa casa não existe a alimentação dos adultos e da criança. Como é a reação do Simão face à exploração de novos alimentos?
O Simão foi um ávido comedor logo a partir dos cinco meses e meio, muito aventureiro com novos alimentos e sabores e sem receios de experimentar coisas novas. Ao sete meses já comia com muito gosto comidas que não são tipicamente servidas a bebés, como estufados bem condimentados (como um caril, por exemplo), esparregado com alho, crepes de grão com pasta de sésamo, entre outros.
Entretanto, aos dois anos, vivemos uma nova fase: a anorexia fisiológica, perfeitamente natural e expectável nesta idade. É uma inexplicável falta de apetite e de interesse pela comida que, na realidade, nada tem a ver com preferências alimentares, mas sim com o ritmo de crescimento e com a asserção da sua personalidade e vontades. Confiamos que o mais importante está garantido e as bases para uma relação saudável com a comida foram dadas. Nós continuamos diariamente a servir e a disponibilizar uma variedade de comidas saudáveis e saborosas, e o apetite voraz que ele antes tinha há de regressar.
O vosso novo livro nasce de uma realidade diferente face ao primeiro. Aqui o Simão tem um papel importante. As muitas receitas que encontramos na obra são a vossa mesa do dia a dia? Como chegaram à seleção que nos apresentam?
Esta seleção foi sofrendo alterações ao longo do decorrer de um ano inteiro. O nosso segundo livro foi um projeto demorado e isso permitiu certezas em relação à seleção final de receitas, que corresponde exatamente ao que costumamos comer em casa, enquanto família. Estão incluídas receitas que preparamos desde os seis meses de idade do Simão, como o Dahl de lentilhas, o Risotto de abóbora-manteiga e as Papas de aveia. Com exceção das sobremesas, que não fazemos com especial regularidade, podemos dizer que todas as receitas do livro fazem parte da nossa rotação mensal.
A página onde divulgam o vosso projeto chama-se “Cocoon Cooks”. Há uma explicação em torno da palavra Cocoon e que sintetiza a vossa forma de estar. Querem partilhar connosco?
A palavra Cocoon é muito especial para a Rita, pois era a palavra de que a sua mãe costumava fazer uso para descrever os dias de ficar por casa, de resguardo, de mimo. Neste novo contexto que lhe demos, representa isso e muito mais, representa também a transformação, o crescimento, a aprendizagem.
Finalmente, tendo de preparar uma refeição especial, plena de amor, para o vosso filhote, que pratos escolheriam?
Todas as refeições são preparadas com muito amor, mas, imaginando a refeição que faria as delícias do Simão, optaríamos pelos Crepes de grão-de-bico com esparregado, os Croquetes de quinoa e couve-kale e as Batatas “assadas” na frigideira. Estão entre as coisas que ele mais gosta de comer.
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