Na imagem que escolheu para fazer capa do seu livro, “O bebé sabe comer” (edição Chá das Cinco), Marília Pereira, enfermeira especialista em saúde materna e obstetrícia, apresenta-nos um bebé que é expressão da alegria. Come e tem controlo sobre como o faz. Contudo, a imagem assustará alguns pais. A comida do bebé não nos aparece “arrumada” no prato. Povoa o rosto, peito e cabelo da criança. Este bebé está a experimentar, a trilhar um novo território na sua vida, o da alimentação complementar, a partir dos seis meses. Novos alimentos, texturas, sabores e reações. E fá-lo de acordo com uma abordagem designada Baby-Led Weaning.
Marília Pereira, formadora de conselheiros em aleitamento materno pela UNICEF, fala ao SAPO Lifestyle sobre uma forma de estar à mesa para o bebé que extrapola a dimensão alimentar. É um processo de educação e de encontro de toda a família, em que os bebés participam, desde o início, na introdução da alimentação complementar. Sentam-se à mesa com os pais, avós ou outros cuidadores e partilham o mesmo espaço, o mesmo tempo e a mesma refeição, com menos margem para a monotonia e carências nutricionais.
Uma abordagem que não faz do “agora vou despachar o bebé para depois comermos nós”, antes torna a hora da refeição num momento de convívio e comunicação.
Sobre o Baby-Led Weaning e o livro que lhe dedica diz-nos Marília, mãe de duas meninas, a Inês e a Sara, e promotora do projeto “O Bebé Sabe”: “Esta não é a única verdade, a única via, antes uma ferramenta de reflexão para as famílias e profissionais de saúde, mesmo que não a queiram levar a 100%. Que contribua de alguma forma para refeições tranquilas, para tirar este peso de cima dos ombros dos pais, para facilitar a parentalidade e em concreto esta fase de introdução da alimentação complementar dos nossos filhos”.
A Marília usa uma expressão a abrir o seu livro que nos dá mote para percebermos aquilo que tem sido a sua atividade nos últimos anos. "A enfermeira virou cozinheira". Como é que isso acontece?
Normalmente nos meus cursos presenciais de Baby-Led Weaning (BLW) preparamos uma refeição com os pais e, no final, sentamo-nos todos à mesa a almoçar. Os bebés que já estão prontos para uma alimentação complementar acabam por participar. Por isso sinto-me nesse outro papel, de cozinheira, para além de ser enfermeira.
No fundo, ao reunir pais e filhos à mesma mesa, está a sugerir refeições que agradem simultaneamente a todos, aos adultos e que também levem os mais pequenos a gostarem de comer...
Exatamente, porque acho que ainda prevalece a ideia de que a comida para o bebé deve ser uma comida sem sabor. Na realidade, acho que às vezes esquecemo-nos de que os bebés são pessoas, com sentido do paladar, assim como as suas preferências alimentares. Aquilo que acontece com alguma frequência é os pais abrirem o frigorífico, verificarem que legumes aí têm, levam à panela, cozem, trituram e já têm a sopa do bebé para a semana. Na realidade, se isto funcionasse assim era muito simples. Acontece que, depois, o bebé talvez não goste tanto assim daquela sopa.
E, provavelmente, com isto está a porta aberta para refeições complicadas, com a colher a servir de ´aviãozinho`, ou o tablet, para distrair a criança…
Sim, para distrair o bebé, para o forçar a comer a quantidade que nós, adultos, estipulámos que seria adequada para ele.
O BLW é uma forma de estar relativamente à refeição, assente em três grandes pilares: o respeito, a confiança, a autonomia do bebé.
Marília, o seu livro “O bebé sabe comer” tem como mote o Baby-Led Weaning. Quer fazer-nos uma apresentação desta abordagem?
O BLW é uma abordagem de introdução da alimentação complementar a partir dos seis meses do bebé. Baby-Led significa guiado pelo bebé, Weaning, significa desmame. Na prática, o bebé dá-nos sinais de que está preparado para adicionar à sua alimentação novos alimentos, para além do leite materno ou equivalente.
Agora repare, muitas vezes escutamos que o BLW “é aquela abordagem em que damos comida logo aos pedaços ao bebé”. O que digo sempre, face ao exposto, é que esse é o meio que temos para atingir o fim. É a forma que temos de apresentar os alimentos, para que o bebé também consiga participar. É muito mais do que falarmos de alimentação e disponibilizarmos alimentos em pedaços. O BLW é uma forma de estar relativamente à refeição, assente em três grandes pilares: o respeito, a confiança, a autonomia do bebé. Isto permite-nos ter esta outra visão sobre as refeições em que a ingestão de alimentos é o que menos importa. A imagem que usei para a capa do meu livro, com um bebé que se suja enquanto come, faz expressão do que acabei de dizer. Porque algum esparguete há de ter sido ingerido, mas também houve a exploração dos alimentos, logo com a intenção de os levar à boca e comer.
Numa fase inicial o bebé não tem essa noção, para ele a fome que sente é saciada com o leite. Depois, vai percebendo que aqueles “brinquedos” também servem para comer, para se alimentar e saciar a fome.
É um processo que nos exige muita paciência.
O BLW também tem a ver com uma questão de controlo, ou seja, nós estamos a passar o controlo da mão dos pais para a mão do bebé. Isto não assustará um bocadinho os pais?
Assusta, mas, na verdade, não perdem autonomia. Esse controlo começa logo quando o bebé nasce e muitas dificuldades associadas à amamentação surgem precisamente por isso, porque a mama não é transparente. E surgem pensamentos como este: “não sei o que o bebé está a comer, não estou a produzir leite suficiente e o meu bebé se calhar tem forme. O biberão é mais ´fácil` porque consigo ver que estou a administrar x mililitros e o bebé ingere y”.
Há dias, estava a acompanhar uma mãe na problemática da amamentação e dos suplementos e dizia-lhe: "olhe não quer controlar a vida dos seus filhos, espero eu, para sempre?". Nestas fases iniciais de alguma forma conseguimos esse controlo e refiro a questão no livro. Imagine, por exemplo, que quero controlar o momento em que o meu bebé começa a andar, por exemplo aos oito meses. Porquê? Porque quero que o meu bebé seja o mais precoce no grupo de amigos. E entra a competição. Claro que mesmo que queira que o meu bebé ande aos oito meses, treinando-o, não vou conseguir. Só vai andar quando efetivamente estiver preparado, quando tiver o desenvolvimento cognitivo e motor que lhe permita fazer isso.
Já com a alimentação consigo de alguma forma contornar isso e consigo levar o bebé a comer antes de ele estar preparado, através dos alimentos passados, triturados ou comidos à colher. Se esquecer isso, se for observando o meu bebé e partilhando alimentos com ele, à medida que está preparado, vai começar a comer e irá participar.
Recomendo aos pais que tirem alimentos dos próprios pratos e os disponibilizem no tabuleiro do bebé, deixando-o explorar.
Esta questão também entra no campo da ansiedade. Não nos preocupamos se o bebé come muito, antes se estará a comer pouco. Ao deixarmos ao bebé margem para escolher o que tem à mesa, no prato, ou no tabuleiro, será que ele vai comer menos?
Não. Muitas vezes temos indicações de introdução da alimentação complementar com determinadas quantidades e depois, lá está, há bebés que vão ingerir determinada quantidade, outros que vão pedir mais e outros que vão precisar de menos. Em primeiro lugar temos de gerir essas expectativas entre aquilo que julgo ser adequado e, na realidade, quais são as necessidades do bebé. Somos nós que decidimos. Tento muito sensibilizar os pais para o seguinte: não coloquem a comida que acham que o bebé vai precisar, porque ele vai ficar baralhado e atirará tudo para o chão. Recomendo aos pais que tirem alimentos dos próprios pratos e os disponibilizem no tabuleiro do bebé, deixando-o explorar. Traz vantagens: por um lado, vamos fazer com que o bebé tenha uma refeição equilibrada e não corra o risco de estar, por exemplo, a ingerir apenas frutas e legumes. Isso sim, poderá levar a que o bebé não esteja a comer tudo o que necessita em termos nutricionais.
Ao partilhar a minha refeição vou dar uma refeição muito mais equilibrada ao bebé e, por outro lado, como vou tirando do meu prato, não perco a noção da quantidade de comida que já dei ao bebé.
Porque tendemos a atrasar a introdução dos sólidos na alimentação?
Julgo que, como referi, se relaciona com a questão do controlo e também é espelho da sociedade. Atualmente há muito imediatismo e aquela facilidade aparente de que se se fizer a tal sopinha passada e servida com colher está o assunto arrumado. Observo crianças com dois, três, quatro, cinco anos que ainda não comem as refeições da família, antes tudo passado. E, às tantas, já estão fartos.
Podem estar envolvidas questões de crescimento da criança, não apenas no aspeto físico, mas também cognitivo?
Sim, nas componentes físicas, na mastigação, na fala e até na cognição. Iria mais longe e pergunto-me que adultos vão ser estes que tiveram esta fase inicial da vida toda tão controlada, que não foram respeitados, não se sentiram alvo de confiança? Não só que tipo de relação estes adolescentes e adultos vão ter com a comida, mas até com quem os rodeia. Podemos entrar aqui por caminhos perigosos.
Há vantagem em dar esta escolha ao bebé, mas terá de ser uma escolha que seja diversa, equilibrada e que não ponha a criança em contacto prematuramente com o fast food. Concorda?
Exatamente. Por vezes temos o reverso da medalha. Baby-Led Weaning sim, partilhar as refeições com a família, mas refeições saudáveis, equilibradas, variadas. Não estamos a falar de anarquia à mesa, temos de ter aqui algum cuidado, porque há determinados alimentos que não nos fazem bem. Isso também pode ser um dos motivos para as famílias atrasarem alinhar a alimentação do bebé com a dos adultos.
O BLW é um bom programa para levar as famílias a uma melhor alimentação?
Sem dúvida. Ganhamos todos mais saúde e pensamos melhor a própria alimentação da família. Mais uma vez reforço, não têm de ser refeições sem sabor e monótonas. Não sobrecarrego os alimentos de sal, mas posso juntar-lhes ervas aromáticas e especiarias com conta, peso e medida.
A indústria alimentar não gostará que diga aos pais: ´fujam dos produtos que dizem que são específicos para bebé porque normalmente estão carregados de açúcar`.
Numa passagem do livro, refere que o BLW propicia crianças menos obesas. Presumo que se refira aos hábitos alimentares mais equilibrados de que falámos?
Sim, sem dúvida. A questão da obesidade tem a ver com a autorregulação, com a criança que se está a alimentar sozinha. Quando está saciada, já não vai comer mais. A criança que é alimentada pelo adulto, quando já não quer comer mais, tem-no a distraí-la, com as tais “macacadas”. Vai "obrigá-la" a comer mais do que a necessidade que a criança apresenta. A obesidade também poderá estar relacionada com as tais escolhas alimentares da família, não as ajustando quando a criança participa nas refeições em grupo.
Será que há uma certa indústria alimentar para bebés que não gosta do BLW?
[Risos] Digo sempre aos pais: “quando lerem algum rótulo que afirme ´a partir dos oito meses`, ou desta ou daquela idade, não liguem a isso”. A indústria alimentar também não gostará que diga aos pais: “fujam dos produtos que dizem que são específicos para bebé porque normalmente estão carregados de açúcar”.
No caso específico dos iogurtes, recomendo naturais não açucarados. Os iogurtes para bebés, esses não os recomendo de todo.
Sublinhe-se que a indústria alimentar infantil está cada vez mais preocupada com estas questões. Já conseguimos encontrar papas industrializadas sem adição de açúcar.
Temos de voltar ao básico, a alimentos verdadeiros para todos.
Os profissionais de saúde têm mostrado alguma resistência ao BLW?
Sim. Há aqui motivos que são comuns, quer à família, quer aos profissionais. Mas também devo dizer que há cada vez mais profissionais de saúde interessados nesta abordagem. Ainda há dias uma colega pediu-me para ir ao centro de saúde onde ela trabalha para dar alguma informação aos colegas enfermeiros e médicos.
Quando uma família fala em BLW com o seu médico assistente, o médico de família, ou pediatra, acho que a principal resistência se prende com o desconhecimento. E daí nasce a resistência. Porque não vou saber como lidar com ´aquilo`. Como defesa, digo que não é bom, e continuo a minha abordagem de sempre.
Uma das questões que surge muito, quer nas famílias, quer nos profissionais, é a do engasgamento, o que só mostra, mais uma vez, algum desconhecimento.
Porquê?
O engasgamento é um tema muito importante e que tem de estar sempre em cima da mesa. No BLW temos de cumprir regras de segurança. Para já em relação ao engasgamento, ele pode acontecer em qualquer fase da vida e com qualquer consistência de alimentos, não é uma problemática que se prenda exclusivamente como a introdução da alimentação complementar.
No BLW não vamos pôr alimentos sólidos na boca do bebé, vamos disponibilizá-los frente ao bebé que tem de estar 100% no controlo. Isto faz com que aquele bebé que ainda tem o reflexo de extrusão da língua, que ainda não está pronto para estes alimentos, não vai conseguir pô-los na boca. Se eu vou tentar pôr na boca esses alimentos, aí sim aumento o engasgamento.
Esta questão do engasgamento e dos sólidos não está relacionada com o BLW, as pessoas é que levam o tema para aí. Normalmente, o bebé faz seis meses e começa a introdução alimentar. Os pais e avós estão desejosos de oferecerem algo sólido à criança e dão-lhe uma côdea de pão. Esta, pode aumentar o risco de engasgamento e é isso que vai acontecer muitas vezes. O bebé terá reflexo de vómito, o que assusta. E somos levados a pensar: “se dei a côdea de pão e se o bebé se engasgou como é que agora lhe vou dar os outros alimentos’”. O que terei de fazer é escolher alimentos com formatos e consistências adequadas à idade do bebé.
No BLW não vamos pôr alimentos sólidos na boca do bebé, vamos disponibilizá-los frente ao bebé que tem de estar 100% no controlo.
Há uma altura em que damos os filhos ao mundo, para os infantários, amas. Uma realidade que extrapolará o nosso controlo doméstico. É possível nestes contextos manter o BLW?
É uma limitação. A partir do momento em que deixamos de estar com o bebé e temos de o levar para os infantários, avós, a ama, podemos já não conseguir manter estar abordagem, mas depende também de que com que idade é que o bebé vai. No livro apresento caminhos para cada família ver consoante a idade e contextos. Com os avós surgem expressões curiosas: "ah, mas filha eu já fazia isto contigo, quando eras bebé também te oferecíamos o arroz" e começam a contar essas histórias.
Mesmo em relação aos infantários e creches, costumo sempre dizer que não os vejam como algo que vai dificultar. Os infantários são promotores de autonomia das crianças. Provavelmente não vão conseguir introduzir o BLW aos seis meses. Tenho muito relatos a esse propósito: "responderam-me no infantário que não temos pessoal suficiente". Aí digo: "o que dá mais trabalho, a educadora e auxiliar estarem a alimentar à colher uma criança de cada vez, ou pôr as crianças todas sentadinhas e disponibilizar-lhes os alimentos?”. É importante a educadora e a auxiliar estarem a almoçar nessa altura.
Por vezes, basta olharmos para a realidade com outros olhos. Mas somos animais de hábitos e mudar comportamentos não é fácil.
No seu livro também nos apresenta receitas para toda a família. Há inclusivamente um guacamole…
Não sou nutricionista, nem profissional de cozinha, mas muitas vezes procuram-me para aconselhar livros de receitas. Estão à espera que recomende um livro de receitas para os seis meses de idade. Mas não o faço [risos]. O que há a fazer é partir de receitas comuns e adaptá-las. Quis, com o meu livro, dar a perspetiva do que podemos fazer no que toca a comida e apresento um plano semanal de pequeno-almoço, almoço e jantar.
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