«Recordar o lugar que o trabalho atribui a cada um de nós dentro da colmeia humana» talvez nunca tenha sido tão importante como agora.

E foi precisamente este o objetivo de Alain de Botton ao escrever «Alegrias e Tristezas do Trabalho», o reflexo de uma jornada em que entrevistou, observou e acompanhou de perto trabalhadores de um leque eclético de dez indústrias.

Defensor de uma teoria de sucesso mais gentil, o autor identifica as crenças dominantes sobre o trabalho e as suas origens e desmonta o impacto que podem ter no nosso bem-estar, evocando ao mesmo tempo a beleza de um quotidiano que, de tão habitual, escapa normalmente ao nosso olhar.

O que têm em comum um cientista, um fabricante de biscoitos, um contabilista e um pintor?


São todas atividades que não reconhecemos o suficiente. O trabalho raramente é representado na arte. Se um marciano aterrasse hoje na terra e tentasse perceber o que os humanos fazem, apenas lendo a literatura publicada, ficaria com
a extraordinária impressão de que todas
as pessoas passam o tempo a apaixonar-se, a ter disputas com a família e, ocasionalmente, a matar-se umas às outras. Quis escrever um livro que abrisse os nossos olhos para a beleza, complexidade, banalidade e horror ocasional do mundo do trabalho.

Quais são as principais fontes de sofrimento no local de trabalho?


A grande promessa do mundo moderno foi a de que poderíamos dedicar menos tempo ao trabalho, mas o oposto parece ter acontecido. A vida hoje não é menos povoada de perigos do que era em tempos de grande pobreza, estamos rodeados de riscos sem precedentes. A competitividade do mercado aberto força toda a gente a correr mais depressa ou arriscar
a extinção. O resultado é maior riqueza, combinada com mais medo. E uma sensação de se ter sido enganado ao chegar à terra prometida.

A crise agrava esse sentimento?


Nos últimos 20 anos assistimos a uma tentativa crescente, por parte dos gestores, de sugerirem que o trabalho é divertido e o empregador é da família mas, durante a história humana, o único instrumento necessário para levar os trabalhadores a cumprir os seus deveres de forma enérgica e hábil foi o chicote.

Com a emergência de tarefas cuja execução requeria que eles estivessem satisfeitos, as regras do emprego tiveram que mudar. Com a crise económica, o poder é de novo mais óbvio. A recessão revela que o trabalho é difícil e, se o empregador é como um pai, é do tipo duro e que não perdoa.

A especialização retira significado
ao que fazemos?


A especialização gera mais lucros, mas
o especialista tem maior probabilidade
de perder de vista o significado da tarefa que faz. A expectativa com que me confrontei na pesquisa foi a de se ser dono de uma pequena loja, hotel ou empresa, qualquer coisa que ainda tenha a escala humana pela qual ansiamos. Depois, muita da satisfação no trabalho depende das nossas expectativas. Em tempos de recessão, a visão que encara o sentido
do trabalho como primordialmente financeiro, está a renascer. Cada vez mais se ouve a expressão «não é perfeito, mas pelo menos é um emprego».

Quais as alegrias do trabalho que tendemos a esquecer?


Uma das ideias mais consoladoras que descobri foi o quão rara e historicamente ambiciosa é a ideia de que o trabalho deve trazer-nos felicidade, a expectativa generalizada de que ele seja o centro das nossas vidas e realização.
Hoje levamos para o trabalho um grau historicamente extraordinário de esperança e otimismo. Quando ele não corre bem, é útil lembrarmo-nos de que as nossas identidades vão muito para além daquilo que fazemos, que éramos pessoas muito antes de sermos trabalhadores e continuaremos a sê-lo depois de pousarmos as ferramentas. Precisamos de distinguir o nosso sentido de valorização daquilo que fazemos.


Veja na página seguinte: Pode o trabalho substituir o amor?

Diz que o amor e o trabalho são as duas grandes fontes de sentido da vida. Esta ideia alimenta grandes expetativas?

Claro, as expectativas são tanto um sinal positivo. Estamos a recusar-nos a ser miseráveis, como uma fonte de sofrimento. Perguntamo-nos por que é que as nossas vidas não são melhores.

Estar vivo na era moderna significa nunca estar longe de uma crise de carreira ou emocional, isto é, não estar longe de questionar os nossos valores e propósitos.

O cair da noite de domingo é uma altura especialmente apropriada para nos afundarmos em reflexões sobre o que podia ter sido, no amor e no trabalho.

O trabalho pode substituir o amor
ou vice-versa?


Sim, acredito que ambos se podem compensar mutuamente. É raro encontrarmos alguém bem sucedido tanto no amor como no trabalho. Se o teu trabalho corre bem, é improvável que invistas muito no amor. E se a tua vida amorosa corre bem, não há grande sentido em trabalhar arduamente. O que tens ainda a provar se já és amado?

É realista não escolher um emprego com base no ordenado?


Sim, num mundo onde é difícil ganhar dinheiro onde quer que se esteja na sociedade, faz sentido procurar-se um trabalho de que se goste. Uma peculiaridade do mundo moderno é que muitos empregos lucrativos são relativamente baixos em significado. Os grandes lucros são feitos a trocar matérias-primas, a produzir sabonete em massa ou a montar call centres que processam formulários de seguros.

Que regras podemos seguir para nos sentirmos realizados?


Uma das mais-valias da crise é permitir-nos baixar as nossas expectativas quanto ao que o trabalho pode permitir. Algumas das grandes questões existenciais desaparecem. Ter simplesmente um trabalho comum e sobreviver parece ser uma recompensa suficiente. Nestes tempos conturbados, devemos talvez temperar a nossa tristeza, lembrando-nos que
o trabalho é muitas vezes mais suportável quando, a somar ao dinheiro, não esperamos que nos traga sempre felicidade.
O trabalho pode ser uma fonte de satisfação e reconhecimento mesmo que nem sempre tenha que ser tudo nas nossas vidas.

Qualquer pessoa pode fazer o que quiser com a sua vida?


Não, claro que não. Todos temos limitações muito fortes. Biológicas, sociais, culturais, políticas... A ideia não é tentar fazer qualquer coisa, mas focar-se nuns quantos talentos que tenha e tentar ganhar a vida de forma relativamente confortável a partir daí.

Hoje é tão improvável tornarmo-nos ricos e poderosos como Bill Gates como, no século XVII, o era em relação a Luís XIV de França. O problema é que não sentimos que seja improvável, o que torna o falhanço mais difícil de contemplar. Falhar numa terra de plenitude é infinitamente mais vergonhoso do que numa sociedade corrupta e baseada num sistema de castas.

Por que contrapõe o conceito de meritrocacia?


A grande crueldade por detrás dessa ideia é imaginar que algum dia seremos capazes de hierarquizar toda a gente segundo a sua bondade e recompensá-la de acordo com isso, sendo os ricos os melhores e os pobres os piores. Se genuinamente acreditarmos que os bem sucedidos merecem o sucesso, temos que acreditar que os restantes merecem o fracasso. Numa era meritocrática, o estatuto baixo torna-se não apenas lamentável, mas também merecido. Os ricos não têm apenas mais posses. Podem também ser considerados melhores.

Que alternativa propõe?


Um caminho mais sensato poderá ser inspirarmo-nos na ideia tradicional-mente cristã de que o mérito dos outros é tão difícil de avaliar que só Deus está à altura dessa tarefa, uma visão útil para corrigir a visão de que basta olharmos para o currículo de alguém e julgar o quão boa essa pessoa é.
Não quero dizer que o mérito está igualmente repartido ou que, teoricamente, seja impossível de medir, mas insisto que, em termos práticos, é improvável que qualquer um de nós saiba fazê-lo bem, pelo que deve ter infinitos cuidados antes de pensar ou agir presumindo que é.


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O perfil de Alain de Botton

Nasceu em Zurique, na Suíça, em 1969 e hoje vive em Londres. O seu primeiro livro, «Essays in Love», foi publicado quando tinha 23 anos.

Além do amor, já escreveu sobre trabalho, viagens, arquitetura, literatura e filosofia, sempre num tom ensaístico que fez com que a sua escrita fosse apelidada de «filosofia do quotidiano».

Em 2008, fundou na capital inglesa The School of Life, uma escola com cursos curiosos.

Os temas vão desde «a morte», «o casamento», «a ambição» ou «escolher uma carreira» a «educar uma criança» e «mudar o mundo». «Ensaios de Amor», «O Consolo da Filosofia», «A Arte de Viajar», «Como Proust pode Mudar a Sua Vida», «Alegrias e Tristezas do Trabalho» e «Uma Semana no Aeroporto» (Dom Quixote) são os livros editados em Portugal.

Texto: Rita Miguel com Alain de Botton (escritor e fundador da The School of Life)