Lançada numa aventura literária que começou, em julho de 2012, com o livro-reportagem "Para Onde Vai o Nosso Dinheiro", esta conhece agora uma nova etapa, com o primeiro romance, "Ambição", nas livrarias desde janeiro deste ano. Lurdes Feio é viciada na escrita e tem duas filhas (Bárbara e Catarina) e dois netos (Dinis e Beatriz).

Que livro é este?

Gosto de dizer que se trata de um simples romance, de uma história de amor e de traição com uma vertente policial, porque foi sobretudo com esse objetivo que o escrevi. Mas tenho de reconhecer que o livro é bastante mais do que isso. Ele é, também, uma espécie de balanço do que foi a experiência da minha vida como jornalista política. A propósito de uma história de relações humanas, desvendei muito do que observei nos bastidores do poder, os mecanismos da política por dentro, os jogos de influência e intriga, a corrupção e a falta de transparência, a luta sem tréguas e pouco escrupulosa pela tomada do poder, nos gabinetes governamentais e nas oposições.

Tinha a ambição de escrever um romance?

Há vários anos que desejava escrever um romance. Era um desafio para mim própria. Até porque tinha necessidade de passar para o papel muitas ideias e emoções que nunca consegui transmitir enquanto jornalista. Encerrado o capítulo do jornalismo, que monopolizou por completo o meu tempo e energia ao longo de três décadas, senti que chegara o momento de testar-me como romancista. Sem fazer a mínima ideia se ia dar certo. Foi uma aventura sem rede. Até agora, parece que não me saí muito mal... As reacções de leitores que me chegam pelas mais diversas formas, incluindo o Facebook, têm sido excelentes. É estimulante.

Qual foi a sua inspiração para este livro?

A experiência que vivi no jornalismo político não me forneceu assunto apenas pela parte dos políticos. Também me fez pensar muito sobre as relações entre o jornalismo e a política. E não posso escamotear o facto de ter deparado com comportamentos criticáveis em ambos os lados. Por isso, as relações entre o jornalismo e o poder também estão presentes neste romance. Ao longo da minha carreira, fiz muitos e bons amigos entre os políticos. Gente que aprendi a respeitar e que me respeitou. Cultivei uma relação de cordialidade com todos, sem nunca perder de vista que os nossos papéis eram muitas vezes contrários. A cumplicidade entre ambas as partes tinha uma fronteira muito bem definida. E a colaboração mútua não podia significar falta de isenção, deslealdade ou oportunismo da minha parte, ou desrespeito, aproveitamento indevido ou tentativa de manipulação da parte deles.

Não se podem quebrar as regras…

Assim que estas regras fossem quebradas, estava tudo estragado. Creio que este espírito está bem visível no romance. Numa vertente mais humana, e apesar de este meu livro parecer "masculino" por ter uma forte vertente política, procurei dar o palco principal à mulher. A mulher dona de casa e mãe de família, a mulher profissional e independente, a mulher amante, a mulher namorada, a mulher casada ou divorciada, em suma, a figura da mulher povoa toda a história, nas mais diversas facetas.

“Ambição” é o seu segundo livro. E o anterior?

O primeiro, "Para Onde Vai o Nosso Dinheiro", foi lançado em julho de 2012 e era mais uma reportagem publicada em livro. Não tinha pretensões literárias, era sobretudo um testemunho na primeira pessoa de dois anos de colaboração com um organismo da Administração Pública. Era um livro-denúncia dos vícios que fazem com que o aparelho do Estado seja, ainda hoje, tão pesado, caro, ineficaz e, em muitos casos, infelizmente corrupto. Escrevi aquele alerta numa tentativa, assumida no texto, de despertar consciências e estimular novos comportamentos. Gostaria imenso de poder dizer, hoje, que aquele meu livro está desactualizado. Mas não posso. E isso é muito triste.

Quando escreveu este romance sentiu-se também jornalista?

Acho que, por mais romances que venha a escrever, e espero ainda ter tempo e capacidade para escrever mais alguns, nunca deixarei de me sentir jornalista. Costumo dizer que o jornalista é como o médico, mesmo que esteja fora do ativo, de férias ou entretido com outra coisa qualquer, nunca deixará de ser jornalista... ou médico! Eu jamais conseguirei escrever sem deixar nesse escrito a marca da jornalista que sou. No estilo e na temática, acho.

A crítica e denúncia do sistema é da jornalista?

Tem graça, eu acho que essa é uma verdade com dois lados. Porque a jornalista que eu sou assume-se como crítica do sistema, mas quando percebi que queria ser jornalista ainda era estudante do secundário, e achei que, além de me permitir ganhar a vida a escrever, o jornalismo me iria ajudar a mudar o mundo. Nessa época, lutei contra os preconceitos da família, que achava o jornalismo uma profissão de homens. Mas eu já achava que ser jornalista era quase uma missão de vida.

É disciplinada a escrever? Escreve todos os dias?

Sou a pessoa mais indisciplinada do mundo a escrever. Não tenho horários, nem cenários ideais. Acontece-me estar vários dias seguidos sem produzir uma única ideia ou palavra de jeito. Quando tento, acabo por deitar fora o resultado, não vale a pena forçar. E depois, sem que eu perceba porquê, tenho picos de inspiração que me deixam agarrada à escrita durante dias seguidos, ao ponto de nem conseguir parar para comer e de até perder noites! Aliás, já me aconteceu várias vezes escrever a dormir. E acordo sobressaltada, a meio da noite, com uma urgência incontrolável de passar a escrito o que sonhei. Valeu-me a invenção do iPad! Desde que o comprei, a minha vida ficou bastante mais facilitada. Trago-o sempre comigo, para onde quer que vá. Até durmo com ele à cabeceira. Assim, quando me surge uma ideia, basta-me esticar o braço e pronto.

Já tem o próximo livro na cabeça?

Já. Aliás, tenho ideias para três livros e estou a escrever dois ao mesmo tempo. Sei que, um dia destes, irei pegar num deles e levá-lo até ao fim. Por enquanto, ainda não me decidi por qual. É cedo, depende de como evoluírem. Por mais que as histórias nasçam da nossa cabeça, a partir de certa altura, ganham vida própria e arrastam-nos com elas. E eu só tenho de me deixar ir.

Agora já não quer parar mais?

Devo estar para morrer no dia em que parar de escrever. Acho até que a vida perderia interesse, se não me fosse permitido escrever mais.

É o prazer pela escrita que a leva a escrever livros nesta fase da sua vida?

Sem dúvida. Nesse aspeto, sou uma afortunada. Além de ter preenchido a minha vida com uma atividade profissional que exerci com paixão, posso continuar depois de reformada! Não é uma sorte?

Quando não está a escrever como ocupa os tempos livres?

Tenho duas vidas, uma quando está frio e outra quando está calor! Detesto o Inverno, tirito de frio e sinto-me cinzenta e sem energia. Por isso, hiberno. Os meus tempos livres tornam-se monótonos e muito caseiros: escrevo, leio, vejo televisão (sobretudo, filmes e séries) e adoro cozinhar e receber em casa familiares e amigos! Raramente saio debaixo de chuva, e só as filhas e os netos me fazem enfrentar voluntariamente as intempéries! No bom tempo, fico outra, desabrocho! É a altura de calçar sapatilhas e ir para o paredão fazer caminhadas, desfrutar a praia, o sol e o mar, sair com os amigos. Adoro passear e respirar ar puro. Enfim, sou muito previsível e tenho hábitos simples.

O que lhe dá mais prazer na vida?

Escrever, apanhar sol e olhar o mar. Sou absolutamente dependente do sol e do mar. E também sinto um enorme prazer em poder acompanhar de perto as filhas e os netos. Sou piegas, coruja, mãe-galinha, tudo o que me quiserem chamar.

A mãe babada deu lugar à avó babada?

Não deu lugar, porque continuo a ser uma mãe babada. Acumulei o estado de avó babada!

Quais são os seus sonhos?

O meu principal sonho é ver as filhas e os netos saudáveis e felizes. E gostaria de poder viver eu própria mais alguns anos, com saúde física e mental, para poder acompanhá-los de forma ativa. Se mantiver a saúde, tudo o resto que vier será bónus. Considero-me uma pessoa feliz e positiva. E realizada. Consegui tanta coisa boa na vida, até vivi um grande amor!... Se mais vier, que seja bem-vindo!

O que lhe arranca uma gargalhada?

Ultimamente, existe pouca coisa que me arranque gargalhadas. O país vive deprimido... Mas o descaramento com que alguns responsáveis nos assaltam os bolsos e, em seguida, tentam convencer-nos de que éramos nós que tínhamos os bolsos rotos, dá-me alguma vontade de rir.

O que a comove até às lágrimas?

Ver lágrimas de sofrimento nos olhos de crianças e de idosos. Ambos deveriam ser poupados ao infortúnio dos maus-tratos, sejam eles físicos, económicos ou psicológicos.

Tem muitos amigos?

Tenho imensos conhecidos, mas relativamente poucos amigos. Apesar da vida profissional que tive, de constante convívio e viagens, sempre fui uma pessoa tímida e introvertida na vida privada. Observo muito e participo pouco. Quando me vejo num local com muita gente desconhecida, fico sem jeito e apetece-me fugir. Isso já levou alguns a julgarem-me antipática e convencida. Que hei-de fazer? Sou mesmo assim.

Está preocupada com o rumo do país?

Muito preocupada. Qualquer pessoa que tenha acesso a informação credível sabe que é falso que o país tenha saído, ou esteja em vias de sair da crise. A nossa economia já não era forte nem saudável, mas nestes últimos anos recuou décadas, está neste momento anémica e, o que é bem mais grave, sem estratégia nacional. Com uma dívida pesada e juros exorbitantes, uma população envelhecida e duas gerações desperdiçadas, uma por ter perdido o emprego e ter poucas hipóteses de o recuperar e outra obrigada a abandonar o País no início da idade ativa, por falta de oportunidades, interrogo-me: quem vai produzir o quê, e descontar impostos para pagar a fatura? Sinceramente, não vislumbro saída a curto/médio prazo. E isso assusta-me muito.

Teme pelo futuro dos seus netos?

Escrevi na dedicatória do meu livro: "Aos meus netos Dinis e Beatriz, faróis da minha esperança num futuro melhor". Poderá parecer agora contraditório eu dizer que temo pelo futuro deles. Mas o facto é que temo. Sempre fui uma pessoa positiva, mas reconheço que está a ser difícil manter-me assim. Hoje, angustia-me ver que as minhas filhas já têm de dar demasiado para o que recebem em troca. E não prevejo que o futuro dos meus netos, que é já amanhã, venha a ser muito melhor...

Que mensagem gostaria de deixar aos jovens do seu país?

A um jovem, não se pode deixar uma mensagem pessimista e negativa, porque isso equivale a envelhecê-lo prematuramente, por dentro. A juventude é a única idade em que é proibido perder a esperança. E ainda bem, porque só os jovens poderão, com o seu poder de renovação e ousadia, com a sua energia vital e necessidade de quebrar normas, fazer desta sociedade, deste País, deste sistema um local habitável onde se possa dizer que vale a pena viver. Acredito que os jovens conseguirão arregaçar as mangas e tomar nas próprias mãos as rédeas do futuro. O importante é nunca desistir, nunca se deixar abater, ter auto-confiança e acreditar sempre. É preciso não ter medo nem respeito, é preciso quebrar as amarras mentais que nos mantêm agrilhoados ao status quo. Se eu fosse hoje jovem, entrava nessa luta. Para vencer.

Texto: Palmira Correia