Glória está a envelhecer. Com a idade, cresce também a angústia de saber que talvez não esteja cá por muito mais tempo. A sua maior preocupação tem nome: Pedro, o neto. Se ela partir, quem ficará para cuidar dele? Quem tomará conta do rapaz que todos escolheram abandonar?

É a partir desta pergunta que se desenrola Apesar do Sangue, o novo romance de Rita da Nova, onde diferentes vozes narrativas se entrelaçam para contar a história de uma família marcada por ausências, escolhas difíceis e laços inesperados. Glória, a avó que sustenta o que resta da família; Helena, a mãe que se afastou; Eduardo, o padrasto que deixou de o ser mas nunca esqueceu o enteado; e Pedro, o centro silencioso desta teia de afectos.

Com uma estrutura não linear e múltiplas perspectivas, o livro aborda temas como abandono, paternidade e pertença, colocando em destaque a força dos vínculos que se constroem, mesmo fora dos laços de sangue.

Rita da Nova formou-se em Ciências da Comunicação, com o desejo inicial de seguir jornalismo, mas acabou por encontrar outros caminhos de expressão, desde o marketing até à escrita. É autora de vários livros e mantém um blogue onde partilha reflexões sobre viagens e literatura. Em entrevista, Rita da Nova revela que a ideia para este romance surgiu a partir de uma história real: a de um homem que perdeu o contacto com o enteado depois de se separar da mãe da criança. A partir dessa semente, construiu uma narrativa que percorre memórias, silêncios e segundas oportunidades.

Na escrita, Rita procura compreender experiências que não são as suas, dando voz a personagens complexas, como Helena e Eduardo, enquanto encontra conforto em figuras como Glória. A autora destaca que a frase que melhor resume o espírito de Apesar do Sangue é: “Vamos sempre a tempo de construir a nossa própria família.”

Como nasceu o impulso de escrever? Consegue recordar aquele instante — talvez discreto, talvez arrebatador — em que percebeu que contar histórias era mais do que um gosto, mais do que um passatempo, e se tornou, de algum modo, uma urgência?

Sempre que me fazem esta pergunta, faço o exercício de pensar na minha infância e é-me impossível dissociar a escrita da leitura. Sei que a vontade de ler histórias chegou primeiro, mas não consigo identificar o momento em que soube que queria escrever. Ainda assim, acho que essa necessidade mais urgente de escrever surgiu na adolescência, quando comecei a usar a escrita para compreender o que estava à minha volta, o que sentia, o que pensava. Desde então, nunca mais encontrei outra forma de conhecimento — interno e externo — que me seja mais natural.

Ao longo do seu percurso literário, nota-se uma crescente coragem em tocar nas camadas mais cruas e íntimas do ser humano. Quando olha hoje para os seus primeiros livros, reconhece já neles um esboço do que viria a amadurecer em Apesar do Sangue?

Sim, sem dúvida. Os temas que tenho explorado em todos os livros que publiquei até hoje andam à volta disso mesmo, de compreender aquilo que nos torna humanos. E até acho que teria sido impossível escrever Apesar do Sangue se, antes, não tivesse escrito os outros dois. Cada livro que escrevo dá-me pistas sobre o que quero explorar ou aprofundar nos seguintes.

Para si, escrever tem sido mais um caminho de descoberta ou de confronto? E quando escreve, está a tentar compreender quem está do outro lado... ou está, antes de tudo, a procurar entender-se?

Diria que começou na tal urgência de descoberta e compreensão do que me rodeava, de que falava há pouco, e isso levou-me, inevitavelmente, a confrontar-me com perspectivas e vivências que não são as minhas. Hoje, acho que é isso que mais procuro quando escrevo: desenvolver personagens que me levem a considerar experiências que eu nunca viveria por mim.

Escrever passou a ser um bocadinho como encarnar outras pessoas e outras vidas.

O título Apesar do Sangue tem uma força simbólica e emocional evidente. Em que contexto surgiu este título, e o que significa — não só para o livro, mas também para si, como autora?

Nunca fui muito boa a dar títulos a livros, pelo menos não me chegam de forma imediata. Com este romance, pelo contrário, precisamente por saber que queria explorar esta ideia dos laços familiares que extravasam o sangue, dei este título provisoriamente ao documento e acabou por ficar, por não conseguir encontrar um que resumisse melhor o que queria dizer. Tanto para a história como para mim, Apesar do Sangue é quase um apelo para não esquecermos estas pessoas que são tão importantes nas nossas vidas, e que nem sempre são família biológica.

“Gostamos muito de etiquetas: este é muçulmano, aquela é comunista, o outro é ladrão, esta é bonita” — escritor David Machado
“Gostamos muito de etiquetas: este é muçulmano, aquela é comunista, o outro é ladrão, esta é bonita” — escritor David Machado
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Em Apesar do Sangue, sente-se uma tensão entre o que nos é dado e aquilo que escolhemos ser. Como nasceu esta história? Foi primeiro uma personagem, uma imagem, ou houve uma pergunta — uma ferida — que não a deixou em paz?

Também de forma contrária ao que aconteceu com os meus outros livros, esta história não partiu de uma inquietação ou uma questão que não me saía da cabeça, mas sim de uma história (ou uma semente de história) que me foi contada. Não me deram grandes pormenores, contaram-me apenas a história de um homem que se tinha apaixonado completamente pelo enteado, e cuja maior mágoa era ter perdido contacto com essa criança quando se separou. Nunca mais fui capaz de deixar de pensar nisto, nestas duas pessoas, e preenchi os espaços em branco para construir uma narrativa.

Neste novo romance mergulha-se fundo nas sombras da família, nos segredos, na memória. Que obstáculos encontrou ao escrever sobre temas tão densos? Chegou a duvidar se conseguiria levá-lo até ao fim?

Se essa dúvida pode ter surgido em experiências de escrita anteriores, mal comecei este livro soube que seria diferente. Nunca duvidei que conseguiria acabar de escrever Apesar do Sangue, e fi-lo com bastante entusiasmo. Mesmo as dificuldades que fui sentindo em relação à melhor forma de organizar todas estas perspectivas e saltos temporais foram ultrapassadas quase como se estivesse a montar um puzzle. Senti-me muito feliz ao longo do processo de escrita deste livro.

Em entrevista anterior afirmou que Eduardo foi a personagem mais difícil de escrever, precisamente por não ter essa experiência pessoal. Ao mergulhar neste papel, sentiu que aprendeu algo sobre a ideia de paternidade fora dos moldes tradicionais?

Sim, acho que sim. As personagens que estão mais «longe» de mim são sempre as que me ensinam mais coisas: para conseguir escrevê-las com realidade e justiça, entro num processo de pesquisa bastante intenso. Leio testemunhos na internet, falo com pessoas que passaram por experiências semelhantes, vejo filmes e leio outros livros. Escrever passa a ser um bocadinho como encarnar outras pessoas e outras vidas. O Eduardo, em específico, ensinou-me (ou recordou-me, vá) da importância das segundas oportunidades quando falamos de relações humanas.

A literatura ainda é um espaço onde se pode sentir — sem pressa nem desculpa.

Helena surge como uma figura complexa, e descreveu o ato de escrevê-la quase como uma catarse. Criar personagens com quem se tem essa relação de fricção emocional muda, de alguma forma, a maneira como olha para certas emoções ou temas?

Diria até que, se não mudar, não fiz o meu trabalho como deve ser. Gosto muito da imagem do escritor como uma esponja numa fase inicial e como filtro na fase seguinte. É isso que tento fazer quando escrevo, sobretudo quando escrevo personagens com quem tenho essa tal relação de fricção emocional. Primeiro, agarro tudo sobre a experiência dessa personagem, depois faço um trabalho um pouco mais minucioso, de polir o que consegui agarrar, de separar o trigo do joio. Este trabalho resulta, de forma quase inevitável, em mais empatia para com certas pessoas. Posso continuar sem concordar com elas, mas passei a compreendê-las melhor.

Glória, pelo contrário, parece trazer-lhe conforto e até familiaridade. Como foi viver esse equilíbrio entre personagens que a desafiam emocionalmente e outras que quase funcionam como porto de abrigo?

A certa altura, tive de pôr limites a mim mesma, caso contrário estaria sempre a escrever a perspectiva da Glória e a deixar os outros para trás. Havia dias em que não estava pronta para o confronto emocional que seria escrever a Helena ou o Eduardo, então resguardava-me na Glória e no Pedro. E havia dias em que só me apetecia esse desafio, e então avançava com as personagens mais complexas para mim. Fui conseguindo o equilíbrio assim, «ouvindo» o meu estado de espírito do dia ou da semana, e usando isso como uma vantagem. Se tinha quatro caminhos de personagens, mais valia aproveitá-las da melhor forma.

Há leitores que se reconhecem nas suas personagens, que sentem espelhadas as suas perdas, os seus medos. O que sente quando alguém lhe diz encontrei-me no seu livro”? Houve partilhas assim que a tenham tocado de forma especial?

Sim, sem dúvida. Guardo todas as partilhas mais íntimas dos meus leitores com muito carinho, e sinto-me muito feliz por vivermos numa época em que é possível haver esta reciprocidade, em que os leitores têm um canal mais direto para poderem dizer aos escritores aquilo que sentiram quando leram certos livros. Fico especialmente orgulhosa quando os leitores me perguntam se tinha câmaras nas suas casas, para espiar o que se passava, porque consegui retratar bem as situações ou as personagens. Isso significa que consegui capturar verdades humanas, e que ofereci uma espécie de espelho aos leitores. No caso deste Apesar do Sangue, emocionam-me especialmente testemunhos de leitores que têm ou tinham avós como a Glória, fundamentais para a sua sobrevivência.

Vivemos num tempo que parece pedir superações rápidas, dores breves. A literatura, para si, ainda é um espaço onde se pode sentir — sentir verdadeiramente, sem pressa nem desculpa?

Sim! E até diria mais: essa abertura e esse tempo resultam, quase sempre, na exploração de caminhos diferentes em relação a temas sobre os quais já tínhamos pensado antes. Ou, também, na exploração de ideias que nunca antes havíamos considerado. A literatura abre muitos caminhos, tanto para quem lê como para quem escreve, mas é impossível percorrê-los se tivermos essa tal pressa ou essas tais desculpas.

Se tivesse de deixar apenas uma frase, um testemunho daquilo que quer transmitir com este seu livro — a ideia que o atravessa — qual seria?

Gostava que os leitores saíssem da leitura com a ideia de que vão sempre a tempo de construir a sua própria família.