«What a bunch of stoned people», ouvia. A frase não parava de martelar-me o cérebro. Em inglês, porque estava rodeada de estrangeiros e, durante os quatro dias que duraria o retiro, essa era a língua oficial. Acompanhar o pensamento, uma vontade de rir incontrolável, que me levava a crer que também eu fazia parte desse grupo. Ao fim da primeira cerimónia, a ideia do «bunch of stoned people», ficava arrumada a um canto, dando lugar a uma sensação de paz interior única.
Droga, de acordo com a nomenclatura científica, é qualquer substância de origem animal, vegetal ou mineral, que uma vez introduzida num organismo vivo, produz alterações de ordem fisiológica. Assim, também podemos classificar como droga o café, o açúcar, ou, a pior de todas, o álcool. A presença de DMT na ayahuasca é, provavelmente, a principal e única causa da má fama da bebida. A (madre) ayahusca não é nem uma droga nem uma brincadeira.
Tomá-la está longe de ser um ritual de fins recreativos. O negócio é sério e, como diriam os nossos irmãos, embarcar nesta aventura requer coragem e (muita) consciencialização. Utilizada há milénios pelos povos indígenas da região amazónica, a ayahuasca tem como fim atingir o autoconhecimento através de uma série de experiências místico-espirituais. Por meio de visões e estados de expansão da consciência, chega-se a um estado de integração total com o cosmos, com a natureza e com o criador.
Alucinações e bad trips, entre outras paranoias, podem, de facto, acontecer, mas não são obrigatórias. Estas são, muitas vezes, os nossos medos e o nosso subconsciente a revelaram-se, o que não aconteceu comigo. É claro que pessoas com predisposição para esquizofrenia, bipolarismo ou outros distúrbios mentais não devem usar ayahuasca. À parte disto, esperar pela altura certa, e saber exatamente para o que se vai são regras básicas para se mergulhar no eu interior.
A preparação
Sempre tive uma apetência para questões espirituais. Talvez para equilibrar as coisas num mundo obsessivamente materialista e focado nas coisas erradas. Pratico ioga há 10 anos, faço retiros e anseio por uma viagem à Índia que planeio há mais de uma década. Não sou propriamente a pessoa mais shanti (palavra hindu que significa paz) do mundo mas procuro, isso sim, tornar-me todos os dias num ser humano melhor, entender as minhas falhas e tentar contorná-las.
Por estas e por outras (como a sede insaciável em experimentar coisas novas) sempre tive curiosidade sobre a ayahuasca. Conhecia quem fizesse, sabia que queria experimentar, mas o medo do desconhecido gritava mais alto. Num mundo onde julgamos ter tudo controlado e onde vivemos de forma tão acelerada que sufoca, tempo para pensar ou refletir é raro. Quanto mais encontrar tempo e forma de mergulhar nas nossas entranhas e enfrentar medos.
É altamente assustador a noção de perdermos o autocontrole. Mas muitas vezes vale a pena. Como dizia Vinicus de Moraes «a vida só se dá para quem se deu. Para quem amou, para quem chorou, para quem sofreu». E as probabilidades de chorar e de sofrer ali são muitas. E eu sabia disso... Quando assumi que ia fazer a ayahuasca, o excitamento tomou conta de mim e toda eu era coragem.
«Claro que não tenho medo», dizia a quem me olhava com ar desconfiado. Sentia simplesmente que o universo conspirava para que fosse. O universo e o meu sexto sentido. E isso bastava! Era mais do que o suficiente para me mover e impelir a fazê-lo. Acabada de sair de um cabo das tormentas, numa fase em que finalmente me sentia leve e descansada, não vi porque não espreitar o que se passava cá por dentro.
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Os primeiros erros
Um dos primeiros erros que cometi antes de ir foi contar a algumas pessoas e debruçar-me sobre tudo o que eram artigos e documentários acerca das cerimónias. Por um lado, a desinformação das pessoas em relação ao tema faz com que preconceitos sejam disparados sob a forma de insultos e desaprovações. Por outro, basearmo-nos em experiências alheias, leva-nos a criar expectativas, e estas podem ser altamente castradoras aquando da nossa vez.
Um fator decisor no meu sim foi saber que iria com alguém de confiança. O meu amigo Manuel [nome fictício], já doutorado na cena, transmitiu-me toda a paz e segurança que precisava. Isto é essencial. «É impossível alguma coisa correr mal, quando estamos rodeados de uma energia de paz e amor. Onde se passam horas a rezar e a agradecer a Deus, à mãe natureza, ao universo…», palavras dele.
O Santo Daime, inspirado na expressão «Dai-me força, dai-me luz, dai-me amor», é a corrente brasileira da ayahuasca. A doutrina do Santo Daime nasceu no início do século XX no Brasil com mestre Irinéu, nome de referência durante os cânticos nas cerimónias. Ao contrário da corrente xamânica, onde a escuridão e os cânticos permitem que a alucinação seja mais forte e violenta, a corrente do Santo Daime contempla a luz e a alegria.
Fá-lo num ambiente peculiar, não faltando nunca velas e música, numa alusão ao amor, à paz, a Deus, ao sol, às estrelas, à terra-mãe, ou a Iemanjá, rainha do mar. Na véspera da ida, senti medo. Desistir estava fora de questão, mas as dúvidas, resultado das conversas que não devia ter tido e das coisas que não devia ter lido, não tardaram a aparecer. Falar com o meu amigo Manuel era o único reconforto.
A chegada ao vale encantado
O brilho nos seus olhos de cada vez que falava naquilo era completamente apaziguador. No carro, já à ida, o Manuel pôs um CD a tocar com algumas das músicas que possivelmente iríamos ouvir e cantar durante as cerimónias. Desfiz-me em gargalhadas, mas percebi que para ele não era uma piada. Controlei o riso e respeitei. Três horas depois, chegávamos ao vale encantado. Apelidei-o assim, porque o local ficava, de facto, entre duas colinas.
Antes de descarregarmos o carro, saímos para cumprimentar as pessoas e ambientarmo-nos. Na maioria estrangeiros, o que vi foi um conjunto de pessoas tranquilas, de rostos serenos e gestos delicados. Genuinamente felizes. Enquanto umas comiam fruta, outras riam ou conversavam, todos se abraçavam e a paz reinava no local. Passadas as primeiras impressões, muitas vezes as mais marcantes, o meu pensamento dividiu-se.
Quando for grande quero ter aquela profissão, seja ela qual for, pensei. E só por aquele bocado, já tinha valido a pena. Ainda assim, nem todos acabam a experiência com a mesma sensação. No Brasil, em 2015, foram divulgadas notícias de mortes e psicoses causadas, alegadamente pelo chá do Santo Daime, como avançaram vários meios de comunicação social daquele país.
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O que sucede nas três cerimónias que integram o ritual
A tenda (ou tipi) branca, redonda e consideravelmente grande, estava situada no centro de um campo verde. Lá dentro, velas, imagens de santos e deuses, almofadas e colchões criavam todo um ambiente acolhedor. Era, definitivamente, um espaço do bem. Entrámos, cerca de 30 pessoas, todos vestidos de branco, pois assim manda o ritual do Santo Daime. Visualmente, o quadro era lindo. Notava-se a felicidade estampada no rosto de muitos.
E algum medo ou nervoso (nada miudinho) no rosto de outros. Eu era um deles. O pânico estava instalado. Homens para um lado e mulheres para outro. No centro da tenda, uma mesa repleta de elementos alusivos à meditação, as tais velas, os tais incensos, as imagens das divindades. Sentados à sua volta, o mestre e mais seis pessoas. Os escolhidos, três homens e três mulheres, por norma veteranos, desempenham a função de manter o grupo acordado.
Devem cantar com firmeza que, aliás, é palavra de ordem na ayahuasca, do início ao fim, assim como dançar quando fosse preciso. Oito horas nisto. Tinha a mão a tremer, o que me dificultava segurar o copo com firmeza. Sabia que o sabor era horripilante. Olhei para o líquido preto e engoli como se de um shot se tratasse. «Pronto, já está. Boa viagem para ti e let it go», foi tudo o que me ocorreu.
O espírito tem de ser esse, de outra forma não aguentamos nem uma hora. Peguei no cancioneiro e comecei a cantar (e a inventar). Cantei (e inventei) com alma e coração. Compenetrada naquilo que estava a fazer, a única reação que sentia da bebida era uma incontrolável vontade de rir. Parecia que tinha caído numa nuvem qualquer, olhava à minha volta e só via o tal «bunch of stoned people».
O efeito do segundo e do terceiro copo
Veio o segundo copo e o terceiro e, entre algumas viagens de curto curso ou um sorriso estúpido que não conseguia desconstruir, a minha primeira experiência de ayahuasca tinha sido tranquila. Fui firme e senti orgulho por ter superado a primeira etapa da prova. Passada uma hora da toma do último copo, sentimo-nos como novos, como se acabados de acordar de um sono profundo e absolutamente relaxante, com uma energia e uma boa disposição abismais.
No final, todos se abraçavam e falavam da sua experiência. A opinião era unânime. Mesmo os que tinham passado pelo inferno, sentiam-se agora no céu. Passado o terror do desconhecido, encarei a segunda noite com outro ânimo. Queria deixar-me levar. A primeira grande surpresa da segunda noite aconteceu quando fui escolhida pelo mestre para ir para a mesa, fruto do meu exímio trabalho na noite anterior.
Neste lugar privilegiado e respeitado, a responsabilidade de enfrentar a planta aumentou a olhos luz. «Aqui não me posso deixar ir abaixo», pensei. As duas raparigas que estavam ao meu lado demonstraram imediatamente o poder e imensidão do ego ou de como este ultrapassa qualquer barreira, mesmo nos lugares mais sagrados, lidando mal com a decisão do mestre. Em palavras mundanas, diria que me queriam fazer a folha.
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A sensação de impotência e incompreensão
A sensação de impotência e incompreensão foi efetiva. Senti claramente que não era bem-vinda ao círculo, mas isso apenas me deu força e firmeza extra. Era só mais um obstáculo que teria de passar. A cereja no topo do bolo aconteceu quando a francesa que estava sentada atrás de mim desatou num pranto que durou oito horas. Foi também aí que conheci as minhas reais capacidades e força interior.
O chá a fazer mais efeito do que na noite anterior, os mantras indianos (os meus preferidos) a serem entoados em perfeita sintonia por aquele grupo de pessoas vestidas de branco e rodeadas de luz. A energia na tenda estava ao rubro. Senti todo o meu corpo estremecer mais do que uma vez, viajei outras tantas, mas tudo o que vi era bonito e risonho. Por outro lado, lutava para que os elementos menos bons ali não me afetassem.
É comum os veteranos em ayahuasca cantarem ou tocarem algum instrumento musical. Se não sabem, aprendem. Por este motivo, as cerimónias são, antes de mais, concertos de música para lá de maravilhosos, que impossibilitam a entrada de qualquer coisa negativa. A segunda noite acabou por ser a mais bonita e mágica e o grupo estava realmente unido no pedido da paz e da harmonia.
A intrigante pasta escura com mel
No final, houve os abraços do costume, incluindo as raparigas que me queriam fazer a folha, a par daquela sensação de paz enorme e inexplicável. As tomas do chá acumulam-se de dia para dia. O primeiro copo do terceiro dia já é o sétimo copo dos três dias. O mestre dirige as cerimónias desta forma, para que cada pessoa se possa ir adaptando e conhecendo a planta. O efeito vai sendo, assim, gradual, mas cada vez mais forte.
A cerimónia começou no exterior, junto a um riacho e a uma fogueira. Sentados à volta desta, permanecemos os primeiros momentos em silêncio, de forma a contemplar os sons da natureza. A água a correr, as árvores e o vento a dançar, as folhas a cair… A primeira toma da noite foi, igualmente, diferente. Em vez do líquido, tínhamos uma pasta escura com a consistência do mel.
O resultado? Medicina mais concentrada, mais forte, mais horrível de sabor e muito mais difícil de engolir. Mais rápida a bater também. Primeiro senti calor, depois vieram os arrepios de frio. Uma mistura de sensações real e efetiva. Ao segundo copo, desta vez já não era pasta, senti o líquido percorrer-me cada parte do estômago. Depois, chegou a todas as zonas do corpo.
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Sons da floresta no cérebro
Comecei a ouvir os sons da floresta invadirem-me o cérebro, como se de repente toda ela estivesse dentro de mim. Fechei os olhos e comecei a viajar naquele concerto da natureza. Senti-me tonta e comecei a ficar enjoada. É muito comum vomitar-se com a ayahuasca, mas em nenhum dos outros dias tinha sentido algum enjoo que fosse. A coisa estava a bater forte e feio desta vez. Uma helper (pessoas que ficam de fora para ajudar quem passa mal) percebeu que eu não estava bem e veio falar comigo.
A francesa de olhar meio alucinado repetia «Tens de lutar contra isso, és mais forte do que os teus medos»... Mentalmente, respondia-lhe «Só quero vomitar, só quero vomitar»… Mas não saía nada. Há quem vomite durante a cerimónia e isso pode significar muita coisa negativa acumulada. Não foi o meu caso. Quando começou a ficar insuportável estar sentada, tal era a viagem, levantei-me a custo e fui andar pelo campo.
Corrijo, fui planar pelo campo. Melhorei consideravelmente. Voltámos à tipi assim que começou a escurecer. Estava, literalmente, para lá de Bagdade, mas além de algum mal estar físico, nunca senti desconforto psíquico ou emocional. Não me senti perder o controlo. Estava feliz e em paz comigo e a conclusão a que chegava, aquilo que a planta me demonstrava com clareza, era que tenho feito um bom trabalho interior, durante a minha vida.
Uma forma de fugir ao (sur)real
O facto de ser uma pessoa emocional, que não esconde lágrimas quando estas são precisas, que sofre como deve de ser, e não deixa nada cá dentro, só me tem feito bem. Senti que estava bem resolvida perante a vida. Cada caso é um caso e cada experiência é única na ayahuasca. A minha experiência não terá, com certeza, nada a ver com a da francesa que chorou oito horas na cerimónia.
Provavelmente, esta jovem rapariga guarda muita coisa para si e a ayahuasca trouxe-lhe ao de cima os medos que ela jamais tinha tido a coragem de enfrentar. O Santo Daime é do bem e para o bem e os seus efeitos permanecem nos dias seguintes. A planta age como um professor, e temos de estar receptivos aos seus ensinamentos, saber ouvir o que ela tem para nos dizer, processo esse que vai muito além das cerimónias.
Ainda hoje a oiço e muitas coisas na minha vida vão ficando claras como a água. De costas voltadas para o vale encantado e no regresso ao quotidiano louco que me esperava, a certeza era apenas uma. Toda a gente devia fazer isto, pelo menos uma vez na vida. Da minha parte, o bilhete de regresso estava comprado. Shantisisses à parte, fugir do mundo real, de vez em quando, vale a pena e recomenda-se.
Veja na página seguinte: 3 cuidados a ter nos dias anteriores à experiência
O que é a ayahuasca
Ayahuasca, nome quíchua de origem inca, é uma bebida sacramental produzida a partir da decoção de duas plantas nativas da floresta amazónica, o cipó Banisteriopsis caapi (mariri ou jagube) e folhas do arbusto Psychotria viridis (chacrona ou rainha), que contém o princípio ativo dimetiltriptamina (DMT).
É também conhecida por yagé, caapi, nixi honi xuma, hoasca, daime, kahi, natema, pindé, dápa, vinho da alma, professor dos professores e pequena morte, entre outros. Ayahuasca significa liana (cipó) dos espíritos. É usada pelos incas e também por cerca de 72 tribos indígenas diferentes da Amazónia.
3 cuidados a ter nos dias anteriores à experiência:
1. Evite consumir informação excessiva, que pode criar expetativas e acabar por limitar a experiência.
2. Evite todo o tipo de alimentos refinados e processados, como carne vermelha, enlatados, gorduras e açúcares, bebidas alcoólicas, refrigerantes, fast food, café, leite, fermentados, aditivos e suplementos proteicos.
3. Evite demasiada exposição de cariz social. Alguma recolha interior é importante nos dias que antecedem a(s) cerimónia(s).
Texto: Maria da Luz Pires (nome fictício para proteger a identidade da jornalista)
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