Acho que foi a primeira vez que presenciei a morte mais de perto, nua e crua. Nunca mais ali voltei, evitei, tive medo do assombro da minha própria mente, de certa forma de encerrar um ciclo, de fazer o luto, de uma pessoa, de uma época da minha vida. A minha avó Quinhas, "ou o "Catito" como lhe chamava carinhosamente, mudar o género nas designações ou petit nom sempre foi característica da minha família, o meu pai chamava-me "Babo".

A pessoa.

A minha avó Quinhas era intensa, voz firme, bonita, robusta, adorava fazer almoços, jantares, festas, sardinhadas, nenhuma ocasião festiva passava em vão com ela: não havia hipótese de passar. Mesmo que fosse em cima da hora, qualquer coisa se arranjava e servia de pretexto para estarmos juntos. Fazia comidas estranhas e arrojadas, como arroz com passas ou pinhão, de que eu na altura não gostava muito, mas achava piada a este lado criativo e inovador. Adorava ouvir confissões e não se chocava praticamente com nada, nem mesmo com dilemas e dramas de faca e de alguidar típicas da adolescência. Tinha um espírito aventureiro e encorajador. "Fora da caixa", pode dizer-se que era, adorava trabalhos manuais diferentes, desde ovos pintados a sabonetes decorados com tecido, transformados em retalhos de conversas e partilhas.

A casa.

Passava lá muito tempo. Lembro-me de brincar com barro, fazer bonequinhos e de fingir que a casa era minha e que recebia visitas, coisas de menina, aspirante a mulherzinha. As hortênsias. Tinha muitas, na maioria azuis. Se fechar os olhos, a primeira coisa  que me lembro da casa são elas. Descobri há pouco tempo que são venenosas (Hydrangea Macrophylla), mas também um símbolo de devoção, coragem, determinação, dignidade, pureza de sentimento e elevação espiritual.

A altura do lanche, o cheiro das torradas. Não havia como aquelas. Tinham um gosto diferente, eram crocantes, pequenas, com o pão cortado ao meio, bem barrado com manteiga a fazer laguinhos nas aberturas do pão. O leite com chocolate, Suchard Express, adorava, bem castanho. Aqui vou confessar uma coisa, a minha avó acumulava coisas, mercearias, vivia longe da única loja da localidade próxima e comprava muita coisa, por vezes repetida, passando do prazo. Eu ia ver se estava fora da data, sem que ela visse, e se estivesse, fazia por parecer que eu própria não tinha reparado, não queria que se sentisse mal.

A casa era num alto, no meio do nada, e se durante o dia alimentava o meu imaginário de casas no bosque e reportagens saídas da National Geographic, à noite tinha medo, muito medo.

A minha avó adoeceu e ficou acamada, o tempo passou e a vida transformou-se, as mágoas e alegrias eram vividas numa cama. Já não era vida, não gostava de a ver assim, não gostava daquele sítio já, só transmitia dor e sofrimento. Quando me sentia capaz de lá ir, deitava-me na cama ao lado e falava como se fosse num divã de psicanálise. E a minha avó ouvia, ávida de curiosidade e de um mundo que ela já não via e já não pisava. Imagino o Pedro a saltar ali na cama e a colorir os espaços em branco, a dar esperança, o bisneto homem que nunca teve. Não se cruzaram nesta vida, mas ficarão as histórias e as recordações.

Ontem encerrei esse capítulo da dimensão física, voltei lá passados cinco anos, o silêncio foi duro e o vazio entre paredes ensurdecedor.

Ficam as memórias da casa cheia de vida e das hortênsias azuis.

Neste mês do seu aniversário e do meu pai, fica a homenagem.