Todos os dias somos bombardeados por notícias que marcam os acontecimentos de um mundo em que as regras são colocadas à prova e, em grande parte, quebradas por quem se sente à margem da lei ou mesmo por quem se julga a própria lei.
Escrito assim, parece não fazer qualquer sentido, afinal a maioria dos seres humanos cumpre as leis, vive ordeiramente, convive pela premissa do respeito e pela qualidade das relações com os Outros. A maioria, disse eu. Porém, será normal convivermos com quem usa a maldade como regra base da sua familiaridade com o mundo e acharmos normal?
O mal existe desde os primórdios da vida, vai existir sempre, não há que ser ingénuo e acreditar que irá desparecer como os dinossauros vítimas de um fenómeno cataclísmico.
É o mundo lá fora que ainda não está perfeito, ainda fabrica pessoas que, conforme crescem, se corrompem por valores decrépitos, por princípios moldados ao seu egoísmo, que esquecem, ao longo da sua evolução, o que é correto e o que está errado. É aqui que as questões sobre justiça, igualdade, solidariedade se esvaem por entre os dedos. É aqui que os humanos crescidos se tornam no bicho papão das histórias de encantar que ouvíamos aterrorizados pelas vozes dos nossos avós.
O que é que acontece realmente a um ser humano que, ao longo da sua vida, esquece todo o tipo de formação incutida, todo o género de valores razoáveis para saber viver e conviver com os outros, toda a dignidade que lhe é ajustada?
Não sei, não consigo perceber como é que a maldade toma forma dentro de cada um. Como é que um sentimento corroído pela provocação da dor alheia pode ter tanto poder; ser tão afrodisíaco, e que seja tão mais forte que o desejo de dividir o bem.
Lembram-se da clássica cena do filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, onde o assassino Alex é preso a uma cadeira, com as pálpebras abertas à força por uma máquina, e é obrigado a assistir a longas horas de vídeos com cenas de violência explícita? Algo que ele, em princípio, gosta. Drogado para associar as imagens na tela a sentimentos de dor extrema, o criminoso passa a sentir aversão à crueldade e, finalmente, é considerado “recuperado”.
Quarenta anos depois, a busca de uma cura para a maldade deixou de ser ficção científica. Dezenas de centros de pesquisa pelo mundo, laboratórios na Alemanha, nos Estados Unidos e na Inglaterra abrigam scanners que medem o fluxo de sangue no cérebro e aparelhos de sequenciamento genético que ajudam a traçar uma nova anatomia do mal dentro do ser humano. As pesquisas mostram que fazer o mal pode não ser uma questão de livre-arbítrio. “Pessoas que manifestaram atos de crueldade, não o fizeram porque escolheram, mas porque apresentavam uma deficiência no cérebro”, sugere o Ph.D. psicólogo e professor da Universidade de Cambridge, Simon Baron-Cohen.
Será? Será que se pode resumir as circunstâncias da maldade a um curto circuito dentro do cérebro que passa um atestado que desculpabiliza o ato e o motivo?
Creio que, apesar de muitos destes estudos justificarem, cientificamente, o comportamento malévolo, há decisões pensadas e organizadas, com objetivos específicos de provocar reações em cadeia. Que libertam o pior dos sentimentos e que são motivadas por pessoas de meios aparentemente saudáveis também.
Zimbardo, criador da rede educacional chamada Heroic Imagination Project, diz que “quando se cresce no meio da pobreza, não adianta dar pílulas contra a maldade. Tudo ao redor forçará os jovens a fazer coisas más”. Mas, na verdade, nem todos crescem no meio da pobreza e/ou em meios férteis onde os exemplos de atitudes maldosas se multiplicam. A maior parte das pessoas não são más, praticam a maldade. É diferente. A maior parte delas usam-na para atingir fins pessoais e usam-na gratuitamente. A consciência de traçar um plano para prejudicar o vizinho do lado basta para definirmos essas pessoas como “alguém mau”.
“Ninguém está a querer retirar a culpa aos praticantes de atrocidades. Queremos mostrar que não é uma simples questão de ser mau. O ambiente modifica a forma como as pessoas percebem as outras”, diz Fiske, psicóloga e investigadora. O ambiente e a índole, também, diria.
Continuaremos a assistir a um mundo em mutação, a produzir pessoas agressivas nas suas mais variadas formas. A competirem por um status, a degladiarem-se por uma posição no mercado de trabalho, a traírem-se por pequenas e supérfluas coisas. Assistiremos à continuidade de gestos egoístas, de gentes que usam outras gentes. Ao sofrimento e à condição de menos felicidade nos rostos de outros. Por vezes, sofremos mais porque vemos o intuito nos atos, e em quem os comete, do que propriamente pelo ato em si e pensamos “eu não quero ser assim”. E tornamo-nos melhores porque aprendemos a não querer ser assim, porque percebemos que a vida é menos, quando não nos damos, e então entregamo-nos de coração aberto e aí, sim, o mundo altera-se, pouco a pouco. Apenas porque ainda há quem pratique o bem e o homogeneíze.
A consciência do que praticamos é outro fator ativo nas condutas. É preciso reconhecermos o que fazemos, como agimos, o que desafiamos fora de nós. Desafiamos o bem?... consegue responder a isto? Se usarmos a inconsciência para justificarmos as escolhas, os feitos, as decisões jamais granjearemos a benignidade de sermos bons seres humanos. Continuaremos a maltratar, a elegermos a má arbitrariedade como regra e a sermos persona non grata. O mundo muda porque fazemos diferente e a diferença está no usufruto do companheirismo, da interajuda e da honestidade. O mundo está povoado de seres perigosamente maus, não matam, não atingem a tiro, mas roubam a dignidade e a paz. Não será esta a maldade que os estudos científicos ainda não elegeram como target de investigação?
Já não importa a forma como esta população deita a cabeça na almofada e dorme, sabem porquê? Porque já não se dão conta do seu nível de comportamento. A falta de consequências é o modus operandi de uma realidade que fica para lá da porta de entrada do nosso lar e o pior inimigo de quem se acha dono e senhor da sua própria conduta, não percebendo que viver em comunidade significa agir de acordo com os outros.
Lembrem-se, se praticarmos o bem, o bem encontra-nos. Não percamos essa esperança.
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