Em 2002, quando comecei a trabalhar como formadora em empresas, apercebi-me de que era comum não se dizer aos clientes que os consultores eram psicólogos. Se, para além de psicólogo, fosse psicólogo clínico, ainda menos se deveria afirmar uma coisa destas. Porquê? Porque se entendia que os clientes podiam ficar desconfortáveis com esta informação. Podiam sentir-se demasiado expostos e achar que os psicólogos os estavam a “analisar”, “pôr em caixinhas” ou “ver por dentro”.
Uma vez, numa dinâmica de grupo, separei as pessoas aleatoriamente em dois grupos. Para ganhar tempo, enquanto estavam no intervalo, escrevi nas placas de nome alternadamente “A” e “B”. Assim, quando entrassem na sala, já saberiam a que grupo pertenciam. Tudo correu bem, mas, no final da sessão, uma participante, sabendo que eu era psicóloga, veio sozinha falar comigo e perguntar o que significava ser “uma pessoa de tipo B”. Passei a ter mais cuidado com mal-entendidos deste género.
Parece-me que por detrás deste medo dos psicólogos, está uma ideia de que os psicólogos têm a capacidade de ler a mente ou uma visão raio-X para as fragilidades. Há um fundo de verdade neste medo. Os psicólogos sabem que todos, mas mesmo todos, somos vulneráveis, temos facetas que queremos esconder e não estamos sempre tão seguros e confiantes como queremos parecer.
Um outro mal-entendido que alimenta este “perigo” de estar perto de um psicólogo é a ideia de que, após fazer a leitura da mente, este nos vai dizer como resolver determinada questão. Semelhante a uma consulta de astrologia, onde depois de dizerem como somos, nos dizem o que o futuro nos reserva. A meu ver há uma responsabilidade do nosso lado, dos psicólogos, em alimentar estas ideias: a utilização de linguagem técnica com os pacientes que só dificulta a comunicação, alguma sobranceria na atitude mostrando ter percebido logo tudo sobre a pessoa à nossa frente, o uso de sintomas e diagnósticos como armas de arremesso ou respostas únicas e definitivas para cada problema do paciente. Tenho observado que esta atitude é mais típica em estudantes de psicologia.
Geralmente, as experiências de vida e de trabalho costumam mitigar esta arrogância, substituindo-a por uma atitude aceitante, simplicidade de linguagem e curiosidade genuína que caracterizam os bons psicoterapeutas. Não é por acaso que os bons psicoterapeutas apresentam estas características humanas. É que o sucesso do processo terapêutico, o que vai determinar se conseguimos ou não ajudar os nossos pacientes é, em grande medida, a relação calorosa que conseguimos manter e a capacidade de compreender o seu mundo, visto pelos seus olhos. Só assim podemos ajudar a encontrar ou construir melhores caminhos para a sua vida. Porque a psicoterapia é um processo, não é uma adivinhação seguida de três conselhos.
De tudo o que de difícil e doloroso esta pandemia nos trouxe, que foi e é muito, apareceu também uma oportunidade de olhar para o nosso bem-estar emocional e saúde mental como prioridades e a ideia de que “é ok não estar ok.” Podemos pedir ajuda, podemos ter dias maus e podemos falar sobre tudo isto.
Quando nos perguntamos de que se alimenta o preconceito em relação a assumir sofrimento emocional ou pedir ajuda psicológica ou psiquiátrica, temos também de ter em conta a linguagem que muitos ainda usamos. É comum ouvir políticos e figuras públicas usarem expressões como “autista” para alguém que parece não ouvir o que lhe dizem (engraçado que “surdo” já não dizem, e ainda bem). Usa-se “esquizofrénico” para falar de uma pessoa que parece ter duas opiniões incompatíveis acerca de algum assunto. Quando alguém tem uma reação emocional, ouvimos dizer que “é bipolar” e abundam, nos corredores e open spaces do mundo do trabalho, risinhos e expressões sobre se alguém não se terá esquecido “dos comprimidos para os pirulitos”. Não digo isto com o intuito de policiar os discursos dos outros. Digo-o para apelar à responsabilidade de cada um de nós em não pactuar com uma linguagem com a qual não se identifica e que perpetua um estereótipo que leva a que crianças, jovens e adultos aprendam muito cedo a esconder o seu sofrimento emocional, para evitarem ser ridicularizados ou discriminados.
Todos sabemos que, como em quase tudo, uma grande crise já foi uma pequena crise que alguém ignorou. O estereótipo negativo em relação à procura de ajuda psicológica ou psiquiátrica é parcialmente responsável por um sofrimento solitário, envergonhado e sobretudo evitável.
Cabe a cada um de nós quebrar o estigma. A psicoterapia ou o apoio psiquiátrico em alguma fase da vida é para nós, para cada um de nós. Não é para os “malucos”, os “fracos” ou os “sensíveis”.
Ana Moniz - Psicóloga clínica, psicoterapeuta
Ana Moniz é executive coach, trainer e autora do livro “Este livro não é para fracos: como agir com coragem está ao alcance de todos”
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