O gosto pelas artes contribuiu fortemente para a faceta mais criativa e inovadora de Francisco Goiana da Silva, prestes a fazer 26 anos, desde muito cedo. «Conferiu-me a capacidade de me apaixonar pelas pequenas coisas. As aulas de violino, que tive desde os seis anos, ajudaram-me a perceber a relação direta entre disciplina e criatividade», refere o médico, que convenceu a OMS a centrar atenções no nosso país.
«As idas regulares com o meu pai a Serralves [fundação] ensinaram-me a desenvolver espírito crítico face à arte, enquanto forma de retrato social. Quando tive de decidir o meu futuro, escolher entre a erudição da arte medicina ou a sensibilidade da arte plástica, uma voz experiente alertou-me. Um médico pode fazer arte nos seus tempos livres e esse exercício fará dele um médico mais completo», recorda.
«Um artista dificilmente poderá salvar vidas nas suas horas vagas», disseram-lhe. «Este conselho ajudou-me a juntar o melhor dos dois mundos», acredita o profissional de saúde, educado num colégio jesuíta, «onde me foi incutida uma filosofia analítica, com consequente promoção da discussão saudável da qual deveria nascer a crítica construtiva. Hoje sigo religiosamente essa prática», confessa.
Foi o único português de cinco médicos selecionados a nível mundial para estagiar na Organização Mundial de Saúde (OMS) no período 2014/2015. Graças ao seu trabalho ocorreu, em julho de 2014, em Lisboa um encontro entre os 40 maiores especialistas mundiais em educação de profissionais de saúde, uma reunião promovida pela OMS. É um dos 15 Shapers do Global Shapers Lisbon Hub e participou no Fórum Económico Mundial, como jovem embaixador do Serviço Nacional de Saúde (SNS) português.
As influências que marcaram o percurso de Francisco Goiana da Silva
A área geográfica em que cresceu ajudou a moldar a sua personalidade. «A minha espontaneidade bem nortenha foi importante na criação de oportunidades para a abordagem de temas sensíveis da educação médica com grandes mentores, como os professores João Lobo Antunes, Daniel Sampaio e António Sampaio da Nóvoa. A cultura dos pedestais é um obstáculo à discussão aberta e, logo, à mudança», considera.
«Sem medo, mas sempre com respeito, é mais fácil aceder às pessoas mais experientes e envolvê-las na mudança. A minha vivência de católico ajuda-me a continuar a acreditar em cada projeto com uma fé inabalável, a melhor forma de tornar as ideias virais. Adoro apaixonar as pessoas que me rodeiam pelos projetos que defendo», assume Francisco Goiana da Silva.
Foi imbuído nesse espírito que apresentou as suas ideias a Magaret Chan, secretária geral da OMS. «Tive a felicidade de me cruzar com ela num corredor e falámos, de forma simples e natural. Pelos vistos, também ela se apaixonou pelo Serviço Nacional de Saúde», refere o médico. «Integrar um grupo de trabalho na OMS permitiu-me olhar Portugal sob uma perspetiva externa e observar as potencialidades e fragilidades do SNS de forma mais imparcial», diz.
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As mudanças que Francisco Goiana da Silva defende
Para poder comparar o SNS com sistemas de saúde de outros países, «temos de ter presente alguns dos seus pilares base», defende. «A saúde tem de ser acessível, tendencialmente gratuita e um direito. Temos um dos melhores Serviços Públicos de Saúde. Por isso, Portugal é visto internacionalmente como referência em muitas áreas», salienta Francisco Goiana da Silva.
«Mas, apesar de ser uma das maiores vitórias da democracia portuguesa, o SNS foi criado há mais de três décadas para dar resposta a um contexto epidemiológico diferente do atual. Hoje a tipologia de doenças alterou-se e as patologias crónicas e a prevenção devem ser a prioridade. A sua estrutura deve ser flexível para ser sustentável. É recomendável inspirarmo-nos em soluções já aplicadas noutros países e banir o impossível do vocabulário», defende.
«Olhemos para outras realidades e tentemos instituir, por exemplo, conceitos como o da prescrição eletrónica, o do enfermeiro de família ou a Plataforma Electrónica de Dados de Saúde que permitirá tornar o historial clínico de cada doente acessível a todas as unidades de saúde públicas, evitando redundâncias e desperdícios. Acabemos definitivamente com forças de bloqueio e, acima de tudo, com confusões descabidas entre colaboração inter-profissionais de saúde (skillmix) e usurpação de poderes (taskshifting)», insiste.
As alterações que podem revitalizar o SNS
A primeira, o skillmix, é o caminho, acredita. «Deixemos de usar a prescrição electrónica como arma de arremesso e reivindicação. Preocupemo-nos, antes, em melhorá-la. Invistamos no uso generalizado da Plataforma Electrónica de Dados de Saúde enquanto sistema informático unificador do SNS ao invés de continuarmos a preferir os nossos sistemas informáticos de quintal, já ultrapassados», apela o médico.
«A missão do SNS está bem traçada na Constituição Portuguesa. Saúde enquanto direito dos cidadãos e dever do estado. Somos referência nos cuidados de saúde primários e o conceito da unidade saúde familiar é made in Portugal. Ainda assim, devemos retomar a reforma e investimento da rede de cuidados primários. Os profissionais de saúde made in Portugal são excelentes», sublinha.
«Aquilo que estamos a sentir, à semelhança de outras áreas, é que com a crise o SNS sofreu um grande abalo que, ainda assim, foi minimizado pela resiliência e qualidade da sua task force. O hospitalocentrismo é outro dos problemas. É urgente centrar a atenção nas unidades de cuidados primários e na prevenção», defende ainda Francisco Goiana da Silva.
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As (outras) mudanças inevitáveis nos tempos que correm
Para este especialista, há mudanças que são inevitáveis. «A forma estrutural do SNS já não é funcional, existem demasiados níveis de decisão e urge uma simplificação desses patamares. Deveríamos fomentar uma política de Unidades Integradas de Saúde (UIS) e abandonar a confusão atual. Temos centros de saúde de gestão própria, hospitais com a mesma política, Unidades Locais de Saúde (ULS) com conselhos de administração divididos pelos centros de saúde e hospital e outros com apenas uma dessas realidades. Não há harmonia», critica.
O modelo alternativo que o médico defende é claro. «As UIS centrariam, na mesma administração, cuidados de saúde primários e os hospitais de primeira linha, assim como os cuidados continuados que hoje estão sob a tutela da Segurança Social, mas cuja passagem para a Saúde seria benéfica. Ficaríamos com 18 UIS e todas elas autónomas», afiança Francisco Goiana da Silva.
«Aos gestores das UIS está associada a responsabilidade de lidar com as limitações e potencialidades da sua região, nomeadamente em relação à decisão de ter as urgências abertas dos cuidados de saúde primário dos centros de saúde 24 horas ou apenas no hospital de primeira linha. Mais, com estas 18 UIS conseguiríamos a proeza de sentar à mesa todos os dirigentes da Saúde em Portugal. Hoje isso é impossível», enfatiza o médico.
Os farois de conhecimento necessários
As propostas de Francisco Goiana da Silva não se esgotam aqui. «Existiriam também apenas três hospitais de fim de linha, que nas palavras do professor Alberto Campos Fernandes são farois de conhecimento. Em Portugal, existem apenas três instituições com dimensão para assumir esse papel, o Hospital de Santa Maria [em Lisboa], o Hospital de Coimbra e o Hospital de São João [no Porto]», considera o especialista.
«Nestes casos, não existiria serviço de urgência aberto à afluência dos cidadãos por livre iniciativa. O primeiro contacto com os doentes urgentes seria competência da UIS. Esses grandes centros estariam reservados a tratar de casos de alta especialidade e albergariam as melhores condições técnicas e as equipas mais diferenciadas. Esta organização colocaria como instituições prioritárias as que ofereciam cuidados de saúde primários e os hospitais de primeira linha», acredita.
«Deixariam de ser necessários tantos serviços de urgência redundantes abertos ao público», aponta. Melhorar o trabalho em equipa é outra das ideias que defende. «Gradualmente vão surgindo novas apostas e soluções. O Health Work Force, por exemplo, é um conceito atual com provas dadas e permite chegar à conclusão que as equipas que trabalham melhor são aquelas que têm condições de prestar serviços de saúde de melhor qualidade», diz.
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A necessidade de fomentar a união dos profissionais do setor
A necessidade de fomentar a união dos profissionais do setor também está implícita nas palavras de Francisco Goiana da Silva. «É essencial que os profissionais de saúde do SNS se unam a uma mesma voz, mas hoje as diferentes classes estão desalinhadas. O SNS tem de ser entendido por equipas e, para isso, é necessário reeducar o sistema. Poderíamos, por exemplo, leccionar uma mesma cadeira a estudantes de farmácia e medicina», propõe.
Para este médico, como para tantos outros, o futuro é agora. Em julho [de 2014], as instalações do INFARMED acolheram 40 dos maiores especialistas mundiais da área para integrarem uma série de reuniões organizadas pela OMS em parceria com o Ministério da Saúde e a Direção-Geral de Saúde. Deste terceiro encontro do WHO Global Technical Working Group on Health Workforce Assessment Tools foram desenvolvidas as guidelines para os governos dos diferentes países.
A aposta centra-se na modernização do ensino dos profissionais de saúde, na reestruturação dos sistemas de prestação de cuidados de saúde, na harmonização das classes dos profissionais de saúde, fomentando o trabalho em equipa entre médicos e enfermeiros, desde a universidade. «Conseguimos colocar Portugal como um dos países piloto do programa, através de um compromisso assumido pelo ministério da saúde português e o presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas», recorda Francisco Goiana da Silva.
«No final, a diretora europeia da OMS, [Galina Perfilieva], desafiou-me a integrar a sua equipa mais próxima, com funções a full-time na sede da OMS, em Copenhaga. Lisonjeado, recusei a oferta pois, em outubro [de 2014], começava uma nova fase da minha vida, um mestrado em política e gestão de saúde em Londres, no Imperial College of London», referia, em meados desse ano, Francisco Goiana da Silva.
3 ideias para renovar o Serviço Nacional de Saúde
1. «Enquanto cidadãos temos obrigações para com o nosso país. Temos o dever de participar. A forma mais óbvia é através do sufrágio. Quando votamos estamos também a eleger os membros do Ministério da Saúde», defende Francisco Goiana da Silva.
2. «Temos de combater a hospitalite e evitar ir a correr para as urgências dos hospitais com simples constipações, bloqueando a capacidade de resposta das instituições face a problemáticas mais complexas e graves. Antes de ir à urgência de um hospital, o dever cívico é procurar o centro de saúde», refere o médico.
3. «Outra questão que está nas mãos do utente é informar o conselho de administração de eventuais irregularidades. Em caso de mau funcionamento deve-se, educadamente, reclamar por escrito», considera o especialista.
Texto: Carlos Eugénio Augusto com Luis Batista Gonçalves (edição internet)
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