O problema está longe de estar esclarecido, até porque várias outras agências governamentais e não-governamentais colocam dúvidas sobre a relação do glifosato com o cancro, a última das quais foi a Food and Agriculture Organization (FAO), organização da OMS para a Alimentação e Agricultura, que em Maio concluiu que é improvável que o glifosato ingerido com os alimentos seja genotóxico e cancerígeno para os seres humanos, dentro dos limites de segurança autorizados (mas não excluiu outros efeitos nocivos, nem o potencial cancerígeno em doses superiores, nem os eventuais efeitos prejudiciais de outras substâncias químicas associadas ao glifosato nas formulações comerciais).

Estando a expirar a 30 de Junho a licença do glifosato na União Europeia, o ano de 2016 tem sido fértil em iniciativas no sentido da interdição (total ou parcial, temporária ou definitiva) deste herbicida.

Do lado da sociedade civil fazem-se alertas à população sobre os riscos do glifosato para o meio ambiente, a bio-diversidade e a saúde pública e lançam-se petições públicas para a sua proibição, como a que decorre em Portugal e já tem mais de 16.000 assinaturas.

Também em Portugal, mas do lado político, alguns municípios e freguesias já abandonaram e outros estão em vias de abandonar o uso do glifosato como herbicida nos espaços públicos e já foram a discussão na Assembleia da República (mas foram chumbados) vários projetos de resolução para impedir ou limitar o seu uso.

Ao nível da União Europeia, o Parlamento Europeu adotou em Abril uma resolução, não vinculativa, que apela a que o prolongamento da licença para o uso de glifosato se limite a um período de sete anos em vez dos 15 inicialmente propostos pelo executivo comunitário. Em resposta a esta resolução, a Comissão Europeia decidiu propor a renovação temporária (12 a 18 meses) desta licença, até ser conhecido o parecer científico da Agência Europeia dos Produtos Químicos, mantendo-se neste ínterim o direito de cada Estado-membro de autorizar os produtos finais (herbicidas e pesticidas) e de impor restrições ao seu uso.

Em 6 de Junho, o Comité Permanente sobre Plantas, Animais, Alimentos e Rações dos 28 países da União Europeia não aprovou esta proposta de renovação temporária da licença do glifosato (com 1 país contra, 20 a favor e 7 a abster-se – entre os quais Portugal - não se obteve a necessária maioria qualificada de 55% dos Estados-membros com 65% da população representada para que fosse aprovada), voltando o assunto à Comissão Europeia, não havendo ainda, à data em que escrevo este artigo (26.06.2016), e tanto quanto sei, uma decisão final tomada.

O que é o glifosato?

Apesar de o glifosato ser normalmente conhecido como um herbicida, ele é muito mais do que isso! Afinal, o que é verdadeiramente esta substância?

O glifosato pertence ao grupo dos organo-fosforados (tal como o pesticida paratião, conhecido em Portugal com o nome comercial de “E 605 Forte” e tristemente célebre pela sua elevada toxicidade), tem o nome químico de N-(fosfonometil) glicina e a fórmula molecular C3H8NO5P. Em estado puro é um pó cristalino, branco, inodoro, ácido e solúvel em água. A sua biodegradação ocorre nos solos e na água, sobretudo por ação de micro-organismos, dando origem ao ácido aminometilfosfórico (AMPA) que é o seu principal metabolito.

Foi sintetizado pela primeira vez em 1950 (e patenteado em 1964) como um quelante químico, isto é, uma substância que fixa alguns minerais como o fósforo, o cálcio, o magnésio, o manganésio, o zinco ou o cobre, reduzindo a sua biodisponibilidade ou removendo-os.

Em 1970 foi “re-descoberto” pela empresa norte-americana Monsanto como herbicida de largo espectro (é eficaz numa grande variedade de plantas) e dessecante de plantas, tendo sido patenteado e comercializado em 1974 para esses efeitos, sob o nome comercial de Roundup.

O glifosato é um herbicida sistémico, ao contrário do paraquato (comercialmente conhecido por Gramoxone, muito utilizado na segunda metade do século XX, mas agora com uso muito limitado e inclusivamente proibido na União Europeia desde 2007, devido à sua elevada toxicidade e ausência de antídoto, o que originou inúmeras mortes por envenenamento acidental ou provocado), que é um herbicida de contacto.

Sendo um herbicida sistémico, o glifosato atua no interior da planta, inibindo uma enzima da via do chiquimato, a EPPS, responsável pela síntese de 3 aminoácidos aromáticos (tirosina, triptofano e fenilalanina) o que interfere na síntese das proteínas e outros metabolitos secundários (lignina, flavonoides, cumarinas…), provocando a paragem do crescimento da planta e a sua morte.

Para exercer o seu efeito herbicida, o glifosato tem de ser absorvido (principalmente pelas folhas e caules e muito pouco pelas raízes) e depois transportado para os locais de crescimento da planta, onde atua. Isto faz com que a sua aplicação deva ser feita, por pulverização, depois de a planta ter “emergido” (quando ela já tem caule e folhas fora da terra), sendo pouco eficaz nas fases iniciais do desenvolvimento.

Quando se usa como agente dessecante, o glifosato (e outros agentes como o glufosinato, o diquato e a carfentazona-etilo, que é um herbicida de contacto) é aplicado, por pulverização, na fase final do desenvolvimento das plantas, alguns dias antes da colheita. Deste modo reduz-se a quantidade de matéria “verde” das plantas a colher (o que facilita a própria colheita, ao reduzir o trabalho das máquinas), mata-se as “ervas daninhas” que se estejam a desenvolver no campo de cultivo (o que facilita a sementeira seguinte) e ainda, no caso dos cereais, acelera-se o amadurecimento do “grão” (o que adianta a colheita e facilita a debulha).

Para ser usado como herbicida ou dessecante, o glifosato necessita de ser associado a produtos químicos adjuvantes (dos quais existem várias centenas de compostos diferentes): sais (geralmente de sódio, amónio, isopropilamónio, potássio e trimetilsulfóxido), surfatantes (em geral aminas terciárias, como a taloamina, que quebram a camada de proteção superfícial das plantas, facilitando a penetração do princípio ativo), inibidores de formação de espuma, corantes, biocidas e outros. As formulações disponíveis no mercado são de uma forma geral uma mistura aquosa, mais ou menos concentrada, contendo um sal de glifosato e adjuvantes (para uso aquático, o glifosato não se associa a surfacantes).

Na sequência do seu uso, foi ainda descoberto que o glifosato tem uma ação bactericida, fungicida e anti-parasitária, devido à sua interferência na síntese dos aminoácidos aromáticos de alguns micro-organismos, sendo usado como antibiótico de largo espectro em medicina veterinária desde o ano 2000.

Este “efeito antibiótico” também permite, nas plantas sujeitas à técnica da dessecagem, que o grão dos cereais, depois da colheita, tenha maior resistência a micro-organismos e se conserve melhor.

Os vários usos do glifosato

O principal uso do glifosato tem sido como herbicida, na agricultura e na silvicultura, p para reduzir as populações de “ervas daninhas” (monda química), disponibilizando os nutrientes do solo para o desenvolvimento das plantas cultivadas e facilitando as técnicas agrícolas.

Também como herbicida tem sido usado em larga escala em jardins públicos e privados, em campos de golfe, nas bermas das estradas, nos passeios, nas linhas de comboio e até em linhas de água (em canais ou valas, com regras especiais de aplicação, por ser perigoso para organismos aquáticos), para controlar o crescimento de plantas autóctones ou invasivas de uma forma rápida, fácil e barata. Mesmo parecendo estranho que se utilizem métodos químicos para fins ecológicos, alguns programas de restauração de habitats naturais têm recorrido ao uso do glifosato para eliminar plantas invasivas antes da reintrodução das plantas autóctones.

Algumas utilizações menos “ortodoxas” do glifosato, como herbicida, têm sido o combate à produção de cocaína, na Colômbia (pulverizando as plantações clandestinas de coca com meios aéreos, tal como tinha sucedido no México, na década de 1970, quando se pulverizavam as plantações de canábis com paraquato) e até como “arma de guerra”, para reduzir a densidade vegetal em zonas propícias a emboscadas, como as bermas das estradas e os arredores das povoações (tal como foi feito com o “agente laranja”, que foi usado como desfolhante pelo exército norte-americano na guerra do Vietname).

Como dessecante, o glifosato facilita as tarefas da colheita e da debulha, torna mais fácil a separação do grão, melhora a conservação do grão e aumenta o teor de sacarose da cana de açúcar.

Como antibiótico, está patenteado para uso veterinário desde 2011.

O glifosato e os organismos geneticamente modificados (OGM)

Nas últimas décadas têm sido desenvolvidos inúmeros OGM, entre as quais várias plantas geneticamente modificadas (PGM), no sentido de melhorar o rendimento (direto ou indireto) das plantações e de facilitar a aplicação das técnicas da agricultura intensiva, sem alteração das qualidades nutricionais das plantas.

Embora se estejam a investigar outros tipos de PGM (por exemplo as plantas “climate change ready”, que deverão resistir melhor a condições climáticas adversas), de momento existem basicamente três grupos de PGM: as plantas “Bt” (“resistentes a insetos”), que sintetizam uma toxina que os elimina, funcionando as próprias plantas como inseticidas, as plantas “RR” (“Roundup Ready”), que são resistentes ao glifosato, tolerando altas doses deste herbicida e as plantas mistas “Bt” + “RR”, que apresentam as duas resistências em simultâneo.

O cultivo destas plantas resistentes ao glifosato (soja, milho, alfafa, algodão, canola, beterraba sacarina…) permite usar doses muito altas de glifosato nas plantações, para controlar as “ervas daninhas”, já que as plantas geneticamente modificadas que são cultivadas não são afetadas pelo herbicida e se desenvolvem “normalmente” e “mais à vontade”.

Esta verdadeira “revolução agro-industrial” tem levado nos últimos anos ao aumento exponencial da utilização do glifosato (que atinge atualmente quase 1 milhão de toneladas por ano), com o consequente aumento da pressão deste herbicida sobre os sistemas ecológicos, especialmente nas vastas zonas de monocultura que caracterizam a agricultura intensiva da atualidade.

Os efeitos nocivos do glifosato

A complexidade e variedade dos efeitos do glifosato sobre plantas, animais e micro-organismos, a sua associação a tantos e tão variados produtos químicos adjuvantes usados nos preparados comerciais, a bio-seletividade que o seu uso intensivo induz e as incertezas sobre muitos mecanismos de ação (alterações genéticas, efeitos hormonais, alterações do sistema nervoso central…) têm dificultado a compreensão dos efeitos nocivos atribuídos a este herbicida.

Pode dizer-se, em sentido estrito, que o efeito principal do glifosato (inibição da enzima EPPS, responsável pela síntese dos aminoácidos aromáticos tirosina, triptofano e fenilalanina) não se exerce sobre os seres humanos, porque estes não possuem esta enzima e por isso não são capazes de sintetizar esses aminoácidos. Mas não se pode afirmar com certeza absoluta que o glifosato seja inofensivo e não esteja relacionado com o aumento do número de casos de aborto, malformações congénitas, autismo, doença de Alzheimer ou Parkinson, doenças auto-imunes e outras, tal como não se pode dizer que todos os estudos em modelos animais, as análises de correlação estatística e os dados epidemiológicos recolhidos nas zonas de maior pressão do glifosato sejam desprovidos de valor.

O certo é que os valores de glifosato legalmente permitidos nos alimentos ou nas rações para animais têm vindo a aumentar significativamente ao longo dos anos, numa tentativa das agências governamentais de “acomodar” o enorme aumento do uso de glifosato, decorrente do cultivo de plantas geneticamente modificadas resistentes ao herbicida.

Também é verdade que muitos estudos que têm sido feitos sobre esta matéria (muitas vezes pagos e/ou efetuados pela própria indústria agro-química) apontam no sentido de uma maior responsabilidade dos adjuvantes (sobretudo os surfatantes) do que do próprio glifosato, mas este não pode ser completamente “ilibado” de alguns efeitos nocivos diretos e indiretos:

  • O seu efeito quelante reduz o teor de alguns minerais no solo e nas plantas (as suas sementes ficam mais leves) e pode fazer o mesmo nos organismos animais;
  • O seu uso ao longo de décadas tem provocado o aparecimento de plantas autóctones ou invasivas resistentes, o que obriga a usar meios de monda mecânica, a aumentar as doses de glifosato ou a usar vários herbicidas ao mesmo tempo (entre ao quais o 2,4-D, um dos componentes do “agente laranja”) e até já provocou o abandono de muitos terrenos para fins agrícolas;
  • Devido ao seu efeito antibiótico, a presença do glifosato no solo, enquanto não é degradado, induz uma redução da sua bio-diversividade (vermes, bactérias e fungos necessários a uma boa “saúde” do solo);
  • O glifosato é mais tóxico para organismos aquáticos (sobretudo anfíbios, mas também peixe e marisco) do que terrestres ou aéreos. Apesar do seu uso limitado nas linhas de água, e das cautelas à sua utilização em terra, há sempre infiltrações e escorrências do herbicida, que tem sido detetado em águas subterrâneas e superficiais, havendo registo de problemas de saúde de animais aquáticos expostos ao glifosato.
  • O glifosato é classificado, segundo a Agência de Proteção do Ambiente dos Estados Unidos da América, como um composto moderadamente tóxico, pertencente à classe II (a segunda mais tóxica, com o aviso de “Perigo” nos rótulos das embalagens), existindo casos de intoxicação aguda por exposição acidental, sobretudo em trabalhadores que preparam ou aplicam o produto ou em pessoas inadvertidamente expostas a essa aplicação. Esta toxicidade é dose-dependente e é maior por via inalatória e ocular do que por via digestiva ou pela pele;
  • A toxicidade do glifosato em mamíferos e pássaros é relativamente baixa, mas o largo espectro de atividade do herbicida conduz à destruição de ambientes naturais e de algumas fontes de alimento de pássaros e anfíbios, levando à redução das populações autóctones e ao desequilíbrio dos ecossistemas;
  • Tal como sucede com muitos outros antibióticos usados na produção animal (animais para abate ou produção de ovos ou leite, peixe e marisco de aquacultura, etc.) o glifosato, mesmo presente em pequenas doses no nosso tubo digestivo, pode levar ao desequilíbrio da flora intestinal (diminuição da população de microorganismos sensíveis e crescimento excessivo de bactérias resistentes, como salmonellas, pseudomonas e clostridium dificile) e daí ao aparecimento de doenças inflamatórias intestinais, alergias e intolerâncias alimentares, deficiência de algumas vitaminas, má absorção de nutrientes e diminuição da produção de alguns aminoácidos precursores dos neurotransmissores. 

Em conclusão

Quer os efeitos prejudiciais do glifosato para o ambiente e a saúde pública sejam devidos ao próprio produto, aos seus adjuvantes ou à sua ação sinérgica, quer sejam ou não equacionados os problemas resultantes do uso de OGM (bio-diversidade, controle da produção agrícola por multinacionais, interesses geo-estratégicos, etc.), estamos perante um problema de grande dimensão e elevada complexidade.

O que está em causa é o modelo de desenvolvimento e de produção agrícola que se pretende seguir e que coloca em confronto modos de agricultura tradicional e intensiva (mais ou menos “saudáveis”), os princípios do risco ou da precaução em relação a efeitos tóxicos (sobretudo a longo prazo), a capacidade que a evolução científica e tecnológica tem para nos fazer caminhar no bom ou no mau sentido e a vontade que as sociedades têm de gastar mais ou menos para garantir a sua própria segurança (neste caso em relação à saúde), em detrimento de uma maior produtividade.

Enquanto não se chega a conclusões sobre os reais perigos do glifosato, enquanto os responsáveis políticos e administrativos não chegam a acordo sobre as medidas concretas a tomar (proibição absoluta ou limitação de uso, interdição de alguns adjuvantes, redução dos níveis permitidos nos alimentos e nas rações para animais…), cada um de nós tem de decidir o que fazer, individual e coletivamente, e para isso o melhor é estarmos informados. Este é o meu contributo para essa finalidade!

Por Viriato Horta, Médico Especialista em Medicina Geral e Familiar na Clínica Europa - Carcavelos