Fígado gordo ou esteatose hepática define-se como a acumulação de lípidos (gordura), sobretudo triglicéridos, no interior das células funcionantes do fígado (hepatócitos), como gotículas lipídicas no meio intracelular, que vêm a coalescer para formar um grande vacúolo de gordura que deforma a célula e pode comprometer a sua viabilidade.
A quantidade de gordura acumulada pode atingir mais de 2/3 do peso do fígado, levando a hepatomegália (aumento de volume do fígado), com desconforto ou dor no quadrante superior direito do abdómen.
Pode evoluir para esteatohepatite, em que se desenvolve inflamação crónica do fígado, com lesão das células hepáticas pelos lípidos tóxicos acumulados que, associado a sequelas da fibrose hepática concomitante, permite a transição para a cirrose hepática.
Quais são as causas?
A causa mais frequente é o consumo de álcool continuado, acima do limiar estimado para risco para a saúde, ou seja, 140 g/semana de álcool nos homens e 70 g/semana nas mulheres, o que equivale a 2 ou 1 unidade de qualquer bebida alcoólica /dia (1 U= 1 copo de vinho, 1 cerveja, 1 dose de destilado), respectivamente. O fígado gordo alcoólico torna-se quase inevitável com consumo superior a 80 g/dia de álcool, com risco de morte por cirrose alcoólica após período de 10-20 anos de esteatohepatite alcoólica subreptícia e assintomática.
No entanto, a preocupação actual é o acréscimo rápido da prevalência do fígado gordo não alcoólico (FGNA), relacionado com hábitos alimentares errados e sedentarismo crescente, conjugados com factores genéticos predisponentes, e que leva a uma incidência crescente de diabetes mellitus tipo 2 , devido à transição para esteatohepatite , com exportação de mediadores de inflamação crónica, a partir do fígado, para os restantes órgãos e tecidos, promovendo a anulação da acção da insulina produzida pelo pâncreas (resistência à insulina) e consequente aparecimento da diabetes.
A esteatohepatite não alcoólica está associada a condições metabólicas também com prevalência crescente, como a dislipidemia (72%), o excesso de peso/obesidade (82%) , diabetes (44%) e hipertensão arterial (68%), associadas na síndrome metabólica, ou isoladas como factor causal suficiente.
Quais os riscos para a saúde?
O risco do fígado gordo (FG) reside no seu potencial para progredir para esteatohepatite e cirrose hepática, devido à disrupção da estrutura organizada do fígado, pela inflamação e degenerescência/perda das células hepáticas (balonização e necrose), que estimula a formação de feixes de fibras de colagénio (septos fibrosos) que se enredam entre células e estruturas vasculares intra-hepáticas, delimitando ilhas de tecido viável mas desorganizado (nódulos de regeneração), o que corresponde à transição para cirrose.
Estima-se que a evolução de FG para esteatohepatite possa ocorrer em 10-15% dos casos de FG, o que se traduz por uma prevalência de 2-12% , a partir da prevalência observada de FG em 20-25% da população. A frequência de evolução da esteatohepatite para a cirrose é variável (10-20% em 15-20 anos) consoante o sexo (mais frequente nos homens), idade (superior a 50 anos), e a etnia/ área geográfica, e os antecedentes familiares (maior risco com casos similares na família), tendo sido já identificados alguns marcadores genéticos de predisposição quer para esteatohepatite, quer para a fibrose hepática subsequente.
O fígado gordo parece estar a aumentar de frequência?
Há a considerar o aumento de consumo alcoólico, não só com o padrão de consumo excessivo diário, ou como compulsão de ingestão maciça em episódios repetidos, que se irá traduzir pelo incremento na geração jovem da doença devida ao uso de álcool (anteriormente designada de abuso ou dependência).
A preocupação atual centra-se no incremento do FG não alcoólico, não só pelo acréscimo da prevalência de cirrose hepática por FGNA, com risco de carcinoma hepatocelular (cancro primário do fígado), emergente da desorganização genética e metabólica do fígado cirrótico. Estima-se que nos EUA, a principal causa de transplante hepático passe a ser, a partir de 2030, a doença terminal devida à esteatohepatite não alcoólica.
Ainda mais, a sobrecarga de doença devido ao FGNA vai-se repercutir também no aumento da mortalidade por doença cardíaca coronária, complicações da diabetes, acidentes vasculares devido a aterosclerose precoce. Tem sido observado que as principais causas de morte em doentes com FGNA são o enfarte do miocárdio (38%), o cancro em diferentes órgãos (19%) e em menor escala, a cirrose hepática (9%). A contribuição para a cancerigénese noutros órgãos provém da influência da inflamação crónica na desregulação do controle dos oncogenes, ainda mais facilitada com diabetes associada.
Com sei se o fígado gordo não alcoólico já evoluiu para cirrose hepática?
O diagnóstico de FG é sugerido pela ecografia abdominal superior que identifica um aspecto da estrutura do fígado compatível (hiperecogénico, hiperreflector). Nesta fase, as provas hepáticas são normais , pelo que o rastreio se deve orientar para a população com factores de risco conhecidos: diabetes, dislipidemia, excesso de peso, predomínio de gordura abdominal, revelado pelo perímetro de cintura, que traduz acumulação de tecido adiposo dentro do abdómen (em contraste com o tecido adiposo periférico com distribuição subcutânea).
A esteatohepatite não alcoólica não se revela por sintomas digestivos, nem hepatobiliares; pode-se suspeitar pelo perfil flutuante/mantido das provas hepáticas ALT e/ou GGT aumentadas, embora em 50% dos casos sejam normais. Tem sido debatida a abordagem dos doentes, mas a exclusão de outras causas de doença hepática crónica é obrigatória, pela similitude do quadro clínico-laboratorial inicial , e por se poderem associar entre si: hepatites virais crónicas B e C; hepatite autoimune e outras doenças autoimunes do fígado, hepatites tóxicas e medicamentosas, doenças genéticas frequentes como a hemocromatose, défice de alfa1- antitripsina e a doença de Wilson, sem esquecer a doença celíaca e as doenças vasculares do fígado.
O diagnóstico de esteatohepatite não alcoólica é necessário para fundamentar o plano de vigilância médica, e para motivar o doente para a indispensável mudança de estilo de vida, em termos de alimentação e de exercício físico, destinado à reversão da inflamação, da fibrose e até da esteatose, acessíveis apenas com perda de peso superior a 10% do peso inicial.
O diagnóstico convencional requer uma biópsia hepática, que estabelece o grau de lesão e o estadio da fibrose na pequena amostra de tecido obtida por punção/aspiração directa do fígado. No entanto, devido ao seu carácter invasivo, têm-se desenvolvido métodos não invasivos para avaliar o estadio da fibrose hepática, que prediz o risco de cirrose.
Nas duas últimas décadas tem-se difundido a elastografia hepática, sendo a elastografia transitória (Fibroscan) a mais conhecida, que estima a fibrose através da elasticidade hepática, medida por sonda externa apoiada na superfície da pele. Esta técnica permite também estimar o grau de esteatose e medições seriadas ao longo dos anos para observar a melhoria ou o agravamento da esteatohepatite.
Também foram propostas novas análises sanguíneas, para avaliar outros parâmetros de inflamação e/ou fibrose, que foram conjugadas com parâmetros biométricos, perfis genéticos e provas hepáticas, ou cálculos de estimativa do grau de esteatohepatite e /ou da presença de cirrose hepática, sem recurso à biópsia hepática.
Com se pode reverter o fígado gordo não alcoólico ou a esteatohepatite não alcoólica?
A única intervenção indispensável é a alteração do estilo de vida, com um esforço continuado de aumento de actividade física, tão simples como um período de marcha diária, ou em dias alternados, e a modificação dos hábitos alimentares, com redução da ingestão de alimentos muito calóricos , não só na redução dos lípidos da dieta ( que só devem corresponder a 15% das calorias ingeridas), como também na redução dos hidratos de carbono (mantidos numa proporção de 55% das calorias ingeridas), no reforço do predomínio de vegetais e frutas, e na abolição das bebidas alcoólicas e açucaradas com frutose adicionada. Estão abandonadas as dietas cetogénicas, com abolição de hidratos de carbono, bem como regimes agressivos de perda de peso rápida ou excessiva, considerando-se o objectivo ideal a perda igual ou superior a 10% do peso inicial.
Deve-se acentuar que em todas as fases é imprescindível a correcção farmacológica e dietética da diabetes, dislipidémia, excesso de peso, doença cardiovascular, privilegiando o contacto próximo com especialistas de Medicina Geral e Familiar, Endocrinologia e Cardiologia.
Para a esteatohepatite não alcoólica, em que além dos factores metabólicos, importa atenuar ou reverter um processo de inflamação do fígado com morte celular, têm sido estudadas a eficácia e segurança de fármacos já conhecidos pelo seu potencial efeito hepatoprotector, mas até agora não foi estabelecida nenhuma opção definitiva nos consensos científicos. Estão em curso múltiplos ensaios clínicos com novos fármacos, que poderão melhorar a perspectiva de controle da progressão da esteatohepatite, pela contenção dos mecanismos genéticos e/ou vias de sinalização da inflamação.
As explicações são da médica Beatriz Rodrigues, gastrenterologista no Centro de Gastrenterologia do Hospital CUF Infante Santo.
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