Talvez nunca tenha ouvido falar em diálise peritoneal mas se lhe dissermos que é uma forma de diálise habitualmente feita em casa, o termo ganha outro significado.

Os doentes que podem usufruir deste tratamento são os que têm insuficiência renal irreversível e as suas vantagens são muitas e devem ser conhecidas.

A diálise peritoneal é um tratamento substitutivo da função renal (remove as substâncias tóxicas do sangue e o excesso de água do organismo) que pode ser feito em casa pelo próprio doente. Este tipo de diálise aproveita o revestimento interior do abdómen, chamado membrana peritoneal, que funciona como um filtro fisiológico. Para tal, «é infundido um líquido estéril (líquido de diálise) no abdómen do doente, através de um cateter (um tubo fino de silicone não traumático), e as toxinas passam dos pequenos vasos sanguíneos que irrigam a membrana para este líquido», explica a nefrologista Anabela Rodrigues.

Após várias horas e sem que o doente note nem altere as suas actividades profissionais ou de lazer, «o líquido de diálise fica saturado das toxinas que foram removidas do doente e é então drenado e trocado por líquido de diálise fresco», explica Anabela Rodrigues. Este processo contínuo e diário permite «imitar o funcionamento dos rins nativos e é tão eficaz como a hemodiálise», cujo processo de filtragem é feito fora do corpo. Apesar de menos conhecida, a diálise peritoneal pode ser realizada pelo próprio doente sem necessitar de «manipulação de acessos vasculares nem contacto com o sangue». O procedimento é simples e não provoca dor no paciente.

Diálise peritoneal versus hemodiálise

Mesmo quando o doente trabalha, passeia ou convive, a diálise peritoneal domiciliária está sempre a ocorrer através do filtro que o doente possui no interior da sua barriga. «Não há sangue visível nem nenhum circuito extra-corporal», assegura a nefrologista.

«Tudo ocorre sem que o doente dê conta, porque depois de infundir o líquido de diálise na sua barriga, através de um cateter, este é encerrado e o doente pode ir trabalhar, passear… viver», acrescenta. Em contrapartida, a hemodiálise é realizada num centro de saúde especificamente habilitado para esse efeito. Neste caso, o doente deve deslocar-se à unidade de hemodiálise e cumprir as sessões de cerca de quatro horas, três vezes por semana.

«O doente precisa de tolerar, a cada tratamento, a picada de acesso vascular para que parte do sangue seja retirado e filtrado, através de uma máquina e de um filtro extra-corporal, e, depois, reinfundido no corpo. Algumas limitações deste tipo de diálise resultam do facto de esta ser intermitente. A qualidade de vida do doente pode ser lesada pelas deslocações ao centro de diálise, horários mais rígidos, mas também pelas alterações hemodinâmicas frequentes (reequilíbrio dos líquidos no corpo)», defende a nefrologista.

A quem se destina?

Quando os rins falham, o doente pode ser tratado através de três métodos de substituição renal crónica nomeadamente, a diálise peritoneal, a hemodiálise ou o transplante renal.

Segundo Anabela Rodrigues, «a altura em que a opção pela diálise peritoneal (feita em casa) é mais vantajosa é quando é aplicada como primeira forma de tratamento, porque confere maior sobrevivência aos doentes nos primeiros anos e poupa acessos vasculares, evitando complicações graves no futuro».

Ainda assim, é sabido que «alguns doentes também beneficiam com a diálise peritoneal após falência de hemodiálise ou perda de função do transplante renal». Algumas crianças podem igualmente ser tratadas com este tipo de diálise, com a vantagem de poderem «preservar as suas rotinas escolares e familiares», acrescenta a nefrologista. O candidato ideal a este tipo de tratamento é, por isso, a criança ou o adulto jovem, «todo o doente autónomo, activo e que pretenda manter-se independente apesar do tratamento, bem como a maioria dos doentes que têm ainda uma função renal residual».

Como se realiza o tratamento?

O doente pode fazer um tratamento manual e, neste regime, realizar, em regra, três trocas por dia (cada troca inclui a drenagem do líquido de diálise saturado e a sua substituição por líquido fresco, procedimento que dura cerca de 20 minutos). De acordo com Anabela Rodrigues, «as trocas respeitam o ritmo de vida ou trabalho do doente com grande flexibilidade. Por exemplo, procede-se a uma troca ao levantar, uma ao deitar e outra durante o dia, ao almoço ou fim da tarde, dependendo dos compromissos do doente».

Se o doente deixar de urinar ou precisar de mais diálise, «pode fazer uma quarta troca durante o dia ou, preferencialmente, transitar para diálise peritoneal automática, que recorre a uma cicladora, uma máquina que permite fazer o tratamento enquanto dorme».

Quais os benefícios?

Flexibilidade de horários, melhor
gestão de tempo, maior conforto e redução de algumas complicações
decorrentes da doença, com preservação mais duradora da função renal
residual, são algumas das vantagens da diálise peritoneal. «Se o doente
sentir os benefícios de fazer o tratamento em casa não vai querer mudar
de técnica», explica Anabela Rodrigues que, além de nefrologista, se
dedica à investigação continuada no âmbito da diálise peritoneal,
assegurando que centros experientes apresentam bons resultados mesmo em
doentes idosos.

Ainda assim, «há muita desinformação e falta de
formação nesta área», segundo Anabela Rodrigues. «Deixem os doentes
escolher, experimentar e verão que os resultados são gratificantes, quer
para o doente, quer para o médico que individualiza a sua prescrição de
tratamento», defende. A falta de conhecimento sobre as vantagens desta
técnica justifica os baixos números de adesão à diálise peritoneal.
«Apenas 5% dos doentes que necessitam de diálise conhecem esta alternativa ou fazem o tratamento através desta modalidade.»

Quanto custa?

O doente não paga o tratamento. Recebe em casa o material necessário devidamente suportado pelo Sistema Nacional de Saúde.

Recomendações

Existe uma série de cuidados que deve ter:

- A maioria dos doentes poderiam utilizar esta técnica desde que estivessem motivados para isso e tivessem capacidade de autodiálise.

- «Os procedimentos são ensinados por uma enfermeira, no decurso de poucos dias, para depois serem efectuados pelo próprio doente em casa, e são simples», esclarece Anabela Rodrigues.

- É aconselhável ter água corrente para lavar as mãos no domicílio e condições sanitárias básicas, embora a modalidade também tenha aplicação em países pouco desenvolvidos.

- «Uma situação limitante será a incapacidade de o doente para fazer ele próprio o seu tratamento», acrescenta a nefrologista. Alguns doentes têm o apoio de um familiar para executar a diálise nocturna com uma máquina (cicladora), o que pode contornar essa barreira e permitir ao doente fazer um tratamento que lhe viabilize mais conforto.

- «Só em situações de complicações intra-abdominais, tais como abcessos, tumores, inflamações, situações cirúrgicas recentes, pode a diálise peritoneal ser contra-indicada», salienta Anabela Rodrigues.

Texto: Cláudia Pinto com Anabela Rodrigues (nefrologista e consultora no Serviço de Nefrologia do Centro Hospitalar do Porto - Hospital de Santo António)