O nascimento da ovelha Dolly, há 13 anos, foi considerado pela revista Science o avanço científico do ano e deu o mote para a discussão universal sobre a clonagem de seres humanos. Em causa, a possibilidade de criação de pessoas com base na cópia genética de outras, vivas ou mortas.

Mais de uma década depois, a discussão sobre as implicações sociais, éticas e legais desta prática continua em curso. E, apesar de alguns anúncios mediáticos sobre a criação de clones humanos, fontes como o National Human Genome Research Institute (NHGRI) afirmam que não existem provas científicas sólidas de que esta já tenha sido conseguida.

À margem desta discussão existe, no entanto, um outro tipo de clonagem cujos promissores avanços médicos são cada vez mais reais. Ainda não a conhece?

Clonar para curar

«A clonagem terapêutica, também chamada clonagem de embriões, é a produção de embriões humanos para fins de investigação. O objectivo não é criar clones humanos, mas colher células estaminais que podem ser usadas para estudar o desenvolvimento humano e curar doenças», esclarece um documento oficial do Human Genome Project (HGP).

O trunfo das células estaminais está em serem indiferenciadas. Isto é, ao dividirem-se, podem originar qualquer tipo de células (indiferenciadas ou diferenciadas). Desta forma, «podem ser usadas para gerar virtualmente qualquer tipo de célula especializada do corpo humano», explica a mesma fonte.

Promessas

Imagine que aguarda há anos um transplante de um órgão doente (por exemplo, o coração, o fígado, o pâncreas ou um rim), sem esperança de encontrar um dador compatível. Agora suponha que era possível produzir um novo órgão em laboratório e implantá-lo de forma segura no seu corpo. É este tipo de revolução que a clonagem terapêutica pode permitir.

«Os investigadores esperam cultivar em laboratório tecidos saudáveis que possam ser usados para substituir tecidos doentes ou danificados», lê-se numa publicação do NHGRI. Se tal for possível com tecidos, sê-lo-á também com órgãos, o que acalenta a esperança de se vir a «reduzir significativamente a necessidade de doação de órgãos», sublinha o HGP.

Uma outra aplicação da clonagem terapêutica é o estudo das causas moleculares de doenças como o cancro, Alzheimer, Parkinson e problemas cardíacos, entre outros. Conhecidas as causas, será possível a criação de medicamentos adequados ao perfil genético de cada um. Para isso, «é necessário criar embriões clonados a partir das células de animais e seres humanos com essas doenças, de modo a estudar as suas células estaminais embrionárias», explica o NHGRI.

Células essenciais

Nem todas as células estaminais têm o mesmo interesse para a investigação terapêutica: «As células estaminais embrionárias são as mais versáteis de todas, já que são menos diferenciadas ou comprometidas com uma função específica que as células estaminais adultas», argumenta o NHGRI.

A diferença está na distinção entre células estaminais multipotentes e pluripotentes. Enquanto as primeiras «podem originar apenas um pequeno número de tipos de células diferentes, as últimas «podem originar qualquer tipo de célula existente no organismo, excepto as necessárias para desenvolver um feto no útero», explica o Stem Cell Information.

A utilização de células estaminais pluripotentes para fins científicos debate-se, no entanto, com inúmeras preocupações éticas, já que, ao contrário das multipotentes, existentes em muitos órgãos e tecidos do nosso organismo, as células pluripotentes apenas se encontram nos embriões humanos, que são destruídos após a sua extracção.

Como se faz um clone

O processo de extracção de células estaminais embrionárias considerado mais promissor para a clonagem terapêutica designa-se transferência nuclear de célula somática. Trata-se do mesmo processo usado para a criação da ovelha Dolly, como descreve o NHGRI:

  • Primeiro, são retiradas células maduras (por exemplo, células da pele) do organismo a clonar;
  • Depois, é usado um óvulo não fertilizado de uma fêmea da mesma espécie (animal ou humana), ao qual se retira o núcleo (estrutura que aloja o ADN desse organismo);
  • Aplicando um choque eléctrico, os cientistas conseguem que o óvulo sem núcleo se funda com uma das células da pele;
  • A nova célula fundida, que contém o núcleo das células da pele, divide-se e forma aquilo que virá a ser um embrião;
  • Para a clonagem reprodutiva (Dolly), o embrião seria implantado no útero de uma fêmea e daria origem a um clone do doador das células da pele, o que não acontece na clonagem terapêutica;
  • Ao final de  cinco dias, as células estaminais com o ADN do doador são extraídas do blastócito (embrião dividido), podendo ser usadas para criar linhas de células estaminais, isto é, «culturas de células que podem ser produzidas indefinidamente em laboratório», esclarece o Stem Cell.

A medicina regenerativa

Gerar tecidos e órgãos aptos para transplante é uma das grandes ambições da clonagem usada para fins terapêuticos.

Neste sentido, ela pode ser uma peça central no futuro da medicina regenerativa, definida pelo National Institutes of Health como «processo de criação de tecidos vivos e funcionais para reparar ou substituir tecidos ou órgãos que perderam as suas funções devido à idade, doença ou a defeitos congénitos».

Um bom exemplo deste potencial é a prática da xenotransplantação, isto é, o transplante de órgãos e tecidos de animais para seres humanos. Hoje em dia, segundo o National Institutes of Health, queimaduras em segundo grau, úlceras crónicas de pressão, úlceras cutâneas de pessoas diabéticas e lacerações profundas na pele já são tratadas com a ajuda de um material desenvolvido a partir do intestino do porco. No entanto, a clonagem terapêutica ambiciona ir mais longe, recorrendo à «criação de porcos geneticamente modificados dos quais podem ser retirados órgãos para transplantes humanos».

Da mesma forma, actualmente «é possível criar uma bexiga a partir das células estaminais de uma pessoa, desenvolvê-la fora do corpo e transplantá-la com sucesso». Não é, portanto, por acaso que o National Institutes of Health considera que «a medicina regenerativa tem potencial para resolver o problema da falta de órgãos disponíveis para doação».

Apesar de todos os avanços, o recurso a transplantes de órgãos clonados depende da resposta a vários desafios técnicos: «Têm que ser desenvolvidas tecnologias mais efectivas para a criação de embriões humanos, para colheita de células estaminais e produção de órgãos a partir delas», refere o HGP.

Neste âmbito, a relação entre células estaminais e as células cancerosas é uma das áreas que mais carece de investigação: «Ambos os tipos de células têm capacidade para proliferar indefinidamente e alguns estudos mostram que após 60 ciclos de divisão celular, as células estaminais podem acumular mutações que podem levar ao cancro», alerta o NHGRI.

Em Janeiro de 2009, a empresa norte-americana Geron obteve autorização da Food and Drug Administration para começar os primeiros ensaios clínicos com células derivadas de células embrionárias humanas, um passo que promete alimentar o progresso das investigações, mas também a discussão sobre as implicações éticas.

Texto: Rita Miguel