Expressão tão portuguesa e tão verdade na correlação entre a higiene oral e a saúde cardiovascular. A cavidade oral é uma porta de entrada para o nosso corpo. Manter uma boa higiene oral é crucial para o bem-estar e saúde geral. Se não forem controladas, as doenças da cavidade oral podem impactar negativamente no resto do corpo. Uma boca saudável pode ajudar na prevenção de outras condições sistémicas, como doenças cardiovasculares e respiratórias, cancro e diabetes, como já demonstrado por muita evidência científica.
No que toca às doenças cardiovasculares, uma das grandes preocupações tanto para os médicos dentistas como para os médicos cardiologistas é a endocardite bacteriana (EB), devido à sua alta taxa de morbilidade e mortalidade. Embora seja uma patologia relativamente rara (3-10 casos por cada 100 000 por ano), é altamente mortal, apresentando uma taxa de mortalidade superior a 20% após apenas 30 dias. Mais, entre 24% a 35% dos casos de endocardite bacteriana são causados por tratamentos a que o paciente está a ser sujeito.
As diretrizes relativamente à profilaxia antibiótica têm vindo a mudar, e parece que os médicos dentistas ainda não aderiram todos às mesmas guidelines; sem dados sobre Portugal um estudo feito nos Estados Unidos identifica os médicos dentistas como a classe médica que mais prescreve antibióticos, e em 80% dos casos que foi feita profilaxia não era necessário, revelando que está a ocorrer antibioticoterapia em excesso.
Noutro estudo feito sobre a profilaxia antibiótica em 2020, em Espanha, onde 291 profissionais de saúde foram entrevistados (incluindo dentistas e cardiologistas) os resultados falaram por si: apenas 17,2% sabe quais são os pacientes que necessitam de profilaxia antibiótica e mais de 50% medica em procedimentos que não são necessários; 45,5% faz a antibioticoterapia com amoxicilina enquanto 41,7% faz com amoxicilina + ácido clavulânico.
Qual é a conclusão que podemos retirar daqui? Há uma baixa adesão e cumprimento das últimas diretrizes recomendadas pela Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC), em 2015, levando a um não consenso entre colegas. A profilaxia está a ser recomendada em procedimentos diferentes, em pacientes onde não é indicada, promovendo a resistência antibiótica e a menor eficácia clínica.
As últimas guidelines disponíveis (ESC – 2015 – revistas em Setembro de 2021, mas sem qualquer atualização ao tema da EB) têm uma atitude perante a profilaxia antibiótica mais limitada e restrita do que antigamente. Apenas os pacientes considerados de alto risco devem fazer profilaxia antibiótica:
- Pacientes com prótese valvular ou com material protético usado para plastia valvular cardíaca
- Pacientes com EB anterior
- Pacientes com doença cardíaca congénita cianótica (DCC) não tratada e aqueles com DCC que têm shunts ou outras próteses. Após a reparação cirúrgica sem defeitos residuais, a guideline recomenda a profilaxia nos primeiros 6 meses após o procedimento até que ocorra a endotelização do material protético.
Embora as directrizes da American Heart Association/American College of Cardiology recomendem a profilaxia em doentes sujeitos a transplante cardíaco que desenvolvem valvulopatia cardíaca, não é apoiado por forte evidência e não é recomendado pelas guidelines da ESC.
A profilaxia antibiótica não é recomendada (não só não é aconselhável como pode ser prejudicial) para pacientes com risco intermediário de EB, ou seja, qualquer outra forma de doença valvular nativa (incluindo as condições mais comumente identificadas: válvula aórtica bicúspide, prolapso da válvula mitral e estenose aórtica calcificada). No entanto, tanto os pacientes de risco intermédio, como os de alto risco devem ser alertados sobre a importância da higiene oral e cutânea.
É preciso saber quando e como fazer a profilaxia antibiótica para a EB, como também aconselhar os pacientes de risco a adquirir uma boa higiene oral no dia-a-dia. Há evidência que a bacteriemia de baixo grau, mas repetida, ocorre com mais frequência com uma técnica de escovagem errada, a não utilização de fio dentário e mastigação, aumentando o risco de EB pela bacteriemia cumulativa. Recomenda-se alertar os pacientes para uma boa higiene oral, visitas regulares ao médico dentista, cuidados redobrados na limpeza de feridas e cuidados cutâneos, como atitudes fundamentais para a prevenção da EB.
Os procedimentos dentários de risco para a EB são qualquer manipulação e perfuração da gengiva/mucosa e região periapical dos dentes (incluindo procedimentos de alisamento radicular e endodontia). A profilaxia antibiótica não é recomendada para injeções de anestésico local em tecidos não infetados, tratamento de cáries superficiais, remoção de suturas, raio-x, colocação ou ajuste de aparelhos ortodônticos ou próteses removíveis ou após a exfoliação de dentes decíduos ou trauma dos lábios e mucosa oral. Segundo a ESC, também não é recomendada em procedimentos do trato respiratório e gastrointestinal como laringoscopias, entubações, endoscopias, colonoscopias, citoscopias.
Atualmente, as guidelines recomendam:
- Pacientes sem alergia à penicilina – amoxicilina, 30 a 60 min antes do procedimento, 2g para adultos e 50 mg/kg para crianças
- Pacientes com alergia à penicilina – clindamicina, 30 a 60 min antes, 600 mg para adultos e 20 mg/kg para crianças
A adesão às guidelines relativas à profilaxia antibiótica da EB deve ser melhorada no meio da Medicina Dentária, de forma a diminuir a incidência desta patologia, melhorar a eficácia clínica e prevenir potenciais resistências antibióticas.
A especialidade de Medicina Geral e Familiar é a porta de entrada dos portugueses na Saúde, pelo que será importante advertirem os pacientes com patologias cardiovasculares para a manutenção de uma boa higiene oral. O reforço na Cardiologia, nos pacientes de risco referidos acima deverão ser informados por este especialista do risco de EB e a sua relação com os cuidados de saúde oral. Cabe aos médicos dentistas identificar quem é o paciente de risco e se necessita de profilaxia antibiótica, com base na melhor evidência. Acima de tudo, deve-se recomendar uma mais e melhor higiene oral e visitas mais regulares ao dentista, porque a prevenção é de crucial importância.
Mais vale ter o coração na boca e dizer o que a evidência demonstra.
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