O Mundo vive uma Páscoa diferente. Não, não quer dizer que Cristo não ressuscite ao terceiro dia. Não é isso. Apenas que, devido ao distanciamento social forçado em época de pandemia, não nos é possível passá-la com a família.

Deus, fartinho que satirizassem a época, optou por dar-nos uma Quaresma à séria. Com todo o sacrifício a que temos direito. Quase que tivemos livre trânsito para comer carne numa sexta-feira santa. O que é que pode acontecer pior do que um vírus que paralisa o mundo?

Muitas coisas ficaram proteladas. O beijo na cruz - essa segunda troca de fluidos à escala mundial permitida pelo clero uma vez por ano e por razões objectivas - deixou de acontecer. Era quase um interrail de germes que deixou de acontecer. Como se beijasse o meu bairro todo por banda larga. Como se aquele pequeno pano que passam na cruz entre beijos afugentasse a bicheza.

Isto que fizeram à Páscoa é mau para todos, mas é pior para quem se julga mais perto do céu. Sim, porque quem demonstra um excesso de devoção religiosa julga-se num lugar cimeiro no ranking da eternidade. Como se a esmola que entregam na igreja fosse o pagamento de uma renda no céu. Essas beatas, este ano, viram a sua propriedade hipotecada. Há uma tristeza inerente quando se vê cancelada a única altura do ano em que se sentem mais perto de estar numa esteticista, dado que é quando desbastam a frente da casa para receberem um homem que, de tão desejoso e feliz pelo momento ansiado, não pára de proferir a palavra “Aleluia!”, enquanto abana o sino e é remunerado à saída.

Pode ser de mim, mas fico sempre com a ideia de que ressuscitar é chato. Parece que nem morrer em paz podemos. Deve ser a mesma sensação de quando estamos quase a adormecer e alguém nos entra no quarto a perguntar se estávamos a dormir. Acaba por ser semelhante a quando nos ligam a meio da noite e atendemos com aquela voz rouca e nos voltam a questionar se estávamos a dormir, ao que respondemos “Não, não. Estava ali na varanda a gritar sozinho às quatro da manhã. Se precisas de alguma coisa diz-me rápido porque tenho de voltar para lá”.

É o primeiro ano em que Cristo vai ressuscitar por wireless. Até aqui, Jesus tinha subido aos céus sem nenhum percalço. Este ano vai fazê-lo numa rede sem fios, tornando todo o processo mais arriscado. Há sempre o risco de Ele cair, de cair a ligação pelo número de fiéis online ou de cair o router, por o meu sobrinho andar impossível por estar há um mês de quarentena.

Já para não falar da chatice que é ressuscitar e ter de fazê-lo a dois metros de distância. Tira impacto ao milagre. Isso aliado à inconsciência de fazê-lo sem máscara. Hoje em dia, só é bem visto ressuscitar se for feito em casa, para evitar olhares reprovadores de terceiros. Se for feito na via pública, sujeitam-se a serem detidos por não terem um documento que comprove que estão a trabalhar.

A única forma de fazer isto bem e aproximar os fiéis da igreja em tempos de pandemia, é se a ressurreição for feita num live do Instagram ou num vídeo no YouTube. Já estou a imaginar Cristo, com grande edição, a dizer “Como é que é, meus putos? Daqui fala o vosso Cristoh2020, todo ressuscitadinho, para os invejosos que queriam acabar com o meu canal. Já sabes: quem, como eu, quiser ressuscitar, só tem de subscrever o canal e seguir o link que está nos comentários. Vão ter sempre de falecer primeiro, mas garanto-vos que dois em cada dez consegue ressuscitar. Compensa, meus putos. Já sabem que este vídeo teve o patrocínio da drogaria “100Pregos”. Se quiseres ter 10% de desconto, só tens de usar o meu código #MessiasCoador. Fui!”.

O mundo está estranho, é certo. Mas tenho cá para mim, que isto já não é de agora.

Um artigo do médico e humorista Carlos Vidal.