Como te sentes?
Eu estou bem e pronto para outra. Mas desta vez numa ilha qualquer paradisíaca, em que possa comer qualquer coisa e mergulhar no mar, sem estar fechado em quatro paredes. Não, fora de brincadeiras, estou bem e não foi preciso ser ventilado. Fui diagnosticado com COVID-19 na quarta-feira (11.03) ao final do dia. Comecei a ter os primeiros sintomas na terça-feira (10.03) depois de almoço.
Que sintomas?
Febre, dores de cabeça, dores no corpo, calafrios, dores de cabeça...
Desconfiaste que podia ser COVID-19?
Não, não desconfiei de nada, apesar de estar muito ciente do problema do novo coronavírus, porque falo com pessoas na Ásia e sabia o que estava a acontecer lá, o que estava a ser camuflado e o que estava para chegar a Portugal.
Liguei para a linha SNS24, porque a Higiene e Segurança do Trabalho e o Plano de Contingência [da empresa] assim o exigia, mas não obtive resposta. Nunca me atenderam, liguei várias vezes. Acabei por ir ao Hospital de Águeda, porque estava a cinco minutos dali, e expliquei a situação. Meteram-me logo numa sala de isolamento, onde estive até ao dia seguinte à espera de indicações, e depois fui transportado em segurança, pelo INEM, para Coimbra.
Sabes como é que foste contagiado?
Não sei nem como, nem quando, nem por quem.
Jornais locais em Águeda dizem que estiveste com italianos.
Estive com italianos no dia 1 de março, na Lousã, num training camp, mas eles estão todos bem e sem sintomas, assim como a minha equipa, a MFT, de downhill, enduro e ebikes. De qualquer das formas, todos estão em quarentena.
Os médicos vão ter de escolher e tomar decisões que vão definir a vida ou a morte
Não estiveste no estrangeiro?
Não estive no estrangeiro e até cancelei uma viagem que tinha para Taiwan, para uma feira lá. Também não fui para o Mónaco numa viagem de trabalho, porque estou lesionado num pé, portanto não viajei para parte nenhuma.
Nos 15 dias antes de apresentares os primeiros sintomas, estiveste sempre em Águeda?
Sim, por Aveiro, Águeda, Costa Nova e fui uma vez à Lousã.
Não estiveste em nenhum daqueles espetáculos em Ílhavo ou Albergaria, nem no Hard Club, no Porto, onde estiveram outros doentes com COVID-19?
Não, não estive em nenhum desses sítios. Quem esteve no Hard Club, foi o Ricardo, que está aqui ao meu lado, no mesmo quarto de hospital.
Tu és um daqueles casos em que não se conhece a cadeia de transmissão do vírus?
Sim. Segundo falei com presidente da Câmara de Águeda, Jorge Almeida, já foi ativado um plano de contingência, porque se perdeu o controlo da cadeia de transmissão. Não se sabe onde está o foco inicial de contágio. Neste momento, ninguém sabe onde está a origem.
Relativamente à tua situação médica, como está a evoluir?
Estou bem, estou estável, não tenho febre, não tenho dores de cabeça e a tosse que tenho é muito residual. Tenho controlado as dores no corpo com paracetamol e na verdade estou mais preocupado com o meu pé, que está com uma entorse, e com uma alergia. De resto, sinto-me bem.
Fazes análises todos os dias?
Não, não são diárias. Fiz análises antes de ontem e fiz um raio-X aos pulmões. Está tudo bem. Os pulmões estão bem. Diariamente, medem-se a tensão, pulsação e temperatura e também me controlam a respiração.
Tens previsão de alta?
Não sei, não me disseram ainda nada. Está a entrar cada vez mais gente no hospital e eles não têm mãos a medir. Não tenho tido muito feedback, mas o presidente da Câmara Municipal de Águeda falou-me na possibilidade de ter alta dentro de uma semana.
Vais para tua casa?
Vou para minha casa e é lá que vou ficar, como aliás todas as pessoas o devem fazer. Com os cuidados e recomendações que ainda vou receber.
Estou muito ciente deste problema e de como ainda estamos no início da pandemia. Isto vai escalar a uma dimensão que as pessoas não têm noção. A situação vai ficar muito mais grave nas próximas semanas.
Nós estamos perante uma crise social, económica e de saúde pública e as pessoas ainda não perceberam isto
Achas que as pessoas, cidadãos em geral, estão conscientes dos riscos?
Se nós pudermos ficar em casa e evitar ir às urgências, melhor, porque se não cumprirmos as normas, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) vai bloquear, vai entrar em colapso e vai haver gente que não vai ser tratada. Não vão ser tratadas no hospital, porque nem no corredor vão ter espaço. Não vai haver ventiladores suficientes. Os médicos vão ter de escolher e tomar decisões que vão definir a vida ou a morte. As pessoas têm de estar conscientes deste risco. Os hospitais não vão conseguir dar resposta a todos.
E estarão conscientes?
Nós estamos perante uma crise social, económica e de saúde pública e as pessoas ainda não perceberam isto.
Por outro lado, há muitos negócios que não sei como vão sobreviver durante dois meses, nem como é que vão pagar contas. Isto é um desafio para todos e é de uma dimensão a que não estamos habituados. Tivemos a Troika, mas nunca tivemos uma crise com este impacto económico e social. Não estamos preparados minimamente, mas ninguém está.
Nós continuamos a tomar decisões com base em achismos, em vez de olharmos a longo prazo e tomarmos logo decisões rápidas
De qualquer das formas, nós reagimos tarde, quando já tínhamos o exemplo de Itália para poder olhar e tirar conclusões. Deixámo-nos andar e estamos agora a pôr remendos no problema.
Porque dizes isso?
Vamos fechar as escolas na segunda-feira, em vez de as termos fechado logo; só fechamos os bares depois das 21h; enquanto em Itália se passas junto a uma pessoa, apanhas uma multa e voltas para casa.
Itália só chegou a esta situação, porque facilitou. Também é [um país] maior e os casos que surgiram inicialmente eram muito graves. Não havia ventiladores para todos e o vírus começou a espalhar-se rapidamente, atingindo estas proporções.
Espanha está a ir pelo mesmo caminho e nós continuamos a tomar decisões com base em achismos, em vez de olharmos a longo prazo e tomarmos logo decisões rápidas.
Achas que o Governo deveria adotar medidas mais restritivas?
O Governo já deveria ter tomado medidas mais restritivas há muito mais tempo. Já deveria ter bloqueado acessos, restringido viagens, aeroportos, fronteiras, caminhos de ferro. Acredito que o vírus já cá anda há muito tempo, não só há três semanas. Só que demorou a ser do conhecimento geral. Agora, vai começar a espalhar-se e vai afetar toda a gente que sair de casa e não cumprir as recomendações das autoridades de saúde. Vai afetar todos, de uma forma ou de outra. É uma questão de tempo.
Vamos passar de centenas de casos para milhares. Foi o que aconteceu na China, porque tinham cidades com 500 infetados, mas na verdade já sabiam que não eram só 500, eram uns 2.500, porque muitos deles não estavam diagnosticados. A comunicação social não difundiu essa informação porque isso não estava confirmado e não queria alarmar as pessoas.
Mas neste momento é preciso alarmar. Se a comunicação social tem de alarmar as pessoas é agora. É claro que é preciso ser-se ponderado, mas nesta situação é mesmo necessário criar alarme social. Isto é grave, é um problema mundial, não é um problema do Zé Povinho, nem de Águeda, nem de Aveiro. Estamos perante um problema que é de todos. Temos todos de agir e estar unidos nesta causa.
Nos dias anteriores ao teu internamento, tiveste contacto com muita gente?
Sim, sou uma pessoa muito social e tive a minha vida normal. Estive com muita gente mesmo. Nos dias anteriores, estive com amigos a jantar e com os colaboradores da empresa. Nas últimas duas semanas, fiz a minha vida normal. Andei de bicicleta, fiz compras, fui ao shopping, saí à noite, "fui na balada", como diz o brasileiro. Não sabia que estava infetado e não tinha sintomas, por isso fiz a minha vida normal.
Contactaste essas pessoas depois do teu diagnóstico?
Sim, com todas as pessoas próximas com quem estive em contacto. Dei instruções nas minhas redes sociais… Mas o vírus não se transmite, porque paira no ar. Transmite-se por contacto próximo com pessoas infetadas pelo vírus, ou superfícies e objetos contaminados. Esta doença transmite-se através de gotículas libertadas pelo nariz ou boca quando tossimos ou espirramos, que podem atingir diretamente a boca, nariz e olhos de quem estiver próximo. Por outro lado, as gotículas podem depositar-se nos objetos ou superfícies que rodeiam a pessoa infetada. Por sua vez, outras pessoas podem infetar-se ao tocar nestes objetos ou superfícies e depois tocar nos olhos, nariz ou boca com as mãos.
Ou seja, não é por estarmos 50 pessoas numa sala, estando uma pessoa infetada, que os outros 49 ficam contaminados. Mas as pessoas têm de se vigiar, estar atentas a sintomas, estar isoladas e reservadas em casa, medir a temperatura… Quando digo isto, refiro-me não só às pessoas que contactaram comigo, mas no fundo a toda a gente, tal como referem as diretrizes nacionais da Direção-Geral da Saúde (DGS).
Isto é grave, é um problema mundial, não é um problema do Zé Povinho, nem de Águeda, nem de Aveiro. Estamos perante um problema que é de todos. Temos todos de agir e estar unidos nesta causa
A empresa onde trabalhas fechou?
Vai fechar segunda-feira durante duas semanas.
Há mais casos na empresa?
Há mais um caso.
As autoridades de saúde têm estado em contacto com as pessoas com quem estiveste nos dias anteriores ao diagnóstico?
Sim. O delegado de saúde de Águeda e mais duas colaboradoras têm feito esses contactos e essa triagem. Neste momento também tenho os meus pais em casa de quarentena. Todas as pessoas que tiveram contacto comigo estão em isolamento.
No CHUC, já não estás sozinho num quarto? É um quarto de pressão negativa?
Sim, exatamente. Estou com o Ricardo, que foi o primeiro caso em Coimbra. Ele esteve no Hard Club. No fundo esteve a divertir-se e a fazer a sua vida normal, como eu.
Estamos num quarto de pressão negativa, que é como se fosse um búnquer. Inicialmente estávamos isolados, mas agora eu e o Ricardo estamos juntos, porque estamos a recuperar bem e não há necessidade de estarmos separados. Por outro lado, há cada vez mais pessoas a chegar e são precisos quartos.
Como é que a equipa médica está a lidar com esta situação?
Depende muito das pessoas. Nós tentamos alegrá-los e levar isto com positivismo. Metemos música e fazemos brincadeiras para diminuir a carga emocional e o stress que enfermeiros e médicos estão a enfrentar.
Os médicos e enfermeiros vão variando, de dia para dia, mas estão a levar isto com muito profissionalismo. Sinto que estão sobrecarregados, mas continuam a dar o máximo. Uns estão a acusar mais cansaço que outros. Alguns já têm a experiência da Gripe A (2009) e sabem o que está a acontecer e o que ainda está para acontecer.
Como é que os profissionais de saúde contactam convosco?
Eles tentam vir cá pouco, porque os equipamentos são poucos e são descartáveis. Portanto, médicos e enfermeiros evitam ao máximo entrar no nosso quarto, para usar o menor número possível de equipamentos. Para entrar aqui têm vestir um fato quase de astronauta.
Quando os profissionais médicos estão no quarto, tens de ter algum cuidado em especial?
Sim, tenho de ter a máscara colocada quando entram no quarto.
Pedro Xavier Simões (entrevistado) e Nuno de Noronha (jornalista) tratam-se por tu, porque são amigos e antigos colegas de escola. Esta entrevista foi conduzida por chamada telefónica, através de uma aplicação móvel com ligação à internet.
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