
A médica dentista Yola Figueiredo defende uma nova abordagem à forma como se olha a saúde oral em Portugal. Apesar da crescente oferta académica e profissional, Yola Figueiredo alerta para um cenário exigente, face à baixa literacia, estigmas e práticas básicas de higiene oral negligenciadas. “Há quem escove os dentes uma vez por dia — ou nem isso”, lamenta.
Autora de Pela Boca Nasce a Saúde (edição Oficina do Livro), a também docente universitária, formadora e palestrante propõe uma medicina dentária integrativa e humanizada, que vai além do tratamento convencional. A sua prática clínica considera corpo, mente e emoções — e, muitas vezes, uma consulta começa com uma conversa. “Tratar um dente não é só tapar um buraco, é tocar numa memória”, afirma.
No livro que agora entrega aos escaparates, a autora aborda temas como a toxicidade de químicos presentes em produtos de higiene oral, a relação entre doenças dentárias e problemas sistémicos — como diabetes ou doenças cardíacas —, e ainda a ligação entre dentes e emoções. Influenciada pela psiconeuroodontologia e pela medicina tradicional chinesa, Yola Figueiredo associa cada dente a aspetos da personalidade, padrões familiares ou traumas antigos. “Os dentes são como caixinhas de Pandora”, destaca.
O livro inclui dicas práticas, alternativas naturais e um olhar interdisciplinar sobre a saúde oral. “Um médico dentista tem de ser, antes de tudo, um artista”, sublinha, defendendo a beleza das imperfeições e a importância do autoconhecimento.
Escovar os dentes é apenas o ponto de partida. A transformação, acredita, é mais profunda: “transformo sorrisos com as minhas mãos, mas começa por dentro”.
Yola Figueiredo nasceu em Luanda e cresceu em Portugal, formou se como médica dentista há mais de 20 anos e gere atualmente a sua própria clínica, onde pratica medicina dentária numa vertente mais Integrativa e biológica. Tem um mestrado em Medicina Dentária, com práticas em ozonoterapia, implantologia cerâmica e reabilitação oral.
Antes de nos determos no seu livro e na sua carreira gostaria que nos desse um panorama sobre a saúde oral em Portugal. Como profissional como encara o cenário presente?
Em relação à saúde oral em Portugal, acredito que ainda há um longo caminho a percorrer, também no que toca ao papel dos profissionais. Neste momento somos muitos, porque também existe uma ampla oferta académica. Confesso que, neste momento, a medicina dentária é uma profissão um pouco difícil. Se um jovem me perguntar se é fácil o percurso, respondo-lhe que não é. Exige muito a nível de estudo e também a nível financeiro, porque é uma carreira que exige muita formação. Também competimos com o “Doutor Google” [risos]. Há pessoas que nos trazem diagnósticos feitos por elas com recurso à Internet.
Infelizmente, não há uma grande literacia no que respeita à saúde oral.
Também enfrentam os desafios relacionados com a Inteligência Artificial...
Sim. Acaba-se por desumanizar também um pouco os serviços, e é também sobre este tema que falo, quer no meu livro, quer na minha prática clínica. Centro-me no processo de humanização, que é muito importante. Infelizmente, não há uma grande literacia no que respeita à saúde oral. Ainda recebo pacientes que me dizem: "não uso o fio dentário"; " escovo os dentes uma vez por dia", alguns nem os escovam. Infelizmente, ainda nos deparamos com estas questões de higiene básica. A medicina dentária começou a ser compartimentada, tal como outras especialidades: o otorrino de um lado, o oftalmologista de outro, só para dar dois exemplos. Compartimentou-se e especializou-se cada vez mais. Por um lado, é bom, porque quem sabe sobre aquele tema sabe e ponto. Mas, por outro lado, perde-se a noção do todo. Quando faço esta medicina dentária mais biológica, mais integrativa, há quem lhe chame holística. Uma medicina dentária mais sustentável, orgânica, sistémica, que procura a relação do corpo com os dentes. Eu digo muitas vezes: " não trato dentes, trato gente."
Como refere, a sua trajetória na medicina dentária é marcada por uma abordagem integrativa e holística. Quer, brevemente, partilhar como se desenvolveu ao longo da sua carreira esta perspetiva integrada? No que difere da medicina dentária convencional?
Sou uma pessoa curiosa, questiono tudo e muito. Esta característica levou-me a procurar respostas para tratamentos que, considerava, podiam ter uma melhor resposta. Quando terminei a faculdade em 2002, propuseram-me ficar como monitora. Comecei na cadeira de endodontia. Lecionei na universidade durante nove anos. Depois passei a assistente. Este ano voltei, numa outra temática, a da ozonoterapia. Sempre fiz duas a três formações por ano. Desde 1999/2000, que frequento congressos. A partir de 2002 comecei a fazer formação certificada na área da medicina dentária. Tenho pós-graduações em quase todas as áreas da medicina dentária: periodontologia, ortodontia, implantes, reabilitação oral, oclusão, cronobiologia do sono. Também fiz mestrado em estética. Estudei Programação Neuro Linguística. Sempre tive esta ligação com o ser e com o outro, nesta perspetiva de observadora. Esta medicina dentária mais humanizada é o que me diferencia. Faço uma avaliação mais integral da pessoa, considerando corpo físico, mental, emocional e espiritual. Por vezes, percebo que não é dia para tratamento de certo paciente e digo-lhe: "hoje vamos conversar". A medicina dentária convencional é mais mecanicista: entra, anestesia, trata, paga, sai. E eu não me revejo nessa prática. Cada vez menos.
Logo na introdução ao livro refere que quer unir a arte à saúde. Diz mesmo que “um médico dentista só o é se for primeiro um artista”. Quer explicar-nos?
Precisa de carinho e de amor. Um artista vê beleza onde outros não a veem. Não sou apologista de colocar facetas de ponta a ponta, como se fosse o teclado de um piano. Acho que o belo vem da diferença. Gosto de pintar. Pinto com aguarelas desde pequena. Pintava as paredes da casa dos meus pais [risos]. Considero que temos de ser um pouco artistas. Não é o padrão, o tudo igual, o branco mais branco, que é bonito. Mas, para mim, um dentinho um bocadinho torto pode ser muito bonito. Tem a ver com a expressão de cada um.
E com a personalidade também?
Exatamente, também com a personalidade. Isto leva-nos a outro tema que me é grato e que levo para o meu livro: o autoconhecimento através dos dentes.
Como se define esse autoconhecimento através dos dentes?
Os nossos dentes “falam” muito sobre quem somos. Dentro da linha dos estudos que empreendi, também me centrei no autoconhecimento. Quando me comecei a deter na questão do comportamento humano — a psicologia e a filosofia sempre me acompanharam — encontrei livros que abordavam os dentes numa perspetiva psicoemocional, diferente. E pensei: "isto é interessante". Fiz formação com Christian Beyer, um odontólogo francês que estuda a relação entre os nossos problemas dentários e as nossas questões emocionais e psicológicas. Esta abordagem aproxima-nos dos pacientes, permite-nos até fazer um pouco de coaching.
A boca é o órgão onde tudo começa: a amamentação, a deglutição, a respiração, a fala, a mastigação. Os bebés agarram objetos, mordem, mamam, respiram pelo nariz e pela boca. Esta primeira fase oral é importantíssima. E ao longo da vida também. No meu livro falo desde a grávida até ao idoso, para mostrar onde começa e onde acaba. Muitas vezes os idosos perdem todos os dentes e ficam como bebés. É preciso ter carinho por todas as fases da vida. Falo das várias etapas de desenvolvimento — do organismo e da fase oral, e das outras fases também.
A cárie é a doença infeciosa mais comum à escala mundial. O cancro oral é a sexta maior causa de morte a nível mundial.
O seu livro destaca a ligação entre a saúde oral e o bem-estar físico e emocional. Seria importante ilustrarmos com alguns exemplos. Poderia explicar-nos como problemas dentários podem refletir desequilíbrios noutras áreas do corpo e vice-versa?
Sim. Na realidade, essa relação é estudada na universidade. A cárie é a doença infeciosa mais comum à escala mundial. O cancro oral é a sexta maior causa de morte a nível mundial. A doença periodontal, que afeta a gengiva e passa para o osso, aumenta três vezes o risco de diabetes, de enfarte agudo do miocárdio, aumenta também o risco de obesidade e outras patologias sistémicas. Relacionei estas questões com a acupuntura e a medicina tradicional chinesa. No século XX, o médico alemão Reinhold Voll fez essa ligação entre dentes, os órgãos, os sistemas e os sentimentos. Através dos meridianos, percebe-se que há um fluxo energético que passa nos órgãos e também nos dentes. Voll fez um estudo com eletroacupuntura para perceber quais os órgãos relacionados com determinados dentes. Por exemplo, imagine alguém tem um problema num dente do arco superior e, em simultâneo, alterações na tiroide. É preciso confirmar com exames, mas pode estar ali a origem de um dente infetado. Muitas vezes, a causa-raiz de uma patologia sistémica pode ser um dente.

Um dos aspetos que aborda no seu livro prende-se aos efeitos dos químicos artificiais presentes em produtos dentários. Quais são os principais riscos associados a esses produtos e que alternativas naturais recomenda?
Hoje, temos uma série de disruptores endócrinos. Costumo dizer que é o desodorizante que usamos, o creme do corpo, o creme da face, o champô... Levamos à pele e à boca produtos com químicos. Falo também do ar que respiramos e da água que bebemos. Quando tomamos consciência disso, é o primeiro passo para mudar. Mas, consciência sem ação não serve de nada. Por exemplo, sabemos que o alumínio faz mal e, ainda assim, colocamo-lo no forno, usamos desodorizantes com alumínio... No passado, o nosso corpo tinha a capacidade de gerir esses tóxicos, mas hoje em dia estamos saturados. O barril enche e transborda.
Se posso usar uma pasta dentífrica natural vou usá-la, evitando o lauril sulfato de sódio, que faz espuma, ou sem clorexidina, boa em tratamentos, mas não no uso diário. Acolhermos aquilo que é biológico não é uma moda, é uma questão de literacia. Somos seres conscientes, fazemos escolhas todos os dias. E podemos escolher uma escova, um elixir ou uma pasta mais saudável.
Os disruptores endócrinos mascaram-se de hormonas. Imaginemos peças de puzzle que se encaixam no lugar das hormonas, mas que não o são. E as hormonas verdadeiras são excretadas. Ficamos com défices hormonais, como o hipotiroidismo, por exemplo, provocado por excesso de flúor. O iodo compete com o flúor na tiroide. O flúor é mais rápido, ocupa o lugar. Como a parte sublingual tem alta absorção, escovar com flúor duas ou três vezes por dia pode ter efeitos negativos.
A OMS e a Ordem dos Médicos Dentistas recomendam pastas com 1000 a 1500 ppm de flúor desde o primeiro dente. Sim, o flúor previne a cárie, mas também sabemos que a cárie é uma doença nutricional e metabólica. Um paciente não tem cáries apenas porque escova mal. É também porque come mal.
Uma questão que se liga aos estilos de vida...
Exatamente. Hoje, sabemos que só com a alimentação não conseguimos obter todos os nutrientes essenciais. É preciso suplementar — mas não de forma aleatória. Primeiro fazemos análises, depois consultamos o médico de família ou o clínico que nos acompanha, e só depois suplementamos. Ainda há colegas reticentes em pedir análises simples, como a vitamina D, o magnésio ou o zinco, mas isso é essencial para perceber os níveis no organismo e a importância da suplementação.
Como referiu anteriormente, a psiconeurodontologia é uma das áreas que integra na sua prática clínica. Como as emoções e experiências de vida influenciam a saúde dos dentes, e de que forma esta abordagem é aplicada no tratamento dos pacientes?
A psiconeuroodontologia apareceu na minha vida no contexto de procurar encontrar outras formas de olhar para a boca, sendo que os dentes representam muito as nossas decisões. A psiconeurodontologia vem na linha do trabalho do já referido Christian Beyer e liga-se ao autoconhecimento através dos dentes. Diz-nos Beyer que a boca, os dentes e o corpo estão profundamente ligados e que tal explica porque alguns desequilíbrios emocionais se manifestarem sob a forma de doenças orais. Beyer destaca que cada dente está associado a um conflito. Este médico descreve 197 tipos de cáries associadas a comportamentos. Por exemplo, o dente 11, primeiro incisivo central direito, representa o arquétipo masculino; o dente 21 representa o arquétipo feminino. Dentes tortos podem refletir indecisão. E colocar um aparelho sem tratar a parte emocional pode não resultar.
Fala-se também de ancestralidade. Muitas vezes dizemos, “tem o sorriso do pai, ou o da mãe”. Os dentes guardam memória genética, emocional e sistémica. O folheto embrionário que forma os dentes é o mesmo que forma o cérebro. Desde a quarta ou quinta semana de gestação, dentes e cérebro desenvolvem-se juntos. Os dentes são como caixinhas de Pandora: guardam memórias até dessa fase da gestação. Tocar num dente é tocar numa alma, porque ativa uma memória no cérebro. É por isso que tratar um dente não é só fazer um buraquinho e meter uma massa. É muito mais profundo.
Quem me procura já sabe que vai ter uma consulta diferente. Quem quer só tratar o dente e sair, procura outro profissional.
E quando perdemos um dente?
Perdemos informação. É como se essa caixinha de Pandora se perdesse no tempo e no espaço. A memória permanece no cérebro e pode ser ativada de outra forma. Aliás, em caso de catástrofe, a medicina legal identifica corpos através dos dentes. Os dentes guardam o nosso DNA.
Quando um paciente chega ao seu consultório pela primeira vez, sem relação clínica anterior, como é recebido? Que estratégias usa para aumentar a consciencialização da pessoa?
Hoje, as redes sociais ajudam muito. Quem me procura já sabe que vai ter uma consulta diferente. Quem quer só tratar o dente e sair, procura outro profissional. Mas quem vem até mim encontra uma abordagem diferente: cria-se uma ligação. A pessoa tem de se ligar a mim e eu a ela. Explico tudo — desde a escovagem ao fio dentário. Tenho pacientes com 40 ou 50 anos a quem ensino isso pela primeira vez. Falo da alimentação, recomendo nutricionistas e médicos integrativos. Muitas vezes sugiro também psicoterapia. Quando as pessoas estão em transição de vida, procuram o dentista. Querem sentir-se melhor, aumentar a autoestima. Começam por uma destartarização ou um branqueamento e encontram muito mais. Costumo dizer que “ajudo a partir pedra”, a limpar por dentro, também.
Sente que muda vidas?
Costumo dizer que transformo sorrisos com as minhas mãos. Mas é mais do que estética. É um processo interior. Vejo mudanças em pessoas que não gostavam do sorriso, e saem transformadas. A cadeira do dentista pode ser um lugar de transformação profunda. Tem de começar por dentro.
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