Convidou para lhe prefaciarem o livro dois campões portugueses, Cristiano Ronaldo e Filipa Martins. Ambos passam uma mensagem de superação, mas dizem-na fruto de muito trabalho. Considera que a sociedade de hoje nos convoca a um certo facilitismo no que toca aos resultados e omite o item trabalho?
As crianças precisam muito mais de modelos do que de palavras e críticas. O ideal seria os mais pequenos terem em casa pais modelo. Se assim fosse, não haveria a necessidade de escrever o livro que escrevi para miúdos dos cinco aos 15 anos. Um livro que lhes fornece ferramentas para não terem de recorrer ao médico mais tarde. É uma felicidade poder contar com a lenda Cristiano Ronaldo a escrever-me o prefácio à obra. Este é, de facto, um modelo que pode inspirar as crianças. Também a Filipa Martins é uma atleta olímpica extraordinária, uma mulher que vai, certamente, inspirar as crianças e jovens que lerem este meu livro.
Cada vez mais, as pessoas que atendo em consulta são os meus professores. Estes, ensinam-me que, no que toca à saúde, temos de apostar na prevenção. Porquê? Porque uma vez a pessoa doente tudo é mais difícil. Na minha opinião, o ensino médico tem ‘dormido’ demasiado com a indústria farmacêutica. Não tem dado a devida atenção às pessoas ensinando-lhes como não ficarem doentes. Tenho seis filhos, dois mais novos, um com cinco, outro com oito. Percebo que é muito difícil levar esta rapaziada mais nova ao encontro de hábitos de vida saudáveis. A classe médica é o paradigma desta questão, porque devia explicar às pessoas o que é o misoneísmo [aversão à inovação e transformação]. Ninguém é tão misoneísta como os meus colegas de profissão. Também o fui durante muitos anos, com dificuldade na aceitação de ideias novas e saber esquivar-me às antigas. Os pais têm as suas ideias adquiridas ao longo do tempo. São misoneístas a maior parte desse tempo. Logo, uma forma de chegarmos aos pais é através das crianças. Se o miúdo lá em casa aparecer a dizer coisas diferentes, que façam algum sentido, calhando os pais vão pensar duas vezes.
Ao escrever este livro tinha presente uma frase de Fernando Pessoa. Este diz algo assim: um livro para crianças não deve ser escrito como se fosse para crianças.
Na sua opinião a escola é, atualmente, um veículo de promoção da literacia alimentar?
Podia fazer bastante melhor. Não sou a pessoa mais adequada para lhe responder a esta pergunta, pois precisaria de andar pelas escolas do país. A ideia que tenho, certa ou errada, é que há muito a fazer. Dou-lhe um exemplo: os meus filhos participaram no aniversário de um amigo e chegaram a casa com dois sacos cheios de doces. São situações como esta que interessa contornar.
Ao escrever este livro tinha presente uma frase de Fernando Pessoa. Este diz algo assim: um livro para crianças não deve ser escrito como se fosse para crianças. Os miúdos não são menos inteligentes do que os adultos, o que eles têm é uma “base de dados” menos apetrechada, mas tem lá todo o tecido neuronal e recursos para pensar corretamente as questões. Desde cedo, devemos mostrar-lhes o lado mais saudável da vida. Repare, um ratinho dentro de uma gaiola sente-se mais atraído por um torrão de açúcar do que pela cocaína. O açúcar é a substância mais aditiva que existe. Desta forma, explico no livro que há que olhar essencialmente para a inflamação e também para a resistência à insulina, a qual está cientificamente associada à diabetes tipo 2. Estas, estão por detrás da doença. Portanto, há que explicar ao miúdo que comer o bombom e o rebuçado traz-lhe prazer, mas, mais tarde, poderá ingressar na lista dos diabéticos, pré-diabéticos e obesos. No prefácio que escreveu ao livro, o Cristiano Ronaldo fala dos alimentos a ingerir, mas também da adição aos telemóveis. Não somos os melhores do mundo se estivermos sempre frente a um ecrã.
Vindo de um médico suporíamos tratar-se de um livro apenas sobre saúde mental e física. Contudo, vai além destas dimensões. Procura um comprometimento dos jovens com uma cidadania ativa e participativa.
Sem dúvida, porque traz-me a experiência dos meus 52 anos de prática clínica que devemos ter saúde física, mental, espiritual e social. Só com a saúde física podemos ter as outras três. As pessoas só se sentem bem entre os seus pares, para socializariam e se enriquecerem espiritualmente, se tiverem saúde física. Neste ponto, o de uma vida saudável, o primeiro aspeto a reter é evitar a inflamação e também a resistência à insulina. E, volto a referir, não há nada mais inflamatório do que o açúcar. Por isso dou tanta importância à mitocôndria e ao rei intestino. Hipócrates, o pai da medicina, dizia que o alimento é o nosso principal remédio, que as doenças começam no intestino e que o mais importante é não causar o dano. Há que explicar à criança a importância de evitar o açúcar, o glúten e o ácido linoleico, presente nas gorduras trans, nas margarinas, nos óleos vegetais, nos óleos de sementes. São inimigos que há que ter debaixo de olho e escapar-lhes. Este livro foi escrito tendo como exemplo os pequenos que tenho em casa. Há uma dificuldade gigante em passar aos miúdos estas mensagens porque diz-se uma coisa em casa e, depois, os miúdos estão grande parte do tempo na escola, expostos a outras mensagens. Por isso, insisti que as crianças precisam mais de modelos do que de palavras.
Traz-me a experiência dos meus 52 anos de prática clínica que devemos ter saúde física, mental, espiritual e social. Só com a saúde física podemos ter as outras três.
No seu livro escreve que traz aos jovens a receita para a “felicidade”. Hoje, procuramos a receita para a felicidade no sucesso e, muitas vezes, fazemo-lo com base em bens materiais. Mas a “receita” que nos oferece é outra. Quer explicá-la?
A receita que trago passa por uma mensagem simples, a de que a felicidade não se prende ao ter, mas sim ao não precisar. Diria que é um conceito um pouco budista. A pessoa consegue ser feliz se não precisar de mais nada do que aquilo que alcançou e que tem. Julgo que é importante explicar às pessoas que não é preciso ser-se rico, mas antes que é preciso ter-se informação. Isto, para que a pessoa perceba o que está ao seu alcance. Há que explicar a importância de se fazer uma caminhada saudável para, mais tarde, ser-se uma pessoa mais realizada e mais feliz. E isto é algo que só depende do próprio. Há que saber fazer escolhas, pois a vida é exatamente isso, fazer escolhas. E também explicar que há escolhas que têm de se fazer quando a pessoa, realmente, é mais nova. Isto, com o risco de mais tarde o indivíduo vir a adoecer. A ideia é precisamente esta, a de evitar que a pessoa fique doente. A formação académica não tem feito aquilo que deveria fazer no sentido de informar a classe médica, onde me incluo, sobre estas questões, pois está muito centrada na doença. Essa formação não é ministrada nos programas académicos das faculdades. Não há uma cadeira de nutrição que permita, mais tarde, ao médico, passar essa literacia aos pacientes.
Como se explica que cheguemos à idade adulta sem conhecermos a máquina que nos dá a existência, o corpo?
Porque esse conhecimento não nos é transmitido. Não é preciso ser-se agricultor para se perceber que o corpo interessa mais do que aquilo que lá cai, ou seja, usando aqui uma analogia, o solo interessa mais do que a semente. Se o sistema imunitário estiver robusto pode lá cair o vírus ou a bactéria mais bombástica que não irão germinar. Desde a COVID-19 que se perdeu um tempo precioso para explicar esta realidade. Havia que preparar o terreno para que o vírus não trouxesse problemas.
A comunicação social convidou amiúde especialistas com informação sobre a semente e não sobre o solo. Há muito investimento a fazer na saúde. Acho que a obrigação do médico não é apenas a de encostar o estetoscópico ao corpo do doente, tem de intervir na vida política e social. Há todo um trabalho que deve ser feito para as pessoas perceberem que ‘têm a faca e o queijo na mão’ para serem saudáveis. Têm é de estar informadas, saberem como podem não ficar doentes, perceberem a importância gigante do exercício e de uma boa alimentação. O que levamos à boca vai parar aos sete metros e meio do intestino onde está 70 a 80% do sistema imunitário. O neurocientista António Damásio escreve no livro A Estranha Ordem das Coisas que temos no intestino 95% da serotonina, um neuromediador da boa disposição. Ora, se as pessoas soubessem que este neuromediador, chamado da boa disposição, está na parede do intestino, tinham uma razão adicional para não o magoar e teriam o bónus de andar um pouco mais felizes. O antidepressivo visa, precisamente, melhorar os níveis da serotonina.
Também detalho no livro a questão da mitocôndria, a que chamo a ‘casa das máquinas das células’. O ar que respiramos, as calorias do alimento que ingerimos carregam um objetivo, o de proporcionar à mitocôndria a oportunidade de criar energia, processar o ATP (adenosina trifosfato). Neste processo, a mitocôndria prefere mil vezes mais a boa gordura ao hidrato de carbono ou à proteína. E com a vantagem de produzir gordura com muito mais facilidade na ausência daqueles. A importância de a pessoa comer pouco é a de proporcionar à mitocôndria a possibilidade de se alimentar com a gordura que temos. A pessoa vai sentir-se melhor. Este é um jackpot que deve ser ensinado desde tenra idade. Não quando já só se consegue viver de chocolates.
Há muito investimento a fazer na saúde. Acho que a obrigação do médico não é apenas a de encostar o estetoscópico ao corpo do doente, tem de intervir na vida política e social.
É possível aos pais vencerem a luta de David contra Golias no que respeita a alimentação saudável versus cadeias de fast food?
Na alimentação há três grandes venenos, o açúcar, o glúten e o ácido linoleico. Ora, as cadeias de fast fooddisponibilizam os três em quantidades variáveis. Têm o ácido linoleico, com as gorduras ricas em ómega 6, chamadas as gorduras trans. Têm o glúten no trigo, no centeio e na cevada. Estes provocam o intestino poroso. Como sabe, o intestino tem uma parede. Agora se essa parede esta permeável não cumpre a sua função e chegam ao sangue matérias que nunca deveriam lá chegar, como proteínas mal digeridas, detritos alimentares que obrigam o corpo a reagir aos corpos estranhos que fazem companhia às plaquetas, aos glóbulos brancos e vermelhos. É assim que começa a inflamação, seja na parede do intestino, seja no endotélio vascular do coração e grandes vasos. Como sabe, a causa de morte número um em Portugal são os acidentes cardiovasculares.
No seu livro passa-nos mensagens que não estamos habituados a escutar. Por exemplo, que nos descalcemos e andemos com os pés sobre a terra. É um convite a reencontrarmos o ambiente natural?
É uma das melhores formas de reforçar o sistema imunitário. Há que explicar aos miúdos que a natureza tem um papel gigantesco no crescimento saudável. A Natureza oferece-nos tudo. Veja-se o Sol, com a vitamina D. A própria água do mar é um superalimento. Tem 118 minerais e oligoelementos que compõem a tabela periódica. Entres os elementos essenciais tem o magnésio, o potássio, o azoto, o sódio, o cálcio. Mas, como possui 35 g de sal por litro há que ter o cuidado de a misturar com água mineral. Esse sal, chamado integral, é muito importante para as células. Mas, sublinho, há que fazer essa ingestão com critério e com a supervisão do profissional de saúde.
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