Em abril de 2022, o Tribunal de Instrução Criminal de Matosinhos pronunciou (decidiu levar a julgamento) o antigo presidente da direção, a ex-diretora de serviços e a própria Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) nos exatos termos da acusação do Ministério Público (MP), depois de os arguidos terem requerido a abertura de instrução.

Segundo a acusação do MP, a que a agência Lusa teve acesso, entre janeiro de 2015 e fevereiro de 2020, os arguidos “violaram os deveres inerentes aos cargos que ocupavam”.

O MP sustenta que os arguidos, “apesar de saberem que a instituição dispunha de meios económicos para o fazer, por razões de diminuição e contenção de gastos”, não contrataram médicos, funcionários e enfermeiros necessários “para assegurar o conforto e cuidados mínimos aos utentes”, deixando também de comprar equipamentos, mobiliário e produtos de higiene e terapêuticos, como apósitos para escaras, colchões antiescaras, fraldas e suplementos proteicos.

O MP acrescenta que os arguidos “atuaram com a consciência de que as suas condutas resultariam na falta de cuidados na saúde, na higiene, na alimentação, na atenção, nos afetos, no entretenimento e socialização” dos residentes acamados.

“Determinando o agravamento do estado de saúde, provocando-lhes mazelas físicas e sofrimento físico e psíquico, atentando contra a dignidade da pessoa humana, como ocorreu em 50 dos utentes ali internados”, lê-se na acusação do MP.

Os arguidos, ainda de acordo com a acusação, deduzida em 27 de julho de 2021, “atuaram também com a consciência de que a omissão dos cuidados aos utentes poderia causar-lhes a morte, como veio a suceder com 17 dos utentes ali internados”.

A acusação diz que os arguidos “estiveram sempre cientes da prática de atos que atentavam contra a individualidade e contra a dignidade da pessoa humana, bem como da desumanidade e crueldade desses atos e da humilhação e sofrimento que causavam aos residentes dependentes”.

“Ao atuarem da forma descrita, por si e por intermédio de terceiros que agiram sob as suas ordens e sobre quem detinham poder de orientação e disciplinar, os arguidos Marta Soares e José Moura, por si e em representação da arguida ‘Lar do Comércio’, agiram cientes de que provocavam, quer por ação, quer por omissão, sofrimento, angústia e vexame nas pessoas mais vulneráveis que se encontravam ao seu cuidado, e cujo bem-estar se lhes impunha defender e salvaguardar”, concluiu a investigação do MP.

Em 15 de maio de 2020, a Procuradoria-Geral da República (PGR) respondeu à Lusa que tinha instaurado um inquérito à atuação daquela IPSS, onde tinham sido, até àquela data, contabilizadas 21 mortes devido à pandemia de covid-19.

Em 19 de outubro de 2020, um relatório da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados (CDHOA) revelava terem sido detetados indícios de “violação grave” de direitos humanos no Lar do Comércio e o “incumprimento reiterado” de orientações recebidas em vistorias.

Naquele ano, o Lar do Comércio teve mais de 100 idosos infetados com covid-19, 24 dos quais acabaram por morrer, segundo o relatório de “averiguação sobre o surto da covid-19”, um documento de 23 páginas.