A Isabel Pedroso abre o seu livro com uma frase que nos faz refletir: “É fácil sermos mal interpretados na área da saúde”. No campo da nutrição quais são as frases presentemente mais mal utilizadas?
A nutrição é uma área onde muitas frases são mal interpretadas ou usadas fora de contexto. Expressões como "detox" e "superalimentos" são alguns exemplos frequentemente utilizadas de maneira errónea. Para além da promoção de produtos, acompanhamentos e soluções mágicas sem o respaldo de evidências científicas fortes. Pegando no exemplo dos "superalimentos", é um termo que sugere que certos alimentos têm poder sobre outros, levando as pessoas a acreditar que são mais importantes do que outros, quando na realidade uma dieta variada, equilibrada e com abundância de alimentos in natura é o mais importante. Além disso, como profissionais de saúde, é necessário sabermos separar opiniões de factos: ambos são importantes, mas devemos aprender a usá-los no momento/ contexto certo, garantindo que o cliente sabe exatamente o que estamos a falar.
Todos os livros encerram uma motivação por parte dos autores. No seu caso, o que a levou a escrever a presente obra?
Foi a editora Manuscrito que me contactou com o convite para escrever a obra – algo que já estava nos meus planos há muito tempo. O timing foi perfeito, pois consegui compilar o estudo de vários anos e a aplicação na prática com clientes nas páginas deste livro. A minha motivação ao escrevê-lo partiu da mesma motivação que tenho diariamente para continuar a estudar e a transmitir informação nas redes sociais: recordar a população que nenhuma dor ou desconforto deve ser normalizado, nem ignorado. Habituamo-nos a normalizar prisões de ventre, inchaços, fadiga, falta de produtividade e outros sinais de que o corpo está a meio gás. Quanto mais tempo deixarmos passar, mais estamos a comprometer a nossa saúde a curto e longo prazo, com maior probabilidade de surgimento precoce de doenças.
Em paralelo, a motivação que guia todos os nutricionistas: desmistificar muitos conceitos errados sobre a nutrição, neste caso em particular sobre saúde digestiva e inflamação crónica de baixo grau. Sei que já existem várias obras opinativas sobre este assunto, e o fator que diferencia este livro é a abordagem baseada na evidência científica, traduzida e acessível a todos, para que possam melhorar, também, a sua relação com a comida.
Entre os conceitos mais difundidos no presente está o da microbiota intestinal. A Isabel Pedroso dedica-lhe inúmeras páginas no seu livro, numa abordagem que é a sua. Quer explicá-la aos leitores?
A microbiota intestinal é o conjunto dos inúmeros microrganismos que habitam o nosso trato digestivo. Eles desempenham um papel crucial no funcionamento de todos os órgãos e tecidos corporais, desde a digestão de alimentos e absorção de nutrientes até a regulação do sistema imunológico e hormonal. A minha abordagem no livro é, simplesmente, a tradução da ciência, nem complicações. Estas, as complicações, é o que mais vemos atualmente nesta área, que vão comprometer ainda mais o estado emocional da pessoa, agravando sintomas. Procuro tornar este conceito complexo acessível a qualquer pessoa, explicando como manter um equilíbrio saudável da microbiota através dos vários pilares: alimentação, sono de qualidade, movimento e pavimento pélvico, gestão de stress e rotinas diárias.
Logo a abrir o seu livro liberta de alguma da sua culpa os sempre eternos vilões na alimentação, o glúten, a lactose, a frutose. Não é com eles que nos devemos preocupar?
Tem tudo a ver com quantidade, frequência e o estado inflamatório da pessoa. Muitas vezes, o glúten, a lactose e a frutose são demonizados sem que haja uma necessidade clínica para tal. Para a maioria das pessoas, esses componentes não são problemáticos e podem fazer parte de uma dieta equilibrada. No entanto, é essencial identificar intolerâncias reais e diferenciá-las de modismos alimentares. No livro, ensino a fazer isso: a perceber os sintomas associados, quem devia excluir, quem devia reduzir, o que incluir em alternativa e, acima de tudo, como podemos ganhar tolerância pouco a pouco. Pretendo ajudar as pessoas a entender que a eliminação desnecessária desses componentes pode levar a uma dieta desequilibrada e, se for a longo prazo e mal feito, a deficiências nutricionais. O problema não é o alimento em si, mas as quantidades e, acima de tudo, o estado da nossa microbiota intestinal: quanto menos diversa e benéfica for, pior a digestão.
As dietas restritivas podem deixar-nos doentes?
Exatamente. Dietas restritivas por um longo período e monótonas afetam a nutrição que damos à nossa microbiota intestinal: levam a carências nutricionais, interferem com a metabolização hormonal e até com a criação de massa muscular. A restrição excessiva pode também criar uma relação negativa com a comida, afetando a saúde mental. Quando há necessidade de dietas restritivas em certas patologias, deve ser explicado ao cliente que será algo temporário e dar-lhe, exatamente, o tempo expectável. De seguida, deve ser-lhe dada uma sugestão de manutenção, consoante a sua evolução. Destaco a importância de nutricionistas qualificados, especialmente em contexto público: algo ainda insuficiente, infelizmente.
Ter sintomas gastrointestinais não significa ter de viver em restrição alimentar? Porquê?
Sintomas gastrointestinais, como por exemplo inchaço, diarreia, prisão de ventre, distensão abdominal e azia, indicam que as nossas rotinas estão desajustadas, levando a um desequilíbrio da microbiota intestinal. Em muitos casos, pequenos ajustes nas rotinas, na confeção dos alimentos, na hidratação, na melhoria da qualidade do sono são suficientes para ajudar estas pessoas. Estamos habituados a viver no esforço para ter resultados e achamos que é com restrições que chegamos lá, e apesar de que em certas condições de saúde isso é verídico, na grande esmagadora da população, não. Enfatizo o que respondi anteriormente: quando há necessidade de dietas restritivas em certas patologias, deve ser explicado ao cliente que será algo temporário e dar-lhe, exatamente, o tempo expectável. De seguida, deve ser-lhe dada uma sugestão de manutenção, consoante a sua evolução. Saúde digestiva é muito mais sobre inclusão do que exclusão e as pessoas ainda não perceberam isso, pois há falta de literacia alimentar. A população continua a desembalar mais, em vez de descascar mais.
A chave é identificar a causa subjacente dos sintomas e agir diretamente aí. A maioria ainda silencia sintomas exclusivamente com tratamento farmacológico, e, atualmente, qualquer profissional de saúde devidamente atualizado sabe que o tratamento correto é a junção das mudanças alimentares e de estilo de vida, com a medicação apenas quando necessário. Se fizer isto corretamente, não ficará dependente do último.
As complicações intestinais mais comuns prendem-se com o estilo de vida que levamos no presente?
Completamente. Temos muitos estudos que nos comprovam isso. Estilos alimentares nutricionalmente pobres, com pouca fibra, poucos alimentos com potencial antioxidante, rotinas alimentares frenéticas sem tempo para mastigar os alimentos - que não apoia a produção de ácido no estômago e de enzimas digestivas -, stresse crónico, falta de atividade física, a não priorização de hábitos de sono saudáveis, tudo isto são fatores que contribuem para o aumento da inflamação crónica de baixo grau e a disbiose intestinal [alteração dos microrganismos que habitam o intestino]. Além disso, o uso desmedido e excessivo de antibióticos e outros medicamentos pode desequilibrar a microbiota intestinal. É fundamental incutir estes novos hábitos na população, não como parte de uma “dieta temporária”, mas como uma nova identidade que a pessoa está a criar gradualmente.
A Isabel Pedroso leva para o seu livro a referência à inflamação subclínica. Do que se trata?
A inflamação subclínica, ou inflamação crónica de baixo grau, ocorre quando o sistema imunológico está constantemente ativado, levando a uma resposta inflamatória que “não acaba” e de baixa intensidade. Está na base de doenças autoimunes, inflamatórias e outras condições de saúde. A disbiose intestinal pode levar ao aumento do nível inflamatório da pessoa, e uma pessoa que já tem diagnóstico patológico inflamatório já tem disbiose intestinal. Em ambos os casos, é urgente cuidar do intestino. Explico esta relação no livro e o que fazer.
Há alguns princípios que nos permitem dizer que estamos a cuidar bem da nossa microbiota?
Sabemos que estamos a fazer um bom trabalho quando os níveis de energia começam a aumentar, havendo mais disposição e energia especialmente nos períodos da manhã; quando começamos a ter mais clareza mental e produtividade aumentada; quando há diminuição da intensidade e/ou frequência de sintomas digestivos, até eventualmente cessarem. No fundo, sentimo-nos saudáveis.
Raras vezes olhamos para a nossa língua com atenção. A Isabel fá-lo no seu livro. A língua “comunica” connosco no que toca à nossa saúde geral?
A língua pode ser um indicador importante e complementar sobre o estado da nossa saúde. Mudanças na cor, textura ou a presença de revestimentos anormais podem indicar problemas digestivos, carências nutricionais ou outros desequilíbrios no corpo. No livro, explico como a observar corretamente.
Para o seu livro traz-nos o conceito de “modulação intestinal”. Do que se trata?
O termo é o menos importante. Pode ser chamada modulação intestinal ou, simplesmente, otimização intestinal, uma vez que o trabalho aqui é tomar decisões diárias que vão mudar a resposta dos microrganismos que vivem no intestino. São hábitos, intervenções e práticas destinadas a melhorar a microbiota, e, consequentemente, a saúde digestiva e imunidade. O objetivo é criar um ambiente favorável ao crescimento de bactérias benéficas. Para tal, foquei-me em 5 pilares que ensino aos clientes, que apliquei comigo e que são explicados no livro. A microbiota intestinal não é estanque: vamos sempre a tempo de a mudar.
Estamos presentemente demasiado centrados na saúde intestinal e a esquecer outros órgãos vitais? A que devemos estar atentos?
Não diria isso. Temos cada vez mais eixos bidirecionais entre o intestino e outros órgãos a serem estudados (intestino-cérebro, intestino-pele, intestino-tiroide…), e o estudo científico sobre microbiota intestinal está muito no início. Engane-se quem achar que já sabe como tudo isto funciona, porque infelizmente ainda não podemos afirmar que somos conhecedores das interações entre o intestino e o restante corpo.
Ainda assim, a investigação é promissora, e há cada vez mais certezas do impacto dos microrganismos intestinais em vários tecidos do corpo. Inclusive, digo muitas vezes que, se há dúvidas sobre o que fazer, comece por cuidar do intestino.
Quando refiro que há órgãos esquecidos, refiro-me à importância de olharmos para o corpo como um todo e para a saúde de forma integrativa. Outros órgãos, como o fígado, rins, tiroide, cérebro, coração desempenham papéis vitais no nosso bem-estar. No livro, dedico uma parte a discutir alguns destes eixos bidirecionais com o intestino, em particular o fígado e a tiroide.
Comentários