Comer deve ser um ato de prazer e de convivialidade, de descoberta dos alimentos e, preferencialmente, sem o sentimento de erro. Comer uma fatia de bolo de chocolate não deve ser o caminho para a culpa, o “pecado” de atentar contra a dieta. Em favor de uma alimentação isenta de culpa e de dietas restritivas, ergue-se a voz da nutricionista franco-brasileira Sophie Deram. Em Portugal, a também investigadora e ativista contra as dietas restritivas conta com a publicação dos livros Os 7 Pilares da Sabedoria Alimentar (edição Pergaminho) e O Peso das Dietas. Oportunidade para retomar alguns dos temas que orientam o trabalho da autora, em defesa do prazer de comer consciente e contrária à ideia de que a melhor dieta não é “fechar a boca”, tão pouco subtrair ao ato de comer o prazer. Uma alimentação saudável não passa por jejuns, detox ou outras restrições. Dietas restritivas não funcionam a prazo e, de acordo com a especialista, podem inclusivamente trazer prejuízos à saúde.
À conversa com o SAPO Lifestyle, Sophie Deram recorda-nos a importância de resgatar uma relação saudável com a comida e o corpo. Uma troca de palavras em torno dos sete pilares da sabedoria alimentar apresentados pela nutricionista, traduzidos visualmente numa ferramenta que nos permite fazer a autoavaliação no tempo. Um ato de reflexão sobre nós mesmos com diferentes objetivos, entre eles redescobrir a sabedoria corporal e controlar a saúde.
Sophie Deram concentra a sua investigação nas áreas da obesidade infantil, da nutrição genómica, dos distúrbios alimentares e da neurociência do comportamento alimentar.
O seu livro anterior editado em Portugal tinha como título O Peso das Dietas. A que peso se refere?
O peso das dietas a que me refiro baseia-se no estudo das neurociências do comportamento alimentar. Aquilo a que assistimos é um efeito no cérebro das dietas restritivas, com uma modificação do apetite, da relação que estabelecemos com a comida e o nosso comportamento alimentar. Ou seja, a dieta restritiva não é saudável, nem é sustentável a prazo. Pode mesmo levar-nos a ganhar peso. No início, estas dietas podem parecer resultar, mas com o passar do tempo a pessoa volta a ganhar peso corporal. Há também aqui um “peso” mental, porque a pessoa come condicionada, diria mesmo transtornada. E há um “peso” social. Sobre este último aspeto dou-lhe um exemplo: quando fazemos dieta restritiva vamos a um casamento e não participamos no ato comunitário associado àquele momento e que envolve a comida. Há um convívio milenar do Homem com a comida, a celebração de comer junto com o outro. Na prática, temos de parar de resumir a questão do peso às calorias.
A Sophie gosta de afastar a palavra “culpa” quando se refere às questões alimentares. Porquê?
Na verdade, a culpa vem das regras que impomos e de como nos trazem uma mistura de medo, raiva e tristeza, uma série de emoções. Sentimos culpa quando vamos contra as nossas regras. Se olharmos para a alimentação saudável, reduzindo-a a alimentos bons e maus, somos levados a abdicar do prazer de comer para mitigarmos a culpa. Não será que iremos aumentar a frustração associada ao ato de comer?
Se recuarmos algumas gerações, não vamos encontrar a culpa associada à comida, mas sim, por exemplo, ao sexo. Colocámos uma certa moral no âmbito da alimentação, o que não tem cabimento. Nos últimos anos vivemos uma espécie de terrorismo nutricional, as regras sobre nutrição são abundantes e contraditórias, o que torna difícil seguir um padrão de alimentação saudável. No fundo, julgamos que estamos a tratar melhor da nossa saúde quando ‘cortamos’ o glúten, a carne, ingerimos produtos light, sem lactose, com adição de fibras. Isto não é ter saúde. Como também não é olhar para o peso como sinónimo de saúde, é muito mais amplo, prende-se com o bem-estar mental, emocional e social, como já vimos.
Terrorismo nutricional é uma expressão forte…
…porque vivemos com excesso de informação. Há um estudo canadiano muito interessante: os franceses são um paradoxo, pois são uma população relativamente magra, mas que parece fazer tudo errado no que toca à alimentação, pois ingere muita gordura. É um paradoxo, pois as pessoas estão magras mesmo comendo mal. Um outro paradoxo, é o do conhecimento. Quando se compara a população norte-americana com a francesa, vê que os primeiros sabem muito mais sobre nutrição do que os segundos. Aqui, pode colocar-se a questão: será que saber muito sobre nutrição nos ajuda a comer melhor? Atualmente, vemos que não, atrapalha mais do que ajuda. Por exemplo, quando está com vontade de comer uma fatia de bolo de chocolate, opta pela maçã porque é saudável. Pode ser uma maçã deliciosa, mas não vai ficar satisfeito, mas sim frustrado. Numa relação equilibrada com a comida, a pessoa escolhe entre a maçã e o bolo de chocolate face àquilo que o seu corpo pede naquele momento. Ou seja, precisamos de informação mais flexível, que não extreme as coisas. De certa forma, reencontrar um padrão alimentar como aquele que tínhamos no passado. No que toca à alimentação, ficámos menos intuitivos e aumentámos a ansiedade.
Precisamos de informação mais flexível, que não extreme as coisas. De certa forma, reencontrar um padrão alimentar como aquele que tínhamos no passado.
A Sophie também nos fala numa mentalidade gordofóbica e associa-a a estigmatização. Porquê?
O termo gordofobia prende-se com os anos de 1970 e uma luta contra a gordura. Os nutricionistas colocaram-se numa posição contra a gordura e deixaram os hidratos de carbono ‘à vontade’. A demonização da gordura nessa época fez mais mal do que bem, porque as pessoas afastaram-se da gordura, comeram mais alimentos ricos em hidratos de carbono [entre outros, massas, arroz, batata]. Hoje vemos, uma tendência, a carbofobia. Uma realidade que começou contra a gordura do alimento, depois contra a gordura corporal. Atualmente, a gordofobia é um estigma do peso e extremamente prejudicial à saúde. Como se o peso fosse um indicador de saúde. Como vimos, não é. Infelizmente, muitos profissionais estão focados na questão do peso. Olha-se para a pessoa e diz-se, “tem de emagrecer”, como se fosse uma responsabilidade única da pessoa e se fosse fácil. No início pode parecer simples, o difícil é manter o peso conquistado. Transmite-se a ideia de que ao emagrecermos vamos conquistar tudo o que desejamos. Esse desejo leva-nos ao caminho das dietas restritivas.
Afirma no seu livro que a maioria dos profissionais de saúde “tem muita responsabilidade por essa noção simplificada do que é ser saudável”. Isto não nos deveria deixar preocupados?
No meu percurso estudei em França, nos Estados Unidos e no Brasil. Aí, observa que a questão está focada no nutriente, no peso e na caloria, mas não na pessoa no seu todo, o que envolve a sua fisiologia e psicologia. Somos um todo. Esse olhar mais holístico sobre o indivíduo não está a ser estudado nas faculdades. Hoje, é urgente no que respeita à nutrição, introduzir conceitos relacionados com o comportamento e psicologia do ser humano.
Sabedoria envolve um patamar superior ao conhecimento. Não será inocente o facto de levar esta palavra para o título do seu livro.
Estou sempre a dizer que o meu trabalho é levar a pessoa à sabedoria. A sabedoria implica o autoconhecimento da pessoa. Vemos que ao fazerem dieta no sentido que temos aqui falado, as pessoas perdem a intuição para a comida que trazem quando nascem, com autonomia sobre a fome e saciedade. Estamos a terceirizar a fome, entregando-a a alguém que nos diz o que temos de comer. A verdadeira sabedoria é resgatar, lembrarmo-nos que, no final, somos os únicos que sabemos aquilo que sentimos. Os pacientes perguntam-me muitas vezes “quanto preciso comer?”, ao que lhes respondo, “depende da sua fome”. A resposta a isso é um “não sei”. Meu Deus, a pessoa não sabe sobre algo tão básico como a sua própria fome?
Pilar significa sustentação. Como chegou ao número “mágico” de sete pilares?
Sete, porque quando estava a escrever o livro O Peso das Dietas, em 2014, dizia, “não faça dieta, não faça dieta”. Depois pensei, mas tenho de explicar aos leitores o que fazerem se não fizerem dieta. O que é importante na nossa saúde alimentar? Daí, elaborei sete fatores importantes quando procuramos a saúde alimentar, os Sete Segredos da Sophie. Entre estes segredos estão o fazer as pazes com o corpo, cuidar do cérebro, pensar de forma sustentável e sem pressa, respeitar a fome e viver no presente; comer melhor, não menos. Queria dizer às pessoas que não basta fechar a boca e mexerem-se, estão envolvidos muitos outros fatores.
Estou sempre a dizer que o meu trabalho é levar a pessoa à sabedoria. A sabedoria implica o autoconhecimento da pessoa.
Ou seja, a Roda dos 7 Pilares da Sabedoria Alimentar liga-se a estes segredos?
Sim. Em 2015/2016, usei os sete segredos para criar uma ferramenta para os meus alunos profissionais de saúde, dentro do meu curso “Método Sophie”, um método de atendimento ao paciente, sem dieta restritiva. Nas faculdades, só se aprende a dieta restritiva. Daí, desenvolvi mais de 40 ferramentas e uma delas é a Roda dos 7 Pilares da Sabedoria Alimentar. Trata-se de uma ferramenta de autoconhecimento, autoavaliação e autogestão das mudanças no comportamento alimentar. Nasceu influenciada pela roda da vida, do coaching. Permite avaliar em que ponto você está e o quanto está satisfeito em cada momento. Como referi, trata-se de uma ferramenta de análise de comportamento, passo a passo, no processo de mudança de hábitos e que inclui itens como o ritual da refeição, pensar de forma sustentável, cuidar da mente e fazer as pazes com o corpo. Os sete pilares subdividem-se em 15 subpilares, com pontuações de satisfação [de 0 a 10] em cada área.
Estes sete pilares estão dispostos numa forma circular. Mais do que um fim são a oportunidade de novos recomeços?
Sim e também nos recorda que nem sempre vamos obter um dez em cada uma das áreas. Isso faz o paciente perceber que há coisas que faz bem, outras que precisa de melhorar. E não tem de se comparar com ninguém. Dentro da questão do peso, parece que se exibem números como imagem de sucesso ou insucesso. É excelente para o paciente olhar para a saúde de uma forma holística e não só para o peso. Como come a pessoa, qual é o seu ritual da refeição, mas também o que faz para além disso. Por exemplo, será que dorme bem?
Estes pilares jogam também com a questão da consciência. Será que a pessoa tem consciência da sua fome? Muitas vezes a resposta é um “não”. Será que se trata realmente de fome ou é uma questão emocional? A fome pode também ser psicológica. Quanto mais o individuo está embrenhado numa dieta, menos saberá responder. Perde a consciência corporal, o autoconhecimento e fica preso nessa dieta.
Ou seja, a Roda respeita o tempo de cada pessoa…
…sim, é uma foto da pessoa no momento e vai evoluindo ao longo da vida. Os meus pacientes, após três meses a preencherem a Roda, dizem-me, “teria respondido de forma tão diferente há algum tempo”. Isto, porque está a fazer as pazes com a comida. Quando chegam, vêm stressados, querem emagrecer, estão insatisfeitos com o corpo, com o peso. Ao longo do trabalho que fazemos, percebemos a tal consciência alimentar. Não há um certo ou um errado, há um acompanhamento gentil, sem julgamento.
Dentro da questão do peso, parece que se exibem números como imagem de sucesso ou insucesso. É excelente para o paciente olhar para a saúde de uma forma holística e não só para o peso.
Não há restrições?
Aí está um aspeto com o qual muitos se assustam, pois digo, “pode comer de tudo, mas não tudo”. Paremos de acreditar que há alimentos ruins. Tenho o exemplo incrível de um estudo feito por um sociólogo francês, Claude Fischler e um psicólogo americano, Paul Rozin. Os dois juntaram-se para entenderem o “segredo” das francesas numa perspetiva psicológica do comer. Escolheram duas populações, uma americana outra francesa e perguntaram o que pensavam face a uma lista de alimentos, entre eles o bolo de chocolate. As americanas associaram-no a culpa, a engordar. As francesas associaram-no a prazer, festa, aniversário. Ou seja, o mesmo alimento, mas emoções totalmente diferentes. Quando se tem esta tranquilidade no comer, o comportamento vai ser diferente. No primeiro caso, limita-se a engolir o bolo sem prazer porque vai sentir de imediato culpa. A culpa faz engordar [risos]. A francesa vai saborear o bolo, vai comer pouco e receber boa informação no cérebro. Automaticamente comerá mais devagar. Certa vez, uma paciente disse-me, “prefiro poder tudo e não querer nada, do que não poder nada e querer tudo”.
Encontra alguma sociedade passada ou presente que se sustente nos sete pilares da alimentação?
Se pensar bem os seus avós tinham essa sabedoria alimentar. Atualmente, tem as Zonas Azuis, locais no mundo onde as pessoas alcançam maior longevidade como, por exemplo, na ilha grega de Icária. Quem segue um estilo de vida mediterrânico, sem dieta restritiva, tem a sabedoria alimentar. Os portugueses tinham até há pouco tempo um padrão alimentar muito bom. A globalização de um discurso em torno da dieta, do funcional, dos suplementos, que alimenta a indústria, está a atrapalhar essa sabedoria alimentar secular. Alguém que está dentro de uma alimentação ultraprocessada apresenta alterações na programação do paladar. O paladar está sequestrado pelos alimentos ultraprocessados. Estudos na neurociência demonstram que quando se começa a instalar a obesidade, as pessoas entram numa dependência na resposta de recompensa do ultraprocessado. A beleza é ver diretamente nos meus pacientes que, ao fazerem as pazes com a comida, mudam o paladar. Dizem-me que detestavam maçã, porque os nutricionistas lhe diziam: “tem vontade de um doce, coma uma maçã”. Daí, desenvolveram aversão à maçã. Entretanto, recuperaram o prazer de comer fruta ou uma salada.
O seu livro também se faz de histórias reais. A Sophie gosta de contar histórias de mudança de vida. Quer partilhar alguma connosco?
Recentemente, uma paciente procurou-me muito assustada, com bastante compulsão, perda de controlo alimentar. Uma pessoa jovem, na casa dos 30 anos, e que sabia muito sobre nutrição. Leu muito e ficou confusa. Um caso de ortorexia, em que a pessoa não consegue ter uma relação tranquila com a comida e faz desta um caso de obsessão. Comecei a mexer um pouco nas crenças desta paciente. Por exemplo, que o glúten não é tão ruim como ela considerava. A pessoa, em vez de se centrar apenas no lado nutricional, começou a escutar-se. No início foi muito tenso, porque a jovem tinha medo de engordar. Depois, num primeiro momento, quis comer o mundo. Porquê? Porque durante muito tempo tinha-se contido. À sexta consulta, está sem compulsão e em paz.
No Brasil, coordena o projeto de genética do ambulatório do programa de transtornos alimentares. O que aí faz?
Sou investigadora e, atualmente, coordeno o projeto de genética dos pacientes que têm transtorno alimentar. Faço isso no quadro da neurociência, num laboratório que estuda genes ligados ao cérebro, ao comportamento. Hoje, também percebemos que o cérebro e o intestino estão muito ligados. Procuro saber se há predisposição para o transtorno alimentar na programação genética do indivíduo. E constatamos que sim. Não atribuímos a um gene específico, mas a muitos genes. Ninguém nasce com transtorno alimentar, é algo que adquire de repente. Percebemos que um dos grandes gatilhos é a dieta restritiva, assusta o cérebro e ele perde a tranquilidade. Por exemplo, se tiver predisposição para a anorexia, de tanto se assustar vai deixar de comer. Isso é gravíssimo. Dentro dos transtornos psiquiátricos, o alimentar é o que mata mais. Esse trabalho leva-me a ser ativista para me colocar de maneira firme contra a restrição.
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