A propagação do novo coronavírus no lar da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva (FMIVPS) traduziu-se em 18 mortos (16 utentes, uma funcionária e um homem da comunidade) e 106 casos de infeção – 80 utentes e 26 profissionais -, mas alastrou também à comunidade e contagiou mais 56 pessoas, num total de 162 dos 177 casos registados até 02 de setembro, segundo a informação epidemiológica da Proteção Civil da localidade alentejana.
O primeiro caso foi reportado em 18 de junho, quando uma utente de 85 anos apresentou dificuldades respiratórias e foi transportada para o Hospital do Espírito Santo de Évora (HESE), onde foi confirmado que estava infetada com o SARS-CoV-2, revelou, então, o presidente da autarquia, José Calixto. Após uma semana, o número de infetados superava já a centena.
A rápida escalada dos casos e a aparente incapacidade do lar para conter a disseminação do vírus até à comunidade começou a gerar no início de julho as primeiras críticas na resposta ao surto. Foi então que se multiplicaram as tomadas de posição em torno do caso: do Governo à Ordem dos Médicos (OM), passando pela Administração Regional de Saúde (ARS) do Alentejo ou a autarquia de Reguengos, sem esquecer o próprio conselho de administração da FMIVPS.
Hoje, a Comissão de Trabalho e Segurança Social da Assembleia da República aprovou a chamada ao parlamento da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, e da ministra da Saúde, Marta Temido, para serem ouvidas sobre os surtos de COVID-19 registados em lares, como o que ocorreu em Reguengos de Monsaraz.
A comissão aprovou hoje, por unanimidade, requerimentos do PSD, CDS-PP e Pessoas-Animais-Natureza (PAN) que solicitam a audição das governantes e também da diretora-geral da Saúde, Graça Freitas.
Em 12 de julho, já depois de o Ministério Público (MP) assumir que estava a “proceder a averiguações” sobre o caso, a OM anunciou, em nota publicada no site oficial, a designação de “uma comissão de inquérito para avaliar todas as circunstâncias clínicas relacionadas com esta situação”, por considerar que “as decisões que têm sido tomadas no caso do lar de idosos da FMIVPS de Reguengos de Monsaraz não aparentam ser as mais corretas”.
No mesmo dia, a ARS do Alentejo disse que “fez e continuará, dentro do quadro legal, a fazer o possível para garantir os cuidados considerados necessários, no espaço que foi atribuído aos utentes da Estrutura Residencial para Idosos (…) que necessitam de vigilância, mas que não têm critérios para internamento hospitalar”, num comunicado enviado à Lusa, após a polémica criada em torno da mobilização de médicos de outras unidades para aquele lar.
As conclusões da auditoria da OM foram conhecidas em 06 de agosto, com o relatório a revelar que não era possível cumprir “o isolamento diferenciado para os infetados ou sequer o distanciamento social para os casos suspeitos”, que os “recursos humanos foram insuficientes para a prestação de cuidados adequados” e que “o processo de governança clínica” falhou, atribuindo a responsabilidade à Autoridade de Saúde e à ARS do Alentejo.
Imediatamente no dia seguinte, a Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou a existência de um inquérito sobre o surto no lar de Reguengos de Monsaraz, o qual corre termos no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Évora.
Foi só em 11 de agosto, quase dois meses após a notificação do primeiro caso, que a FMIVPS se pronunciou sobre o surto. O conselho de administração da instituição explicou que “não foi ouvido nem teve qualquer oportunidade de se pronunciar por escrito” no âmbito da auditoria efetuada pela OM e garantiu que “todas as decisões que envolveram os utentes desta resposta social respeitaram integralmente as instruções técnicas da Autoridade de Saúde Pública (ASP) e restantes autoridades de saúde e Segurança Social”.
A controvérsia em torno deste caso ganhou outros contornos quando a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho, afirmou, numa entrevista ao Expresso, em 15 de agosto, que a dimensão dos surtos em lares “não é demasiado grande” e evitou comentar as conclusões da auditoria da OM. Ato contínuo, sucederam-se as críticas e, inclusivamente, pedidos de demissão da governante por parte dos partidos da oposição.
Foi apenas na sequência destas suas declarações que Ana Mendes Godinho esclareceu três dias depois que a Segurança Social enviou um relatório sobre o lar para o Ministério Público (MP) em 16 de julho, afirmando que “é nessa sede de processo que devem ser analisadas” todas as “matérias que constam dos vários relatórios que foram produzidos por várias entidades, alguns deles com elementos contraditórios”.
O relatório da Segurança Social nunca chegou a ser divulgado publicamente e apenas se sabe pelo Governo que apontava informações “contraditórias” com as conclusões traçadas pela auditoria da OM.
Ainda nessa semana, no dia 19, a ministra da Saúde, Marta Temido, adiantou que a Inspeção-Geral de Atividades em Saúde (IGAS) estava também a investigar o sucedido no lar da FMIVPS “para que possam ser apuradas, entre outras, responsabilidades disciplinares, se as houver”. Contudo, duas semanas depois, ainda não há informações oficiais da investigação da IGAS.
A auditoria da OM e, sobretudo, as competências para conduzir esse tipo de processo foram de seguida contestadas pela União das Misericórdias Portuguesas, mas também pelo executivo, nomeadamente pelo primeiro-ministro. “As ordens profissionais existem para regular o exercício da atividade dos seus profissionais, ponto. Não existem para fiscalizar o Estado”, afirmou António Costa em entrevista ao Expresso, em 22 de agosto.
Na sequência dessa entrevista, um pequeno vídeo de sete segundos chegou às redes sociais, mostrando António Costa numa conversa privada com jornalistas alegadamente chamando “cobardes” aos médicos envolvidos no surto de COVID-19 em Reguengos de Monsaraz. A OM respondeu com um pedido de audiência urgente, que acabou por se realizar no dia 25, com António Costa a considerar esclarecidos os “mal-entendidos” com a Ordem.
No entanto, a polémica não ficou completamente encerrada e aguarda ainda por novos desenvolvimentos, uma vez que continuam por conhecer publicamente o relatório da Segurança Social elaborado em julho e a investigação da IGAS ordenada em agosto, bem como as diligências do MP sobre a resposta ao surto de COVID-19 no lar de Reguengos de Monsaraz.
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