
Portugal foi o primeiro país a abolir a escravatura? O 25 de Abril foi mesmo uma revolução pacífica? Olivença é indiscutivelmente portuguesa? E o que dizer do tão celebrado feito de termos sido os primeiros a acabar com a pena de morte?
Estas são algumas das perguntas às quais o historiador Ricardo Raimundo oferece respostas no seu mais recente livro Fact-Checking à História de Portugal (edição Manuscrito). Nas perto de 300 páginas do presente título o historiador combate ideias feitas e desafia o senso comum. Como mote ao livro está a “convicção de que muitas das crenças sobre a História de Portugal são, afinal, mitos repetidos ao longo de gerações — alguns com contornos de propaganda nacionalista”. Um dos exemplos mais emblemáticos é o da pena de morte: “Fomos o primeiro país a acabar com a pena de morte!” é uma frase frequentemente ouvida, mas que Raimundo classifica como “mentira histórica” e explica-o na entrevista que aqui publicamos.
Também o 25 de Abril, muitas vezes rotulado como “revolução pacífica”, é analisado com uma lente mais crítica. “Embora não tenha sido uma carnificina, houve mortos — e o uso da força não foi totalmente ausente. Outro tema delicado é a soberania de Olivença, uma ferida aberta nas relações com Espanha, que permanece envolta em disputas diplomáticas e silêncio político”, lemos na recensão ao livro e esmiuçamos na conversa que mantemos com o historiador.
Nascido em Lisboa, em 1981, Ricardo Raimundo é mestre em História Moderna pela Universidade de Lisboa e colabora com o Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica. Autor de uma dezena de livros de divulgação histórica, assume-se como um “desmancha-prazeres da memória coletiva”, mas fá-lo com o compromisso de repor a verdade. Como escreve, “a História não é um conto de fadas, mas um espelho — e nem sempre gostamos do que vemos refletido”.
O Ricardo Raimundo lança este seu novo livro num tempo em que se extremam ideologias políticas, se antagoniza e se assiste à manipulação de factos. Este seu livro é um alerta para estes tempos? Que riscos corremos?
Trata-se de um pequeno contributo para alertar para os perigos que corremos nestes novos tempos em que as mais diversas ideologias políticas ser servem não só do presente, mas também do passado, ou seja, da nossa História, para fazerem vingar os seus pontos de vista. Num mundo é que cada vez é mais fácil manipular e forjar documentos, sejam eles fotos, vídeos ou textos, os riscos que corremos são muitos, obrigando-nos a tomar redobrada atenção. Caso não nos tornemos mais avisado e nos habituemos a cruzar diversos tipos de informações e façamos uma análise crítica das mesmas nomeadamente os contextos em surgem e onde são postos a circular, corremos o risco de nos tornarmos reféns de mentiras e de ideias que determinadas fações, algumas delas minorias, pretendem que se tornem verdades absolutas.

No caso vertente, centra a sua análise em Portugal. Como frisa na introdução ao livro, a manipulação dos factos não é recente. Hoje, contudo, os meios para os propagar são imensamente mais poderosos do que nos séculos anteriores. Como avalia esta questão no contexto nacional?
Uma sociedade que cada vez mais se desliga do conhecimento, que cada vez é menos atreita à crítica, recusando-se a pensar por si própria, está bastante vulnerável à manipulação dos factos. Os novos “fazedores” de opinião são, por isso, um perigo real, levando os seus seguidores a acreditar em realidades baseadas em factos falsos ou deturpados. A pouca tendência no contexto nacional para buscar explicações, para buscar respostas, por si próprio, leva a que se aceite, de bom grado, a opinião de alguém que diz ser detentor da verdade, mas que, em boa verdade, não passa, por vezes, da sua interpretação deturbada de documentos e baseada em anacronismos.
Numa entrevista anterior que nos concedeu sublinhou que “hoje, existe uma tendência para interpretar o passado à luz dos acontecimentos do nosso tempo, do nosso quadro mental”. E acrescentou: “Sempre que queremos mexer no passado dá asneira”. No momento presente, no nosso país, consegue identificar algumas destas “asneiras”?
Em tom de brincadeira falemos em asneiras boas e asneiras más. Comecemos pelas primeiras, já que mais raras.
Quando o Ministro da Defesa Nacional de Portugal, o Dr. Nuno Melo veio a público referir que Olivença pertence a Portugal, mexeu num tema que, com as camadas do tempo, se tornou tabu para o Estado Português e sobre o qual não há uma linha oficial. A verdade é que, historicamente, Olivença deveria ser território de Portugal, porque um tratado devidamente reconhecido assim o estipulou, no entanto, o governo Espanhol nunca se predispôs a devolver aquele território e Portugal, nunca fez a devida pressão para que isso acontecesse. Neste caso, houve uma chamada de atenção para algo que deveria ser reconhecido e que está em suspenso desde os inícios do século XIX.
Agora falemos em asneiras más. No seu discurso aquando das celebrações do dia 10 de junho de 2025, a escritora Lídia Jorge proferiu que Portugal havia “inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, com polos de abastecimento nas costas de África”. Em boa verdade, como já muito bem veio sublinhar o historiador João Pedro Marques que não foram os portugueses a inaugurar “o tráfico negreiro intercontinental em larga escala”. Este sim foi inaugurado pelos povos muçulmanos que, já no século VIII traficavam escravos negros, principalmente de África para a Ásia e, posteriormente para a Europa.
Não foram os portugueses a inaugurar “o tráfico negreiro intercontinental em larga escala”. Este sim foi inaugurado pelos povos muçulmanos.
Quer dar-nos outro exemplo?
Sim. outro exemplo gritante de olhar para o passado com os óculos do presente, que é como quem diz, interpretar o passado com o quadro de valores do presente, encontramo-lo no discurso da mesma escritora quando revela que “sempre houve quem repudiasse por completo a prática [da escravatura] e o teorizasse”. Neste caso particular reporta-se ao cronista Gomes Eanes de Zurara. Se é certo que o escritor deixa passar nos seus escritos a comoção com o espetáculo da partilha e com o afastamento forçado de pais e filhos, no entanto, enquanto homem do século XV, referia em seguida que com o passar do tempo, os escravos eram socialmente integrados, tornando-se cristãos, aprendendo ofícios e acabando até por adquirir a liberdade em certos casos. Para Zurara e para qualquer Homem do século XV a salvação das almas e a introdução à cultura cristã legitimavam o ato escravizador.
E isso é claro nas suas próprias palavras, “É assim que onde antes viviam em perdição das almas e dos corpos, [os negros] vinham de todo receber o contrário: das almas enquanto eram pagãos, sem claridade e sem lume de santa Fé; e dos corpos, por viverem assim como bestas, sem alguma ordenança de criaturas razoáveis, que eles não sabiam que era pão nem vinho, nem cobertura de pano, nem alojamento de casa; […]. Ora vede que galardão deve ser o do Infante [D. Henrique] ante a presença do senhor Deus, por trazer assim à verdadeira salvação não somente aquestes, mas outros mui muitos que em esta história ao diante podeis saber”. Por aqui se vê que não houve gente a insurgir-se contra o tráfico negreiro. A contestação a esse negócio e à escravidão só se tornou comum e, mentalmente possível, a partir do último terço do século XVIII.
Esta ideia hoje vigente que os portugueses se devem envergonhar dos descobrimentos, resulta precisamente duma tendenciosa forma de olhar o passado, a nossa História com o aparelho mental do presente. Não podemos imputar conceitos, ideias e maneiras de atuar do presente à História.
No seu novo livro revisita os séculos XIX, XX e XXI. Muitas vezes, trabalha sobre mitos e lendas profundamente enraizadas no nosso imaginário comum. Quer, brevemente, explicar-nos como decorreu o processo de resgatar a verdade sob tantas camadas de ideias feitas e factos que não correspondem ao que realmente aconteceu?
Que informação foi produzida sobre o acontecimento na época em que ele ocorreu. Este deve ser o ponto de partida para o estudo de todos os fatos históricos. Ou seja, é a partir das fontes coevas que podemos almejar reconstruir um determinado acontecimento. A partir daí podermos ir acompanhando a evolução da sua transmissão ao longo dos tempos, o chamado “quem conta um conto acrescenta sempre um ponto”, tornando-se assim possível, analisar se houve aspetos que foram acrescentados, outros que se perderam ou, ainda outros que foram substituídos. Só assim se torna possível ir desmontando algumas ideias que foram passando ao longo da nossa História.
Neste seu processo de desvendar o passado encontrou algum episódio que até a si, historiador, o tenha surpreendido por, na realidade, estar afastado da história contada e recontada?
Sim. Quer no percurso académico, quer nos testemunhos que ia ouvindo todos os anos em que se celebrava a data de 25 de abril de 1974, habituei-me a ouvir que fora uma revolução pacífica sem mácula de sangue e sem vítimas. A realidade veio a demonstrar o contrário e foi necessário que passassem 50 anos após os acontecimentos de 1974 para que se assumisse o contrário.
Abre o seu livro com a questão da abolição da escravatura. Mas, na realidade, a história guarda nuances que não nos permitem afirmar tal facto. Quer comentar?
Um problema de tal forma enraizado na sociedade e na economia portuguesa não poderia terminar de um dia para o outro. Erroneamente aponta-se a legislação do Marquês de Pombal como prova da abolição da escravatura em Portugal, porém, ela apenas proibia que se levassem para Portugal e ilhas adjacentes novos escravos, mantendo-se aqueles que já existiam e os filhos das escravas que haveriam de nascer. O objetivo da lei é meramente economicista e não manifestava qualquer preocupação humanitária, visava que não fosse levada para o reino mão de obra que era vital nos territórios ultramarinos.
E mesmo depois quando Sá da Bandeira em 1869 determina a abolição da escravatura já depois de muitos outros países, é criado o estatuto do liberto que, em boa verdade, pouca muda na condição, pois foram obrigados a trabalhar para os seus senhores até 1878. A partir de então passaram a chamar-se de serviçais, no entanto, deveriam manter-se ao serviço dos seus antigos patrões.
Voltemos a um tema que já referiu e que se estabelece em areias movediças, o da condição de Olivença em relação a Portugal. O Ricardo Raimundo recorda no episódio que dedica a esta questão as palavras do Ministro da Defesa, Nuno Melo, em setembro de 2024: “Olivença é portuguesa, naturalmente, e não é provocação nenhuma”. Há um fundo de razão nas palavras do governante?
Sem dúvida. Do ponto de vista do Direito, Olivença faz parte de Portugal, e Espanha está em incumprimento há cerca de 207 anos, quando três anos depois de ter sido assinado por todas as partes, reconheceu a 10 de junho de 1817 o tratado de Viena o qual estabelecia no seu artigo 105.º que “As potências, reconhecendo a justiça das reclamações formuladas por Sua Alteza, o Príncipe Regente de Portugal e do Brasil, sobre a vila de Olivença e os outros territórios cedidos à Espanha pelo Tratado de Badajoz de 1801, e considerando a restituição destes objetos como uma das medidas adequadas a assegurar entre os dois Reinos da Península aquela boa harmonia, completa e estável, cuja conservação em todas as partes da Europa tem sido o fim constante das suas negociações, formalmente se obrigam a empregar por meios conciliários os seus mais eficazes esforços a fim de que se efetue a retrocessão dos ditos territórios a favor de Portugal. E as Potências reconhecem, tanto quanto depende de cada uma delas, que este ajuste deve ter lugar o mais brevemente possível”.
O certo é que a Espanha, como já referi, sob vários pretextos sempre foi adiando o cumprimento da letra deste tratado e, Portugal pouca ou nenhuma pressão foi exercendo para que ele fosse cumprido.
Do ponto de vista do Direito, Olivença faz parte de Portugal, e Espanha está em incumprimento há cerca de 207 anos.
Leva para o seu livro alguns episódios que muitos leitores, porventura, desconhecerão. Dou-lhe como exemplo este: “Um escândalo financeiro muito antes do BPN, BANIF e BES: o caso da Companhia Geral de Crédito Predial em 1910”. Em poucas palavras, do que se tratou?
A Companhia Geral do Crédito Predial Português foi criada a 24 de outubro de 1864, sendo uma instituição privada baseada no modelo francês de concessão de empréstimos hipotecários com prazos alargados, permitindo a proprietários e municípios obterem financiamento de forma mais acessível. Para assegurar a sua sustentabilidade a instituição emitia obrigações hipotecárias, que eram colocadas no mercado financeiro e adquiridas por investidores privados. Este mecanismo permitiu liquidez ao banco e permitia-lhe continuar a conceder novos créditos.
O sucesso obtido nos primeiros anos de atuação permitiu que o Crédito Predial se transformasse numa instituição de referência no país. No entanto, à medida que o século XIX se aproximou do fim, começaram a surgir problemas na gestão e operação.
A crescente ligação entre o setor financeiro e os interesses políticos tornou-se uma evidência. A concessão de crédito começou a ser influenciada por fatores externos incluindo favoritismos políticos e investimentos pouco transparentes. Este cenário foi-se agravando e culminou com o escândalo financeiro em 1910.
Quer explicá-lo?
Na sua base estava uma relação demasiado promíscua com a política uma vez que os administradores e principais quadros desta instituição foram figuras que ocupavam cargos como os de líderes dos principais partidos políticos, deputados ou antigos deputados, ministros e ex-ministros, juízes do Supremo Tribunal de Justiça.
O escândalo deflagrou a 28 de março de 1910 quando numa assembleia do banco, alguns acionistas apresentaram uma série de acusações que atingia toda a organização do banco. Dizia-se que haviam sido postas a circular um maior número de obrigações do que as que correspondiam aos empréstimos; que se fugia à amortização das obrigações, que havia incúria na exigência dos pagamentos dos empréstimos, que as avaliações que eram feitas antes das concessões de créditos eram mal feitas e sempre “dolosamente exageradas”, etc.
Depois destas acusações efetuaram-se várias análises às contas do banco, vindo a descobrir-se que se aprovavam relatórios de contas falseados. Chamado o contabilista, perante o desespero aquele assumiu que havia desviado “uma centena de contos”. A ação fora encoberta através de movimentações financeiras e empréstimos bancários, apresentados como práticas normais de gestão. Vieram a descobrir-se ainda mais desfalques nas contas.
O contabilista foi detido. O governador do banco, José Luciano de Castro, líder do Partido Progressista e presidente do Conselho de Ministros foi imputado pelo ministério público como o “autor da falsificação ciente e conscientemente”.
Porém, no momento do julgamento a severidade da justiça nunca chegou, sendo o governador ilibado de todas as acusações, sendo os lesados sempre os mesmos…

Evoca no seu livro a figura de uma ilustre portuguesa do século XIX, Carolina Beatriz Ângelo e liga-a ao direito de voto entre as mulheres. Que episódio envolveu esta mulher falecida em 1911, com apenas 33 anos?
Tudo se passa na sequência da implantação da República, a 5 de Outubro de 1910 quando, a 14 de março de 1911 se estabeleceu o tipo de sufrágio adotado pela República para a eleição de deputados para a Assembleia Constituinte: “A eleição dos Deputados é feita pro suffragio secreto, direto e facultativo”. Não havendo qualquer referência a sexo, idade ou grau de literacia, apenas se exigia que fossem maiores de 21 anos, residentes em território nacional, deveriam saber ler e escrever e teriam de ser chefes de família.
Aproveitando a lacuna na lei, Carolina Beatriz Ângelo, uma das principais defensoras do sufrágio feminino, solicitou a sua inscrição no recenseamento eleitoral para as eleições da Assembleia Constituinte, marcadas para 28 de maio de 1911. Eram maior de idade, residia em território nacional e possuía habilitações literárias. Além disso, era viúva e chefe de família, responsável pelo sustento da sua filha menor, Maria Emília Ângelo Barreto, de oito anos. Com base nesses critérios, considerava que cumpria os requisitos para exercer o direito de voto. Tendo submetido um pedido ao ministro do Interior, Carolina Beatriz Ângelo enviou também um requerimento à Comissão de Recenseamento do 2.º Bairro de Lisboa (Arroios) com o mesmo objetivo.
Perante respostas negativas daquelas entidades, Carolina apresentou um recurso ao Tribunal da Boa Hora, em Lisboa. A sentença foi-lhe favorável já que o juiz argumentou que se o legislador tivesse a intenção de excluir as mulheres do direito de voto, deveria tê-lo afirmado expressamente, em vez de deixar uma brecha na lei. Dessa forma determinou que o nome da requerente fosse incluído nos cadernos eleitorais.
Assim se fez história e, a 28 de maio de 1911 Beatriz Ângelo pôde exercer o seu direito de voto na Assembleia Eleitoral de Arroios, onde estava recenseada sob o número 2513.
Este episódio foi aproveitado para os legisladores reverem a lei e proibiram o voto feminino o qual conheceu vários avanços e recuos só vindo a ser reconhecido livre de qualquer restrição a partir de 25 de abril de 1974.
Eis-nos perante outro tema que navega em águas conturbadas. Deixo-lhe a pergunta que formula na apresentação deste episódio: “Era ou não fascista o regime liderado por Oliveira Salazar?”
Ainda que o Estado Novo de António de Oliveira Salazar tenha partilhado algumas caraterísticas com os regimes fascistas, como o autoritarismo, a censura e a repressão política, ele não pode ser considerado um fascismo no sentido estrito do termo. O seu caráter conservador, a ausência de mobilização de massas (antes pelo contrário, já que houve um incentivo claro à desmobilização) e a forte influência da Igreja Católica diferenciam-no dos regimes totalitários de Adolfo Hitler e Benito Mussolini. O Estado Novo deve antes ser encarado como uma ditadura autoritária de inspiração tradicionalista, com particularidades que o distinguem dos fascismos europeus do século XX.
O Estado Novo deve ser encarado como uma ditadura autoritária de inspiração tradicionalista.
Referiu atrás a nossa complacência face à narrativa de um 25 de Abril isento de sangue e de violência? Às comemorações da Revolução dos Cravos tem sido subtraída a evocação da memória das suas vítimas?
Sem dúvida é a resposta para as duas questões. E para isso muito contribuiu a ação dos políticos e dos intervenientes neste momento histórico. Muito certamente para se manter uma visão romanceada do acontecimento e forma de demonstrar que até na hora de fazer revoluções o país é diferente. E não foi certamente por desconhecimento dos fatos, pois algumas das famílias das vítimas procuraram em determinado momento ajuda pois, de um momento para o outro, viram ser-lhe levado o ganha pão do agregado familiar ou viram-se sem a companhia de um ente querido. A resposta dos novos governantes, talvez mais preocupados em repartir o poder entre si e em manter a imagem de revolução sem mortos, do que em fazer justiça, foi uma afronta para os lesados. Recorde-se que uma das propostas feita a uma das mães que ficou viúva foi o ingresso do filho mais velho no Colégio Militar e a distribuição dos outros três por instituições de solidariedade.
O certo é que houve vítimas, pessoas com um nome, que durante muito tempo se ignorou ou se pensou ser outro, com pais, alguns deles com mulher e filhos que se viram subtraídos à sua convivência em virtude dos acontecimentos.
Importa referi-lo em todas as celebrações.
Hoje, multiplicam-se as notícias sobre um Portugal que se tornou mais violento. Mas, entre o burburinho do presente e o esquecimento do passado, podemos, realmente, afirmar que Portugal é um país de brandos costumes?
A imagem de um Portugal de brandos costumes é uma criação da máquina de propaganda do Estado Novo, que pretendia passar a ideia de que, ao contrário do que acontecia noutros países, em Portugal tudo decorria sem violência, num ambiente de amabilidade e respeito pelo próximo, sem os atritos e as perturbações que existiam noutros Estados, que tinham índices de violência e números de mortos bastante elevados. Para tal, bastante contribuiu a criação de um aparelho repressivo assente nas forças policiais, que, com a consolidação do regime, chegou a todas as partes do território e fez calar, através da censura, os episódios de perturbação da ordem pública. Esta ideia de que nada acontecia, aliada à certeza de um uso indiscriminado da força policial em caso de conflito e a um sistema judicial que em circunstância alguma questionaria as forças policiais, resultou no referido apaziguamento.
No entanto, aplicar esta realidade a tempos anteriores é algo incorreto. Antes do triunfo do Estado Novo, os “brandos costumes” e o “povo sereno” só podem ser ficção. Basta ter presente que os séculos XIX e XX foram marcados em Portugal por um constante alvoroço, entregue guerras civis, um regicídio, vários assassínios políticos e duelos de deputados, que resultaram em agressões físicas, revoltas, guerrilhas e salteamentos.
E mesmo depois do 25 de abril de 1974 também se registaram mortes provocadas pela violência política e pelo terrorismo, tendo inscrito os nomes de cerca de três dezenas de pessoas nos obituários.
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