Segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), houve um aumento de 304% no consumo de antidepressivos em Portugal entre 2000 e 2020. Devemos estar preocupados com este número ou significa que já não temos um problema de subdiagnóstico?
Enquanto psiquiatra inquieta com estes números, já me debrucei várias vezes sobre esta percentagem e creio que para ela concorrem vários fatores. Por um lado, o facto de sermos o segundo país europeu com a prevalência mais alta de doença mental - a seguir à Irlanda do Norte. Temos mais depressão, mas temos sobretudo mais ansiedade, e ambas as doenças são tratadas com antidepressivos. A situação social adversa que vivemos neste momento em Portugal não tem contribuído para a melhoria destes indicadores, pelo contrário. Por outro lado, é importante referir as dificuldades no acesso aos cuidados de saúde, bem como a gritante falta de profissionais de saúde mental não-médicos no SNS, sobretudo de psicólogos. Numa fase inicial da depressão, a doença pode ainda ser tratada sem recurso a medicação, investindo-se na psicoterapia (habitualmente feita por psicólogos). Numa fase mais avançada, de maior gravidade, já será necessário medicar com antidepressivo. O atraso na chegada aos cuidados pode explicar que tenhamos de medicar pessoas que, tratadas precocemente, não teriam tido essa necessidade, ao mesmo tempo que a falta de psicólogos nos deixa sem respostas não-farmacológicas para quem efetivamente acede aos cuidados atempadamente.
Qual a prevalência da depressão em Portugal? E como compara com o resto do mundo?
Segundo o maiorestudo epidemiológico de saúde mental em Portugal - o Estudo Nacional de Saúde Mental (Caldas de Almeida e Miguel Xavier) - cerca de 8% dos portugueses adultos terão um quadro depressivo em cada ano. Esta prevalência corresponde a uma das mais altas da Europa. No entanto, onde verdadeiramente nos destacamos face à média europeia é nas perturbações de ansiedade.
Apesar dos números, ainda há pessoas que não procuram cuidados de saúde mental? Porquê? Quem está em maior risco?
Segundo esse mesmo estudo, apenas 35,8% das pessoas com problemas de saúde mental tiveram acesso a cuidados de saúde especializados, o que representa uma ausência de tratamento de 64,2%. Estes números são alarmantes. A procura de ajuda é menor em pessoas sem suporte familiar, com menor literacia e nos homens. Na nossa sociedade, pode ser mais difícil a um homem assumir uma posição de vulnerabilidade e procurar ajuda. Apesar de as mulheres terem 2 vezes mais depressão do que os homens, a verdade é que os homens morrem por suicídio 3 vezes mais. Este fenómeno pode ser explicado, em parte, por esta dificuldade acrescida do homem em recorrer ao tratamento.
O suicídio é, muitas vezes, uma consequência limite da depressão. A que sinais devemos estar atentos em pessoas deprimidas?
O suicídio é um trágico mas prevenível desfecho da doença mental, em particular da depressão. A depressão convence a pessoa doente de que lhe restam apenas 2 alternativas: viver num sofrimento excruciante ou pôr fim à sua vida. A própria doença elimina a terceira saída: fazer um tratamento e melhorar. Numa pessoa deprimida, são sinais de alarme: o sentimentos de desesperança (esta sensação de que não há outra saída); o sentimento de ser um fardo para os outros; um maior isolamento; um grande aumento no consumo de álcool e drogas; a pessoa começar a projetar-se no futuro como já não estando viva (dizendo frases como “quando eu cá não estiver…”, por exemplo); e a tomada de diligência relativamente à sua morte (escrever cartas de despedida, oferecer objetos de valor aos entes queridos, tratar do próprio funeral, etc).
Os primeiros socorros psicológicos que devemos prestar são o encaminhamento urgente para ajuda especializada e afastar a pessoa dos meios letais.
Quais são os grupos de risco mais afetados pela depressão?
A depressão pode afetar qualquer pessoa, seja qual for a sua idade, estatuto socioeconómico, etnia ou profissão. No entanto, há fatores de risco que aumentam a vulnerabilidade para desenvolver depressão. Por um lado, fatores de risco genéticos, como acontece em pessoas com vários familiares próximos com depressão ou outros quadros psiquiátricos. Por outro lado, fatores de risco psicossociais: desemprego, pobreza, violência, migração, sofrer graves perdas, entre outros.
Quando é que a tristeza deixa de ser algo normal?
A tristeza faz parte da vivência humana, surgindo como reação normativa (e até útil) face a acontecimentos do quotidiano e às perdas inevitáveis ao longo do ciclo de vida. Tristeza não é sinónimo de depressão! Na depressão, a tristeza assume um carácter persistente, invasivo, dominando toda a experiência interna e afetando o nível de funcionalidade do doente. Além disso, na depressão a tristeza surge acompanhada de um conjunto de outras manifestações clínicas: perda do interesse em atividades outrora prazerosas, diminuição da energia, sentimentos de culpa, dificuldades de concentração e sintomas do próprio corpo: alterações do apetite, do sono, do desejo sexual, do trânsito intestinal e até dores.
Que desafios Portugal enfrenta nos cuidados de saúde mental?
Destacaria 3 desafios e 3 metas para o futuro
- Mais profissionais de saúde mental no sistema público, principalmente profissionais não-médicos: assistentes sociais, psicólogos, terapeutas ocupacionais, etc. O nosso sistema é excessivamente medicocêntrico. O psiquiatra deveria ser meramente uma parte de uma equipa multidisciplinar;
- Mais fácil acesso aos cuidados de saúde mental e menos desigualdade;
- Mais iniciativas de prevenção.
A promoção da saúde mental deve começar quando? E o que está a falhar deste ponto de vista na sua opinião?
A promoção da saúde mental deve começar desde o início da vida da criança: cursos de parentalidade positiva (para os pais) e cursos de inteligência emocional para as próprias crianças, nas escolas. Faltam também iniciativas de promoção de literacia em saúde mental. Por saberem pouco sobre saúde e doença mental (e por terem tantos mitos e preconceitos), os portugueses atrasam muito a procura de ajuda. Tempo é saúde: quanto maior o período sem tratamento, pior o prognóstico. Quanto menos literacia, mais estigma. Foi assim que resolvi começar a promover a literacia com a minha própria voz.
Qual a importância de campanhas como a ‘Viva! Para lá da depressão’?
A campanha ‘Viva! Para lá da depressão’ é particularmente poderosa por ter o foco na recuperação! É luminosa, solar e transmite esperança. Dá voz a profissionais de saúde de múltiplas disciplinas - psicologia, nutrição, desporto, medicina geral e familiar e psiquiatria – promovendo um olhar completo sobre a doença em toda a sua complexidade. O tratamento da depressão quer-se multidisciplinar, numa intervenção concertada entre a medicação, a psicoterapia e alterações do estilo de vida, e esta campanha não deixou nenhuma ferramenta terapêutica de fora! Por fim, é uma campanha onde podemos ouvir falar algumas figuras públicas acerca da sua experiência com a depressão, algo que ajuda muito a diminuir o estigma.
Como médica psiquiatra, que conselhos daria a alguém que está deprimido e que ainda não procurou ajuda médica?
Consulte um profissional em quem confie. A depressão tem tratamento e quando mais cedo, melhor! Há sempre esperança, mesmo que a doença o convença do contrário.
Comentários