10 de maio de 2013 - 09h00
A crítica é de José Filipe Pinto, porta-voz do Movimento + Saúde, uma iniciativa que pretende lançar o debate sobre o estado da Saúde em Portugal e que lança críticas às políticas de cortes no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Analisar a redistribuição dos médicos, definir melhores métodos de diagnóstico e ouvir mais os portugueses são algumas das medidas defendidas pelo movimento que frisa que a “sustentabilidade do SNS não pode obedecer a critérios meramente económico-financeiros”. 
É possível existir um Serviço Nacional de Saúde sustentável, como defende o ministro da Saúde? 
Esta questão exige que se parta do pressuposto que a sustentabilidade do SNS não é comparável à sustentabilidade de uma empresa. Na verdade, enquanto uma empresa tem como finalidade – legítima – o lucro e, como tal, procura a sustentabilidade económica e financeira, o SNS destina-se a garantir uma função social que a Constituição define, depois da revisão de 1989, como universal e tendencialmente gratuita. Por isso, a sustentabilidade do SNS não pode obedecer a critérios meramente económico-financeiros. 
Há que ter em conta, sobretudo, a sua eficácia no que concerne à qualidade e abrangência do serviço prestado e a eficiência decorrente de uma ajustada utilização dos meios de que dispõe. Por isso, há que equacionar os custos em função dos proveitos, mas sem nunca perder de vista que a principal finalidade do SNS é garantir o direito constitucional à saúde. 
Que mudanças considera prioritárias num SNS cada vez mais caro para os portugueses?
Ainda não nos encontramos em condições de nos pronunciarmos, em termos definitivos, sobre a questão, já que elencar mudanças pressupõe o conhecimento da realidade e essa decorre dos resultados da avaliação. De momento, apenas é possível afirmar que o SNS é objeto de avaliação institucional, para além da avaliação feita, quotidianamente, pelos utentes e pelos profissionais envolvidos neste projeto. Uma avaliação que, diga-se, tem revelado aspetos positivos e outros negativos, sendo que estes tanto dizem respeito à ausência como à forma de funcionamento de determinados serviços e valências.
Por exemplo, uma auditoria do Tribunal de Contas, em 2003, denunciou que o desperdício de recursos financeiros no SNS atingia 25% do montante afetado à saúde, situação que não pode continuar, tal como não é possível aceitar fraudes contra o SNS, como aquela que, muito recentemente, os Ministérios da Saúde e da Justiça detetaram. 
Importa também dotar o sistema com os profissionais e equipamentos necessários, conhecida que é a falta de enfermeiros e a incorreta repartição de médicos e de especialidades.
3. Qual seria o caminho para tornar o SNS menos pesado financeiramente?
Convirá recordar que as verbas que o Estado afeta ao SNS são provenientes dos impostos dos contribuintes e, por isso, a sustentabilidade do sistema não deve passar por um acréscimo dos encargos assumidos pelos utentes, uma vez que isso representaria um duplicar do esforço dos portugueses. 
A questão é complexa e não poderá deixar de passar por uma alteração da atual política de austeridade. De facto, como as despesas do Estado com a saúde são calculadas em função do Produto Interno Bruto (PIB), é possível manter – melhor, aumentar – as verbas destinadas à saúde desde que o país produza mais riqueza.

4. O que acontecerá aos portugueses a longo-prazo se o governo não recuar nos cortes no SNS?
Os portugueses não necessitarão de esperar pelo longo prazo para sentirem os efeitos. Aliás, dispensam, mesmo, o médio prazo, uma vez que a manutenção da atual política conduzirá à mais do que provável extinção do SNS. 
As medidas recomendadas pelo FMI não deixam dúvidas sobre a intenção de diminuir a responsabilidade governamental na área da saúde. Os cortes propostos não se destinam a fazer uma lipoaspiração das gorduras supérfluas. Põem em causa elementos estruturais, uma vez que exigem reformas adicionais e no sentido daquelas que têm vindo a ser tomadas desde 2011. 
Como é lógico, o desinvestimento público na saúde fará o país regredir ao nível de todos os indicadores direta ou indiretamente relacionados com a saúde. Dito de uma forma mais dura, Portugal perderá em pouco tempo aquilo que demorou várias décadas a atingir e a saúde deixará de ser encarada como um direito para passar a ser um luxo só ao alcance de alguns. 
5. Que medidas devem ser repensadas?
É urgente ouvir os portugueses sobre a definição do modelo. Como é sabido, a Nova Gestão Pública favorita de muitos dos decisores políticos da OCDE assenta em três pilares – privatização, desregulamentação e fragmentação – dos serviços públicos em nome da eficiência e da eficácia.
Talvez por isso, o relatório do FMI considere pertinente diminuir a dependência em serviços caros de cuidados primários de casos clínicos que podem ser seguidos com cuidados terciários, sem ter em conta que o relatório da Entidade Reguladora da Saúde, divulgado em fevereiro de 2013, aponta para uma situação dramática, uma vez que identificou falta de médicos e enfermeiros em várias unidades da rede de cuidados continuados e denunciou que o rácio de camas por habitante é negativo em 95% das regiões ou das unidades geográficas.
Como já existem tantos estudos, é necessário, também aqui, que o diagnóstico funcione como o elemento inicial para a cura, ou seja, aproveitar tudo o que já foi feito para definir – em conjunto – a estratégia mais adequada.
6. As medicinas alternativas e as alternativas terapêuticas também deveriam receber mais atenção por parte do Estado?
A Organização Mundial de Saúde define a saúde como o estado de bem-estar físico e psíquico do indivíduo e não apenas a ausência de doença ou enfermidade. Por isso, o Estado deve estar atento a tudo aquilo que possa contribuir para o bem-estar da população, sem nunca pôr em risco a sua segurança. 
Assim, importa ter em consideração os estudos internacionais, feitos por entidades cientificamente idóneas, sobre as medicinas alternativas e as alternativas terapêuticas. Aliás, importa saber se as mesmas funcionam como alternativa à medicina dita tradicional ou se poderão funcionar em complementaridade.
Em Portugal já são reconhecidas, desde 2003, seis «medicinas alternativas»: acupuntura, homeopatia, naturopatia, fitoterapia, quiropraxia e osteopatia. Ora, se existe o reconhecimento é urgente a regulamentação. Talvez seja aconselhável que o Estado e os cidadãos tenham em conta a realidade de outros países, igualmente europeus, nesta matéria.

7. No que toca ao setor da Saúde, Portugal tem-se aproximado das outras realidades europeias?
No final do Estado Novo, a situação da saúde em Portugal apresentava um quadro clínico de prognóstico muito reservado e longe dos padrões tidos como normais para um país de desenvolvimento médio. Basta atentar em dois indicadores: a taxa de mortalidade infantil e a esperança de vida. Em 1970, por cada mil crianças nascidas, a grande maioria delas em casa, mais de 55 morriam antes de completarem um ano de vida e a esperança de vida era apenas de 67,5 anos. 
O SNS foi criado em 1979, embora a sua implementação tenha demorado cerca de uma década, e, no que diz respeito aos dois indicadores apresentados, a evolução tem sido extremamente positiva. Na verdade, de acordo com o Eurostat, os dados provisórios da mortalidade infantil em Portugal apontavam para uma permilagem de 2,4, ou seja, por cada mil crianças nascidas, mais de 997 tinham direito a celebrar o primeiro aniversário. Melhor do que Portugal e a curta distância, só a Finlândia. 
Quanto à esperança de vida, os dados do INE relativos a 2009/2011, indicavam um valor médio de 79,45 anos, sendo de 76,43 para os homens e de 82,30 para as mulheres.
Todo este progresso resulta, em grande parte, da existência de um Serviço Nacional de Saúde que tem contribuído para aproximar – e até ultrapassar – os indicadores nacionais do referencial europeu. De facto, Portugal tem investido na despesa em saúde per capita acima da média dos países da OCDE e da UE, mas apresenta ainda registos inferiores aos padrões médios devido à dimensão do seu PIB.
Por outro lado, convém ter presente a comparticipação individual no processo. Por exemplo, para além do pagamento de taxas moderadoras, os portugueses são dos povos com um desembolso mais elevado relativamente à aquisição de medicamentos
8. Como vê a evolução do SNS nos últimos 10 anos?
Entre 2002 e 2005, assistiu-se a uma tentativa de substituição do Serviço Nacional de Saúde por um Sistema Nacional de Saúde, uma alteração que representou uma tentativa de mudança para um sistema misto, com a consequente diminuição da participação pública. Com o regresso do Partido Socialista ao poder, o Serviço Nacional de Saúde sobreviveu, embora se visse submetido a novas exigências decorrentes de estratégias assentes na exigência de ganhos de eficiência, no período que mediou entre 2005 e o espoletar da crise financeira. 
A partir da crise mundial, os Programas de Estabilidade e Crescimento e o Plano de Assistência Financeira decorrentes do acordo assinado com a Troika não têm sido amigos do SNS, como as recentes propostas de refundação do Estado Social se têm encarregado de provar. Refundação que parte do pressuposto de que o SNS é insustentável e que a sua reforma é inevitável. O problema reside na profundidade e sentido das reformas, uma vez que as mesmas apontam, inequivocamente, para o desaparecimento do SNS.
9. O que procura o  Movimento + Saúde fazer nesta altura?
O Movimento+Saúde surgiu na sequência da partilha de preocupações relativamente à existência de situações suscetíveis de colocarem em causa o direito dos portugueses aos cuidados básicos de saúde. Situações atentatórias da dignidade humana, como o abandono de doentes nas camas dos hospitais, a impossibilidade de tratamento devido à rutura de stocks de medicamentos, o aumento das taxas moderadoras e a consequente dificuldade de acesso a consultas e meios de diagnóstico. 
O que nós pretendemos é Mais Saúde para a população portuguesa. «Mais», não no sentido restrito do número, mas numa perspetiva valorativa do modo, ou seja, melhor. O Movimento considera urgente que os portugueses deixem de ser apenas os destinatários de medidas que afetam a sua vida quotidiana e que passem a ser ouvidas na fase da definição das políticas. 

Por Nuno de Noronha