Dos fumados “carcinogénicos” ao infame óleo de palma, dos misteriosos “açúcares adicionados” ao temível sal, a comida de hoje mais parece um inimigo do qual temos de nos defender do que um dos grandes prazeres da vida. “Graças ao marketing hiperagressivo e aos muitos arautos da desgraça que usam as redes sociais para espalhar informações alarmistas sem base científica, quantos mais alimentos temos ao nosso dispor, mais eles nos causam ansiedade e desconfiança. ‘Isto faz bem ou faz mal, sim ou não?’, é a pergunta que todos nós fazemos sempre que nos põem um prato à frente”. É desta forma que lemos um excerto da recensão ao livro Posso comer ou faz-me mal? - Manual de autodefesa alimentar (edição Contraponto), assinado pelo químico italiano Dario Bressanini.
Nas mais de 300 páginas do presente título, o autor propõe-nos um caminho de descoberta, o de compreendermos como é, de facto, feita a investigação científica para sermos capazes de distinguir a ciência da aldrabice.
Dario Bressanini, grande comunicador de ciência, ajuda-nos a evitar cair nas armadilhas da publicidade, do marketing e dos mitos mirabolantes, como o do chocolate que emagrece (e que também ajuda a ganhar prémios Nobel), o açúcar dietético. O autor desconstrói muitos dos nossos maiores medos em relação à comida, para que possamos fazer escolhas alimentares mais sensatas e saudáveis sem perdemos o sono e a tranquilidade.
Sobre o livro, escreve na introdução que lhe fez a professora catedrática da NOVA Medical School Conceição Calhau: “Atente-se ao capítulo dedicado ao sal rosa dos Himalaias (...) Nele, o autor apresenta a combinação perfeita do pormenor químico com o maior rigor científico e humor, ao surpreender o leitor com a explicação para a cor do sal e o seu pseudointeresse enquanto alegada fonte de ferro”.
Do livro, publicamos o excerto abaixo:
Xarope, xarope meu, quem é mais natural do que eu?
De há alguns anos para cá, explodiu a moda dos adoçantes “naturais”. Na era da demonização da sacarose, o açúcar de mesa comum, sentimo‑nos agora culpados por comer doces e não queremos ver a palavra açúcar num rótulo. Se, por vezes, como vimos, é possível camuflá‑lo sob a forma de extratos açucarados de fruta, outras vezes, é necessária uma estratégia diferente. Assim, as prateleiras dos supermercados, e mais ainda as das lojas especializadas, enchem‑se de xaropes e açúcares de vários tipos, desde o xarope de ácer ao xarope de agave, do açúcar de coco ao açúcar de palma, passando pelos maltes de todos os tipos. Todos mais ou menos promovidos e publicitados com uma aura de naturalidade que leva muitas pessoas a utilizá‑los, não pelo seu sabor, muitas vezes complexo e maravilhosamente aromático, ao contrário da sacarose comum, mas porque são supostamente “mais saudáveis”. É o que dão a entender os vários gurus da saúde na Internet. Poucos sabem, no entanto, o que contêm.
Açúcares exóticos
Nos países tropicais, existem várias palmeiras com um néctar de elevado teor de açúcar. Algumas palmeiras sacarinas, como a Arenga pinnata e a Borassus flabellifer, são utilizadas há séculos pelas populações locais para produzir açúcar. A inflorescência masculina é cortada e um líquido adocicado rico em sacarose é recolhido diariamente num recipiente. É possível recolher entre 5 a 30 litros de líquido por dia num período de vários meses. O néctar é, então, levado à ebulição em grandes panelas de ferro postas ao lume e concentrado até se tornar um xarope muito espesso. É vendido tal e qual, por vezes denominado “mel de palma», ou ainda concentrado para ser vertido em moldes onde solidifica.
Estes produtos são apenas uma mistura de sacarose e frutose em percentagens variáveis, e não há qualquer razão para os revestir com a aura salutar que, muitas vezes, acompanha a sua descrição comercial.
Um produto que a indústria dos produtos saudáveis pôs recentemente nos mercados ocidentais e que está a ter grande sucesso é o chamado açúcar de coco. A fonte do néctar, neste caso, é o coqueiro (Cocos nucifera). Esta planta tem sido tradicionalmente utilizada para produzir cocos para serem vendidos frescos, ou para serem transformados em farinha, ou ainda para serem utilizados na produção de óleo de coco. Nos últimos anos, devido à procura no mercado ocidental de açúcares considerados mais naturais, algumas plantações de coco, especialmente na Indonésia e nas Filipinas, converteram‑se à produção de açúcar. Mais uma vez, o néctar é extraído da inflorescência e levado à ebulição para ficar concentrado. Uma palmeira pode produzir até 50 quilos de açúcar por ano.
O néctar de todas estas palmeiras é rico em sacarose, cerca de 15%. Assim que o néctar começa a sair, é atacado por bactérias e leveduras, que começam a produzir enzimas que convertem parcialmente a sacarose em glicose e frutose. A fermentação tem de ser mantida sob controlo com agentes antimicrobianos e conservantes, caso contrário deixará de ser possível obter açúcar sólido de boa qualidade. Durante a fervura, que pode durar várias horas, parte da glicose e da frutose, geradas pela divisão da sacarose, reage com as impurezas proteicas presentes, formando os típicos produtos castanhos aromáticos da reação de Maillard, característicos de muitos xaropes deixados a ferver durante muito tempo.
Tanto o açúcar de coco como o açúcar de palma contêm cerca de 90 % de açúcar, 70‑80 % de sacarose, o resto de glicose e frutose, mais alguma água, ácidos orgânicos e os produtos aromáticos da reação de Maillard. Se as enzimas, durante o processo, não forem mantidas sob controlo, a quantidade de sacarose pode ser inferior e a percentagem de frutose pode aumentar. No final, estes produtos são apenas uma mistura de sacarose e frutose em percentagens variáveis, e não há qualquer razão para os revestir com a aura salutar que, muitas vezes, acompanha a sua descrição comercial.
Ácer, agave e outros xaropes
Juntamente com os produtos sólidos, existem agora também muitos xaropes doces. Os mais populares são os de ácer e de agave. Em grande medida, as propriedades dos xaropes doces que encontramos no mercado podem ser reduzidas às propriedades dos açúcares simples neles dissolvidos. A maioria dos xaropes contém entre 70 e 80 % de açúcares, que geralmente são sempre os mesmos: sacarose, glicose e frutose. Muitos xaropes são coloridos e aromáticos porque também contêm pequenas quantidades de outras substâncias que conferem cores e aromas característicos. Estas substâncias, tal como os outros açúcares, são formadas durante o processamento, através do aquecimento do sumo dos vegetais a partir dos quais são feitos.
O xarope de ácer é o xarope clássico para as panquecas do pequeno‑almoço, que a Vovó Donalda fazia na banda desenhada e que agora também são populares entre nós. É produzido principalmente no Canadá, fazendo ferver durante muito tempo a seiva recolhida de certas espécies de áceres, como o bordo‑sacarino, o bordo‑preto e o bordo‑vermelho. O sumo é fervido para reduzir o teor de água e, durante o processamento, são produzidas as substâncias aromáticas características, bem como pequenas quantidades de glicose e frutose resultantes da divisão da sacarose. A seiva, um líquido límpido e quase insípido, tem um teor de sacarose de 2 a 5%. Uma vez que, por lei, o xarope de ácer deve ter um teor mínimo de 66% de açúcar, é necessário utilizar 15 a 30 litros de seiva recolhida da árvore para obter 1kg de xarope de ácer. Esta é uma das razões pelas quais o xarope de ácer é tão caro. Retirando a água, os açúcares presentes são 98% de sacarose, com vestígios de glicose e frutose.
O xarope de agave, também designado por “néctar de agave”, é obtido a partir de certas espécies de agave, nomeadamente a agave azul (Agave tequilana), também utilizado no México para a produção de tequila. O coração da planta é espremido para se obter a seiva que contém vários polissacáridos, sendo o principal a inulina, um polímero composto por frutose. O sumo é aquecido e as enzimas decompõem a inulina, produzindo frutose, o principal açúcar do xarope de agave. Dependendo do método de produção e da matéria‑prima, o xarope de agave pode ter um teor de frutose de 70 a 90% em relação aos açúcares totais presentes, uma concentração que o torna o xarope natural com maior teor de frutose.
No imaginário de alguns consumidores, todos estes xaropes aromáticos são vistos como naturais. E são, claro está, tal como a sacarose normal. Mas não deixa de ser irónico constatar que os sabores pelos quais são famosos e a sua coloração são o resultado do tratamento térmico industrial a que são submetidos.
Não deixa de ser irónico constatar que os sabores pelos quais são famosos e a sua coloração são o resultado do tratamento térmico industrial a que são submetidos.
Existem também outros xaropes, por exemplo, os de malte. O malte é o produto da germinação da semente de um cereal. Durante o processo de germinação, o amido presente na semente é parcialmente transformado em açúcares. A partir do grão germinado obtém‑se uma farinha, chamada farinha de malte, ou pode‑se adicionar água e, após uma filtragem, obter uma solução sacarina que, quando devidamente concentrada, dá origem ao xarope de malte. Todos os grãos de cereais, como a cevada, o trigo ou o milho, são ricos em amido e podem ser utilizados para produzir o malte, mas este é frequentemente obtido a partir da cevada, em parte porque é o ponto de partida para a produção de cerveja. O xarope de malte é rico em dissacárido maltose, um açúcar simples constituído por duas moléculas de glicose, e tem um sabor característico. É adicionado aos produtos de pastelaria porque a maltose tem muitas propriedades semelhantes às da glicose, incluindo a capacidade de participar na reação de Maillard e, por conseguinte, de dourar e acastanhar, ao contrário da sacarose.
Uma moda
Todos os açúcares considerados alternativos que vimos contêm vestígios de outras substâncias, como o cálcio e o potássio. No entanto, estes encontram‑se em quantidades extremamente baixas pelo que não têm qualquer importância do ponto de vista nutricional, dadas as pequenas quantidades de açúcares que utilizamos.
Então, porque é que são tão populares ultimamente? Os aromas maravilhosos e os sabores complexos. Claro. Mas quanto às suas propriedades nutricionais, bem, são equivalentes às habituais sacarose, glicose e frutose, e é desonesto sugerir que são, de alguma forma, “mais saudáveis”. Vejo demasiadas páginas Web e revistas de bem‑estar ou de culinária a lançarem mão da naturalidade destes açúcares e xaropes, sem nunca fornecerem um pingo de provas científicas de que são efetivamente mais saudáveis. Porque não podem. Não são. Receitas de doces em que o açúcar de coco ou o xarope de agave são usados como desculpa para dar a falsa ilusão a quem os faz e come de que estão a cozinhar de forma “mais saudável”. Propor a utilização de malte de espelta ou de malte de arroz preto integral (ou arroz de Vénus), colhido por virgens em noites de lua cheia, serve apenas para aliviar a consciência, numa espécie de autoindulgência plenária para expiar pequenos‑almoços e lanches talvez demasiado doces e abundantes.
Consumidos em excesso, todos os açúcares, independentemente da sua origem e grau de refinamento, podem causar ou agravar problemas de saúde como a obesidade e a diabetes. No fundo, são apenas açúcares simples com aromas particulares, mas devem ser tratados como o açúcar de mesa normal: com moderação. Sempre.
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