O ano de 2019 fechava com números recorde no que toca ao turismo em Portugal. Em 12 meses, o nosso país recebeu, entre nacionais e estrangeiros, perto de 27 milhões de visitantes, nos dados então revelados pelo Governo. A restauração nacional beneficiava com estes números otimistas. Na mesma altura e do Extremo Oriente, começavam a chegar notícias de um novo vírus identificado na cidade de Wuhan, a capital da província da China central, enorme centro comercial com 11 milhões de habitantes.

Hoje, volvidos cinco meses sobre o anúncio do novo vírus, o mundo lida diariamente com as palavras pandemia, COVID-19, coronavírus, confinamento. Portugal não é exceção. Quarenta e cinco dias de emergência nacional, a que se segue a situação de calamidade, fazem-nos perceber que, neste mundo global, um distante ponto no planisfério, tem o potencial para se tornar numa realidade fulcral nas nossas vidas.

De portas fechadas há perto de dois meses, os restaurantes nacionais vivem, agora, a expetativa de reabertura a 18 de maio. Não será como antes como afirmaram três chefes de cozinha nacionais e também empresários, Alexandre Silva (restaurante Loco, Lisboa), Hugo Silva (restaurante Boi-Cavalo, Lisboa) e Vasco Coelho dos Santos (Euskalduna Studio, Porto).

O trio reuniu-se a 4 de maio no painel inaugural da sétima edição do simpósio Sangue na Guelra (4 e 5 de maio), que este ano estreia, por força das condições do momento, a sua versão digital.

“O futuro da restauração independente”, a temática que juntou os cozinheiros nacionais, com moderação do jornalista gastronómico Rafael Tonon, procurou encontrar respostas sobre a amanhã de estabelecimentos pequenos, aqueles que não contam com a máquina da gestão dos grupos de restauração e que mantêm – nalguns casos – desde há semanas, a atividade exclusivamente centrada no take away e entregas ao domicílio.

Pessoalmente, não quero como cliente, ir jantar fora e ser recebido por pessoas com máscaras, ou ter acrílicos

Num contexto de pandemia com repercussões na economia ainda não completamente discerníveis, haverá vantagem em ser um restaurante independente? À pergunta que serviu de linha de partida para a conversa Alexandre Silva respondeu que “teoricamente [no restaurante independente] é muito mais fácil colocares as tuas ideias em prática. Consegues chegar mais depressa à ideia que tens. No entanto, na prática, pode não ser assim, porque considerando tudo o que está a acontecer neste momento, poderá não haver dinheiro ou chegarem os apoios que precisas. Porque as empresas em termos jurídicos e contabilísticos podem ser mal-acompanhadas”.

alexandre silva
alexandre silva Alexandre Silva, um dos intervenientes no debate promovido no âmbito do simpósio "Sangue na Guelra".

Para Hugo Silva, no seu caso, “a grande vantagem em teres uma menor inércia empresarial, é porque tens menos pessoas a quem consultar e a tomar decisões. Contudo, não tens o apoio de um departamento contabilístico e de gestão pré-montado que te tratou de tudo no que respeita aos apoios que, supostamente, estariam a ser disponibilizados”. O chefe de cozinha do Boi-Cavalo sublinhou que face ao encerramento, “a nossa experiência com o take away foi muito rápida porque já tínhamos feito um pop-up anteriormente. Era uma espécie de solução que já tínhamos no bolso. Na desorientação total dos primeiros dias eu não estava a vê-la”.

Hugo sublinha, contudo, que “o take away é provisório. Isto porque não estamos a ver qual o passo seguinte. Não estávamos no negócio para as pessoas apenas comerem e ponto final. Estávamos a proceder a uma experiência gastronómica”. O empresário deixou as perguntas: “que identidade teremos a seguir? E como vamos comunicar essa identidade?”.

O mundo preparou-se para as guerras nucleares, mas não se preparou para isto que nos está a acontecer

“Pessoalmente, não quero como cliente, ir jantar fora e ser recebido por pessoas com máscaras, ou ter acrílicos”. Não tenho nada previsto pelo menos até termos condições ou outro modelo de restaurantes.

A propósito do mesmo tema, a sobrevivência dos restaurantes independentes face ao atual cenário, Vasco Coelho dos Santos que decidiu não ter nenhum serviço de entrega ou take away, afirmou: “fechámos assim que vimos as grandes quebras nas reservas. Tive cem cancelamentos numa semana. Infelizmente este ano também tivemos muito mais taxa de estrangeiros. Isto foi uma verdadeira bomba que caiu. Numa primeira fase, era tanta a informação que se recebia e tão diferente que ficámos confusos”.

O chefe de cozinha concluiu que, “mesmo que abramos a 18 de maio, não o vamos fazer com tudo. As pessoas vão ter receio. Prefiro preparar-me para o take away durante algumas semanas”.

Hugo Silva
Hugo Silva Em primeiro plano, Hugo Silva, timoneiro no restaurante lisboeta Boi-Cavalo. créditos: Boi-Cavalo

Que lições tirar da provação?

Enquanto pequeno empresário que lições vai tirar com todos os constrangimentos que agora se vivem. Uma pergunta para a qual Alexandre Silva teve resposta pronta: “só tirei uma lição. Aquilo que pensávamos ser o futuro estava errado; ou seja, investimento, investimento, investimento. Neste momento, temos de zelar para que a empresa tenha condições. Caso isso aconteça novamente, poderemos aguentar isto alguns meses”.

“O mundo preparou-se para as guerras nucleares, mas não se preparou para isto que nos está a acontecer”, concluiu o chefe de cozinha.

Já Vasco Coelho dos Santos sublinhou que “o que tinha guardado não está a dar. Tenho de ir ao banco, depois de aplicar as economias de anos. É um risco que tomo. Acho que fomos tomando boas decisões no Euskalduna durante dois anos. Agora que íamos começar a ter retorno, levamos com isto. Por outro lado, faz-me pensar em decisões que pretendia tomar, como meter-me noutro investimento”.

Em resposta à mesma questão, Hugo Silva afirmou que “neste momento estamos a conseguir pagar ordenados e uma boa parte das contas, não estamos a acumular passivo”. O chefe de cozinha recordou que no Boi-Cavalo tinha muitos clientes estrangeiros que não voltarão tão próximo. “Já pensava na dependência do turismo. Agora, reaproximamo-nos dos clientes portugueses”.

Vasco Coelho dos Santos
Vasco Coelho dos Santos Vasco Coelho dos Santos, no seu Euskalduna Studio, no Porto. créditos: Euskalduna Studio

David tem vantagens face a Golias?

Se a dimensão pode ser fator de recuperação mais rápida dos pequenos restaurantes face aos grandes grupos da restauração é pergunta a que Alexandre Silva respondeu com um “sim. Vão ter mais facilidade, são genuínos, transportam mais sinceridade. Vão sobreviver. Claro que o que estamos a passar agora é inédito”.

“Tenho três restaurantes. Não sei quando vai reabrir o Mercado da Ribeira. Quanto ao Loco, 50% da taxa de ocupação era de estrangeiros. Já o Fogo que funcionou três meses, até encerrar com a atual situação, só recebeu a visita de portugueses”.

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O chefe de cozinha recordou que “há um problema, se não trabalharmos com turistas, temos só 50% de massa critica para encher os restaurantes. Se há cinco anos me dissessem, ´olha Alexandre deves abrir take away porque é o futuro` eu não o faria, preferiria ser pescador ou agricultor”.

A pandemia muda-nos?

Uma realidade como a que vivemos atualmente deixa marcas e faz-nos repensar caminhos. “Este último mês permitiu-me pensar muito, estar com os meus filhos, olhar para o futuro”, referiu Vasco. Por sua vez, Hugo recordou que “há uma coisa quase infantil no cozinhar. Tanto me entusiasma desenhar e executar uma sandes que vai chegar a casa das pessoas, como elaborar um prato complexo. Pessoalmente, deu-me algum gozo trabalhar com tantas limitações”.

“Apesar de tudo, o que se passa atualmente não é o grande nivelador. ´Só os bons vão ficar`, não será bem assim. Algumas coisas que consideramos menos interessantes irão manter-se e outras, que se estavam a afirmar, perder-se”.