“Em Portugal, a cada ano, são abatidos cerca de 175 milhões de frangos, cinco milhões de porcos e mais de 300 mil bovinos. Para satisfazer um consumo anual médio de 110 quilos de carne por habitante”. É perante números pesados como estes que paramos um pouco para pensar. E é precisamente este desafio, o de refletirmos sobre que caminhos queremos seguir no que toca à alimentação, aquilo que nos propõe, nesta conversa, a jornalista e autora Gabriela Oliveira.
A autora, com cinco livros publicados (o último, “Cozinha Vegetariana Para Festejar” - ArtePlural edições) e prémios arrecadados, é uma profissional empenhada na divulgação das temáticas da alimentação, da saúde, do ensino e da família, retoma um dos seus temas mais gratos. Gabriela Oliveira, ajuda-nos a preparar pratos de partilha, 100% vegetarianos, mas nem por isso menos apelativos ou ricos nutricionalmente.
Aqui, nesta conversa, Gabriela fundamenta a sua paixão de 20 anos pelo vegetarianismo, comenta a evolução do mesmo no nosso país, recordando-nos, inclusivamente, que a primeira associação vegetariana em Portugal foi fundada, no Porto, há mais de cem anos. O que não obstou (e obsta) a um desfasamento entre terras Lusas e outros países mais atentos à importância de uma cozinha próxima dos nossos ciclos naturais e amiga do ambiente.
Em Portugal “ainda perdura a ideia de que a comida vegetariana se resume a saladinhas e a legumes cozidos”, diz-nos Gabriela Oliveira. Nem tudo é mau, há “muitos sinais positivos e promissores”. Uma maior abertura por parte das instituições e legislação que obriga a ter a opção vegetariana nos refeitórios das escolas e dos organismos públicos.
Há 20 anos a Gabriela optou pelo vegetarianismo. Quais as razões que a levaram a enveredar neste caminho alimentar?
Foi a descoberta de que podia viver sem comer carne e peixe, se quisesse. Até essa altura não tinha refletido sobre as minhas escolhas e desconhecia que existiam alimentos de origem vegetal que podiam garantir os nutrientes de que necessitava. Essa mudança acabou por influenciar o meu rumo profissional e apurou ainda mais o meu gosto pela culinária.
Nessa altura como olhava Portugal para o vegetarianismo comparando, por exemplo, com outros países europeus?
Passei algum tempo em Inglaterra na década de 90 e via como lá era fácil alguém pedir uma refeição vegetariana num restaurante ou ter os produtos diferenciados nos supermercados, ao contrário do que acontecia em Portugal. Por cá era tudo mais complicado na altura, a internet quase não tinha expressão, havia poucos livros sobre o tema, alguns restaurantes macrobióticos e poucos produtos nas prateleiras dos supermercados, especialmente, fora das grandes cidades.
Duas décadas é período de tempo considerável. Hoje temos uma maior disponibilidade de ingredientes, um acesso incomparável a mais informação. Vivemos uma revolução vegetariana no nosso país, ou ainda estamos longe disso?
É curioso que já se fala sobre vegetarianismo no nosso país há mais de cem anos – a primeira associação vegetariana foi fundada em 1911 no Porto – mas apenas nos últimos dez anos é que a grande mudança está em marcha. Não lhe chamaria ainda revolução, oxalá venha a ser e proporcione uma mudança de mentalidades e uma oferta generalizada de produtos vegetarianos. Quando mais portugueses aderirem a refeições vegetarianas e a restauração perceber a importância de dar uma resposta satisfatória à procura, essa mudança irá precipitar-se. Tem havido muitos sinais positivos e promissores, e uma maior abertura por parte das instituições, como revelam os manuais publicados pela Direção Geral da Saúde e a recente legislação que obriga a ter a opção vegetariana nos refeitórios das escolas e dos organismos públicos. Portugal está a ser exemplar nesta matéria. Não sei se muitos portugueses se apercebem disso.
A Gabriela conta com quatro livros publicados sobre a alimentação vegetariana, o que representa já variadíssimas receitas. Sente que as pessoas ainda olham para esta alimentação como limitada em termos de ingredientes, preparação e sabores pouco atrativos após confeção?
Quando é bem confeccionada, a culinária vegetariana é muito apelativa, colorida, variada e cheia de sabor, até pela riqueza dos condimentos que podem ser utilizados. Tenho tentado demonstrar isso mesmo através dos livros e dos workshops que faço. Podemos usar somente ingredientes de origem vegetal e preparar quase tudo, desde bolos, pudins, mousses, pastas, hambúrgueres, croquetes, pratos de forno. Mas em muitos contextos ainda perdura a ideia de que a comida vegetariana se resume a saladinhas e a legumes cozidos – aliás, a célebre salada de alface e tomate é a proposta mais comum nos restaurantes portugueses quando alguém pergunta se tem algum prato vegetariano. Na verdade, ainda falta realizar um trabalho exaustivo de formação e de proporcionar a degustação de receitas, para derrubar muitos preconceitos e ideias erradas à volta do vegetarianismo.
Na apresentação à sua mais recente obra “Cozinha Vegetariana Para Festejar”, a Gabriela deixa-nos uma mensagem preocupante. Poucos de nós refletimos como é uma sobrecarga para o planeta a alimentação baseada na proteína animal. Gostaria que desenvolvesse.
Há cada vez mais pessoas a optar por refeições vegetarianas por razões ecológicas. Diminuir o consumo de carne e lacticínios foi uma das recomendações do grupo de trabalho das Nações Unidas para combater as alterações climáticas.
A produção pecuária consome demasiados recursos naturais, como água e cereais, que poderiam ser usados diretamente na alimentação humana, além de contribuir para a desflorestação, a perda da biodiversidade e a poluição. É estimado que seja responsável por 18% das emissões dos gases com efeito de estufa, uma percentagem superior à do sector dos transportes, segundo o relatório da FAO Livestock's Long Shadow.
O problema é que nunca se consumiu e produziu tanto em tão pouco tempo, e isso tem um impacto tremendo na saúde e no ambiente. Se pensarmos que em Portugal, a cada ano, são abatidos cerca de 175 milhões de frangos, cinco milhões de porcos e mais de 300 mil bovinos, entre outros animais, para satisfazer um consumo anual médio de 110 quilos de carne por habitante (dados do Instituto Nacional de Estatística), percebemos que é urgente alterar hábitos e tomar medidas.
Se a população mundial adoptasse o padrão alimentar dos portugueses, não existiriam recursos suficientes e o impacto ambiental seria desolador. Por isso, se diz que seriam necessários vários planetas.
Ainda nesta perspetiva, a Organização Mundial de Saúde (OMS) tem vindo a aconselhar uma redução da quantidade diária de consumo de proteína animal. Alguns especialistas apontam as patologias renais como as doenças emergentes que irão assolar as populações. Como podem as proteínas vegetais fazer luta face a esta situação?
Já estamos a lidar com as graves consequências do estilo de vida ocidental - excesso de proteínas animais, de gorduras saturadas e de açúcares refinados, aliado à falta de exercício físico – que se manifestam em índices preocupantes de obesidade, diabetes, problemas cardiovasculares, cancro e patologias renais.
Note-se que as principais causas de morte em Portugal continuam a ser as doenças circulatórias e do foro oncológico, muitas das quais estão associadas a comportamentos alimentares. Os estudos científicos têm demonstrado que a substituição das proteínas animais por proteínas vegetais leva a uma menor incidência destas doenças, pela presença de fibra, fitoquímicos e micronutrientes protetores da saúde.
Peguemos no mote do seu último livro, cozinha para festejar e partilhar. É preciso muita força de vontade e criatividade para fugirmos ao borrego na Páscoa, ao bacalhau no Natal, etc. Que mensagem nos deixa para substituirmos esta tradição gastronómica pela alternativa vegetariana?
Basta ter vontade e algum jeito para cozinhar. Podemos recriar alguns pratos típicos dessas festividades com um aspecto apetitoso na versão vegetariana. Em vez do tradicional bacalhau no Natal, podemos, por exemplo, preparar um assado especial de tofu ou um rolo recheado de seitan com batatinhas e legumes assados. Não é preciso abdicar do prazer de comer, pelo contrário, podemos descobrir e apreciar outros sabores e aromas, com a noção de que estamos a proteger a saúde, os animais e o planeta.
Quer salientar algumas receitas que lhe tenham dado particular gosto preparar?
Neste livro, posso salientar, por exemplo, os crepes de cogumelos, o empadão surpresa, o rolo de tremoço, o bolo de coco e ananás, a mousse de chocolate e bolota. Noutros livros, o tofu com broa, os hambúrgueres de grão e batata-doce, o bolo de cacau e alfarroba, a delícia de morango. São tantas as receitas que preparo que é difícil referir apenas algumas.
A Gabriela dedica a introdução do livro a explicar os vários tipos de alimentos: proteicos, leguminosas, cereais, algas, entre outros. Ou seja, comer em consonância com a natureza também tem as suas regras, certo?
Como costumo dizer, não basta retirar a carne e o peixe do prato, é preciso substituir por alimentos proteicos de origem vegetal, ricos em ferro e outros micronutrientes.
Algumas pessoas desconhecem que ao combinarmos uma leguminosa e um cereal – por exemplo, feijão com arroz – obtemos proteínas completas, e que a presença de vitamina C – por exemplo, no tomate e no sumo de laranja – ajuda a uma boa absorção do ferro. Tenho o cuidado de explicar esses conceitos na introdução dos livros.
Atualmente os supermercados já nos disponibilizam uma grande oferta de alimentos alternativos. Os ingredientes que usa nas suas receitas são fáceis de encontrar nestes espaços ou alguns têm de ser adquiridos em lojas mais específicas?
Quase todos os ingredientes são acessíveis, aliás, são aqueles que todos temos ou devíamos ter na dispensa ou no frigorífico, como feijão, grão, ervilhas, cogumelos, legumes frescos, batata-doce, frutos secos. Alguns ingredientes específicos da culinária vegetariana, como o tofu, o seitan e o tempeh, são mais fáceis de encontrar em lojas especializadas mas também são vendidos em hipermercados. Costumo recomendar que se opte por estes produtos frescos, embalados em vácuo e refrigerados, de produção nacional, pois são mais saborosos e menos dispendiosos.
Na preparação deste livro deparou-se com alguns alimentos que constituíram uma novidade pela positiva? Quais?
Procurei ingredientes que ainda não tivesse usado e que gozassem de uma longa tradição no nosso país, como o tremoço, que apliquei em receitas salgadas por ser uma boa fonte de proteínas, e a bolota que utilizei em receitas salgadas e em sobremesas. Gostei particularmente de trabalhar a bolota, por ser um alimento antigo e muito versátil. É rico em hidratos de carbono complexos, ácidos gordos insaturados e em compostos antioxidantes. Foi um amiláceo muito usado no Mediterrâneo durante séculos. Somos um país riquíssimo em bolota, pela grande presença de sobreiros e carvalhos, e seria um erro não reabilitarmos a bolota na culinária e noutras áreas.
Algumas receitas não contêm glúten e outras não contêm açúcar. No caso específico da supressão do glúten caímos hoje em dia no exagero?
Podemos ter uma alimentação variada, com diferentes tipos de cereais, se não formos intolerantes ao glúten. No caso dos celíacos, há uma lista dos chamados alimentos proibidos e perigosos que deve ser respeitada, por razões de saúde.
A questão do glúten veio alertar para um erro muito frequente na dieta ocidental, que é o consumo continuado e excessivo de trigo refinado, sob diferentes formas ao longo do dia, muitas vezes associado ao açúcar e a gorduras saturadas. Por exemplo, quando comemos cereais (industriais) ao pequeno-almoço, bolachinhas a meio da manhã, piza ao almoço, pão ao lanche e massas ao jantar, estamos a ingerir farinha de trigo refinada em todas as refeições, o que é prejudicial.
Diversificar as fontes de nutrientes e evitar exageros é uma regra da boa alimentação, seja em que situação for. Alguns alimentos rotulados “sem glúten” podem ser nutricionalmente pobres, conter conservantes e adoçantes artificiais; é preciso estar atento e escolher com critério. Alguém celíaco só poderá consumir alimentos sem glúten e sem vestígios de glúten.
Algumas pessoas revelam alguma sensibilidade ao glúten mas conseguem tolerar o seu consumo se optarem por cereais integrais. Para a maioria das pessoas, a minha sugestão é que diversifiquem e optem por cereais nutricionalmente mais completos, como aveia, cevada, espelta, milho, millet, quinoa, kamut ou centeio, em vez de escolherem alimentos à base de trigo refinado.
No final do livro ficamos com aquela sensação de que há mesmo um caminho melhor em termos alimentares. Para dissipar dois últimos obstáculos: É uma alimentação cara e difícil de produzir?
É acessível, mesmo escolhendo bons produtos. Podemos poupar bastante se prepararmos refeições com proteínas de origem vegetal, usando leguminosas (feijão, grão, lentilhas, favas, ervilhas...) ou alimentos proteicos como o tofu e o seitan frescos. As bebidas vegetais, também conhecidas por “leites vegetais”, tornaram-se mais acessíveis nos últimos anos, precisamente pelo aumento da procura e da oferta.
Não resisto em deixar-lhe uma última questão decorrendo de um dos seus títulos anteriores sobre alimentação vegetariana para bebés e crianças. Tendo em conta que na generalidade os pediatras têm um programa de alimentação, que pode variar um pouco, mas que geralmente passa por ir introduzindo gradualmente os diferentes tipos de carne e peixe e “rigorosas” quantidades em função da idade, considera que os pediatras estão “abertos” à sua abordagem?
Como em qualquer área, há profissionais informados e receptivos a novidades e mudanças, e outros que resistem. Aconselho todos os profissionais de saúde a lerem os manuais sobre alimentação vegetariana publicados pela Direção Geral da Saúde em Portugal, e passo a citar: “as dietas vegetarianas, quando apropriadamente planeadas, incluindo as ovolactovegetarianas ou veganas, são saudáveis e nutricionalmente adequadas em todas as fases do ciclo de vida, podendo ser úteis na prevenção e tratamento de certas doenças crónicas”. Em qualquer idade, estamos sempre a tempo de rever e adequar as nossas escolhas.
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