Quanto se reúnem quatro especialistas de diferentes áreas para debater o futuro da alimentação, ou melhor o que nos pode trazer o futuro no que respeita à alimentação, temos como certo, face à presente realidade à mesa, que o tema não voga em águas calmas e que no atual panorama o trabalho é hercúleo.

Há que informar com fundamento, educar em casa, alterar hábitos, encontrar uma nova relação com os produtos em todas as fases da cadeia alimentar, antecipar cenários expectáveis a médio prazo de uma população mundial a alcançar os nove mil milhões de indivíduos em 2050, saber reaproveitar e dar o devido valor a produtos hoje desmerecidos.

Tudo isto a casar com os termos sustentável, alternativo e biológico.

Sobre isto mesmo refletiram ao longo de uma hora o pediatra Paulo Oom, Francisco Goiana, médico, Anabela Raymundo, investigadora ligada ao projeto River Rice Sugar, Inês Valadas, administradora da Sonae MC.

Um encontro com o tema “Alimentação, Futuro e o Futuro da Alimentação: Novas tendências, novos consumos”, moderado pelo jornalista João Adelino Faria, integrado nos trabalhos mais alargados da conferência “Portugal Saudável”, uma iniciativa da Missão Continente, e que decorreu a 6 de março no Museu do Oriente, em Lisboa.

A dieta dos mais jovens e a questão da educação das crianças, futuros consumidores, envolveu igualmente os participantes na discussão. Mais do que a escola, é importante motivar e esclarecer os pais, advertiram. São eles os grandes promotores da educação das crianças.

Há que derrubar mitos, contrariar modas e modismos. O glúten e a lactose, dois “bichos papões” da alimentação moderna, esteve na mira do painel de oradores.

Fica, aqui, na primeira pessoa o testemunho da quadra de especialistas presentes.

Paulo Oom - Pediatra

“Sabemos que é fundamental para o desenvolvimento de uma criança os primeiros mil dias, o que inclui a gravidez e os dois primeiros anos de vida. Muito do que a mãe come na gravidez e a criança nesses anos iniciais vai modelar o futuro. Temos um património genético que nasce connosco, mas que pode ser modelado, ligeiramente modificado no período que indiquei”.

“Mais tarde, há que evitar que a criança coma doces o que passa muito pela educação. Atualmente não falta informação. Muita não é correta, naturalmente. O que vejo na minha prática diária é que sem o envolvimento dos pais, a criança não tem enquadramento no que respeita a uma dieta equilibrada. Numa consulta com uma criança obesa, esta percebe os benefícios desta explicação. Quando acrescento que a dieta não é só para o pequeno, mas também para ser seguida pelos pais, a conversa muda. O principal problema nesta questão da obesidade é o envolvimento do núcleo familiar. Mais do que na escola”.

Hoje temos modas, como a Dieta do Paleolítico, que são pura falácia. Para alguma coisa serviu a evolução humana.

“Preocupa-me falar com os pais e as crianças e perceber a força dos mitos. Algo que é saudável torna-se, repentinamente, num inimigo público. Hoje temos modas, como a Dieta do Paleolítico, que são pura falácia. Para alguma coisa serviu a evolução humana e todas as adaptações que as populações sofreram. Outra questão premente, o radicalismo da expressão de que somos a única espécie que bebe leite em idade adulta. Este é outro erro. É claro que há excessos e não podemos ter uma criança de dez ou 11 meses a ser alimentado exclusivamente com leite. Teremos, muito provavelmente, uma criança com carências alimentares gravíssimas”.

Francisco Goiana da Silva - Médico e docente

“A alimentação saudável não é uma moda. Temos de perceber que há um problema real. Temos uma prevalência de doenças crónicas que é preocupante, doenças como a diabetes, hipertensão, obesidade. Ou seja, temos de determinar que a alimentação saudável é uma prioridade para as políticas de saúde. Em extremo está a sustentabilidade do próprio serviço nacional de saúde. O fácil é inaugurar hospitais, o difícil são as medidas menos populares como a taxa dos refrigerantes, não bem vista pela indústria. Na prática, assistimos que após a medida os portugueses consumiram menos cinco mil toneladas de açúcar. Os refrigerantes reformularam-se e têm agora menos açúcar”.

O fácil é inaugurar hospitais, o difícil são as medidas menos populares como a taxa dos refrigerantes.

“Não pensamos apenas em instrumentos fiscais, precisamos de uma análise multifatorial, o que passa pela alimentação. Por exemplo, educar as crianças para ajudarem os pais a fazer escolhas mais saudáveis. Termos nutricionistas nas escolas e nos centros de saúde”.

“O serviço nacional de saúde historicamente não foi bom. Tem de chegar às pessoas e não o contrário e isto faz-se com os parceiros certos, nomeadamente com a comunicação social, a indústria. Saber colocar as figuras públicas certas para chegar à população. Usar o Jorge Jesus e a Ana Malhoa a dizer que cortam no sal não é estranho é uma medida certa”.

“Acresce a importância de uma campanha contra o açúcar escondido. As pessoas aprenderem a lerem os rótulos. Estou convencido que os consumidores não fazem más escolhas deliberadamente. Talvez o rótulo dúbio seja propositado para que o consumidor não perceba o que adquire”

Anabela Raymundo – Investigadora no projeto River Rice Sugar ligado ao Instituto Superior de Agronomia (ISA).

“De acordo com as previsões mais recentes, teremos dificuldade de alimentar uma população de nove mil milhões de habitantes em 2050. Teremos de usar melhor os recursos que temos, evitar as taxas de desperdício que são tremendas na indústria”.

“O projeto ao qual estou ligada nasce no trabalho que é feito na indústria arrozeira. Há um subproduto, a trinca de arroz, que vai para a alimentação animal, mas que pode ser aproveitado para a deita humana. Basicamente o que fazemos é ter uma linha de trabalho no ISA para fermentações. Com recurso a fungos fazemos a quebra do amido do arroz, passando a ter um adoçante sem as consequências do açúcar”.

A indústria vive muito dos mitos, como o do glúten, ou o da lactose. Criam-se mitos muito fortes e há consumidores que pura e simplesmente não ingerem porque desconhecem.

“Anualmente saem as tendências de moda para a área alimentar. Para além destas, a indústria vive muito dos mitos, como o do glúten, ou o da lactose. Criam-se mitos muito fortes e há consumidores que pura e simplesmente não ingerem porque desconhecem. É difícil encontrar a razoabilidade”.

“Há uma corrente nova de regresso às origens e um exemplo é o pão, com as massas-mãe e as fermentações mais longas. Há farinhas que estão a ser reencontradas e outras fontes alimentares pouco exploradas e que são viáveis, como as microalgas com um potencial enorme”.

Inês Valadas -  Administradora da Sonae MC

“Quando falamos de alimentação saudável podemos ter uma visão mais extremada. E, neste caso, toda a alimentação tem de ser biológica. Em Portugal o consumo de biológico é de 12%. Evoluir para outro estágio não passa obrigatoriamente por assumir integralmente o biológico. Pode passar por reduzir no açúcar, nas gorduras nocivas e no sal. Nos rótulos é importante termos semáforos nutricionais”.

Tem de existir a consciência de que comer saudável não é o sacrifício

“É imperativo democratizar a alimentação saudável, mas com sabor. Antes, prevalecia a ideia de que comer saudável era como ir a uma espécie de farmácia de alimentos. Tem de existir a consciência de que comer saudável não é o sacrifício. Este é um trabalho moroso que passa por várias fases. Primeiro, há que trabalhar toda a área dos produtos frescos. Depois, substituir os produtos tradicionais, ou seja, reduzir açúcar e sal”.